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POLÍTICA: DECIFRA-ME OU TE DEVORO! |
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Os textos seguintes estão sendo escritos por mim desde o segundo semestre de 2020 e vinham sendo publicados sob o nome de BREVES ANOTAÇÕES POLÍTICAS. Em novembro de 2022, com a publicação do livro POLÍTICA: decifra-me ou te devoro!, uma coletânea de pouco mais de cinquentas destes textos, resolvi adotar este nome para recepcionar as publicações. São escritos sob o calor da discussão da importância da Política em nossa vida, hoje e sempre. Tratam de assuntos pertinentes à Política (com pê maiúsculo mesmo) e as relações obrigatórias com nosso cotidiano. Expressam minha experiência na Política institucional e meu modo de pensá-la. Para reflexão, discussão, comentários e aprendizagens, de todos nós, animais sociais e, por isso, políticos. Querendo ou não a Política está presente na vida de cada um de nós. A decisão de como lidar com isso é pessoal. Espero que os textos ajudem. |
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Pra que serve um vereador?
Alguns bons anos atrás, a escritora Ruth Rocha, uma das maiores desses nossos tempos, publicou um livro chamado PRA QUE SERVE? Não se tratava evidentemente de uma resposta à pergunta acima, mas um passeio literário sobre indagações “pra que servem determinadas coisas”. Termina a narrativa gostosa com uma resposta incomum para uma pergunta comum, esta dirigida aos leitores, “pra que serve um livro de literatura”: serve para ler. E ponto.
Com esta ideia na cabeça acordei dias desses mais cedo do que o costumeiro me perguntando, a propósito das eleições, pra que serve um vereador. Fiquei caraminholando minhas ideias sobre o assunto. Divertidamente comecei respondendo para que serve um vereador. Antes, porém, fui buscar o significado da palavra vereador. Para nossa satisfação de erudição superficial, a palavra vem do latim “veredus”, nome dado ao cavalo de viagem que entregava mensagens, um caminhador pelas estradas, pelas veredas. Do grego, o similar vem de “verea” que significa veredas. Daí, falar de andanças por caminhos é um pulo só. O vereador é o caminhante que anda pelas estradas da vida ouvindo vozes do povo.
Um vereador, lembrando que este edil político, é, hoje, membro do poder legislativo municipal (cada município tem sua Câmara Municipal composta por vereadores que começa em nove, nos municípios menores, e termina em cinquenta e cinco nos maiores, como a capital paulista, em conformidade proporcional ao tamanho da população) tem suas funções baseadas na harmonia dos três poderes constitucionalmente instituídos. Basicamente, um vereador tem funções de legislar (criar, alterar ou aprovar leis que devem reger o funcionamento do município), de fiscalizar o executivo (em palavras curtas, secas e objetivas: fazer com que o executivo execute bem o orçamento e não desvie recursos públicos) e de ser um ouvidor da voz do povo, organizado em movimentos políticos – ou não – e levar adiante essas vozes tentando dar sentido a sua atuação. Na democracia representativa em que vivemos, um vereador, na esfera municipal, é os olhos, o bolso, o ouvido e a boca do povo. Deve perceber, sentir os movimentos, as tendências, dialogar com as múltiplas vozes, saber ouvir e organizar os fatos e as necessidades para assim levá-los politicamente adiante. Para isso precisa de um mínimo de sensibilidade, de boa vontade em ouvir e de capacidade de organizar as demandas. Cultura e sabedoria ajudam. Generosidade, gentileza e disposição física também ajudam. Toda sua ação política tem mão dupla: ouvir o povo que o colocou lá e levar ao executivo as demandas. Vai daí que surge uma quarta função: relacionar-se obrigatoriamente com o poder executivo.
Na contra mão dessas breves anotações, brinco com o contraditório: pra que não serve um vereador? A lista é longa, mas vale arriscar alguns apetitosos lembretes. Um vereador não serve para se aconchegar com o Poder Executivo e fechar os olhos a tudo de errado ou mal feito proposto por este poder. Não serve para se aproveitar do cargo e vender seu apoio irrestrito e acrítico ao poder executivo. Tampouco serve para se acovardar e se diminuir nas lutas contra um executivo poderoso, fechando-se na minoria e se acomodando no “não dá pra mudar nada”. Um vereador não serve para cometer pequenos biscates eleitoreiros, tais como, oferecer lanches e cestas básicas, dentaduras, cadeiras de roda, pagamento de pequenas dívidas de eleitores, oferecer transportes, etc. Um vereador não serve nunca para comprar votos para se reeleger e nem vender os seus votos nas votações de matérias importantes. Não serve, também, para ser portador de uma das maiores deficiências da alma humana: ter medo. Um vereador não serve para enganar ou fazer promessas que sabe não poder cumpri-las.
Para se eleger vereador o caminho passa basicamente pela filiação e militância em um partido político e pela disputa interna para ser incluído na lista dos elegíveis. Não bata ser filiado a um partido e ser candidato. Disputa-se o voto do eleitor com outros candidatos, do seu partido e de adversários. Mesmo tendo muitos votos, não se garante uma cadeira na Câmara Municipal. Há de se fazer um cálculo, ligeiramente complicado, visto que estas eleições são proporcionais ao número de votos do partido (legenda) e do próprio candidato. Chega-se à definição das vagas e seus ocupantes pelo quociente eleitoral (já tratado em outro texto). Eleito, o vereador terá um mandato de quatro anos. Cada Câmara Municipal tem uma estrutura própria e um regimento também particular, embora sempre alinhados com as leis que disciplinam esta matéria, a Constituição Federal a maior delas.
Ao fechar estas breves anotações sobre a singela pergunta “pra que serve um vereador”, registre-se que o Poder Legislativo é de extrema importância na confluência dos três poderes por ser um ouvidor e representante do povo e por fiscalizar, em sentido amplo, as ações do Poder Executivo. Se não tem sido assim, registre-se também que a razão maior desse desprestígio se deve aos eleitores que escolhem seus representantes e aos representantes eleitos que picareteiam em proveito próprio e fazem vistas grossas às necessidades, demandas e clamores da população.
Um vereador, pela natureza do cargo e das funções, deverá sempre ser um educador político!
Edson Gabriel Garcia, 2024, outubro de festa cívica, em que o ato de votar, mais do que um direito é um dever cívico de primeira qualidade.
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O novo velho civismo à espreita
Não é mero clichê afirmar que a Política se move com o mesmo ritmo descontrolado das nuvens no firmamento. Verdade relativa, mas verdade: você dorme com uma configuração; acorda e muita coisa mudou. Quem poderia imaginar que na eleição para a prefeitura da maior cidade do país, neste 2024, presenciaríamos dois outsiders, um mais inconsequente do que o outro, no discurso e no comportamento, um na mídia e outro nos bastidores, nas barbas de uma disputa para governar o terceiro orçamento? Nem o mais sábio oráculo.
Com este referencial político na mão, venho juntando reflexões, por enquanto nada mais do que reflexões postas à mesa da conversa, sobre o que chamo de “novo velho civismo”. Civismo, aqui entendido como o conjunto de práticas comportamentais, intencionais ou manifestas, simbólicas, linguísticas ou físicas, assumidas como deveres essenciais na vida coletiva tendo em vista a integridade da nação o bem estar do povo. O civismo se confunde, no sentido de misturar significados, com patriotismo, ou seja: a manifestação do respeito pela coisa pública, pela política institucional, pela busca da paz e da honra de ser um cidadão consciente de seus deveres e direitos. E nessa direção, ambos os conceitos se irmanam com “cidadania”, o exercício pleno do civismo, respeito e cumprimento dos direitos e deveres constitucionalmente expressos, tendo à frente o bem estar comum. Civismo e cidadania são palavras de origem comum, do latim, com o significado de cidadão, morador da cidade, na perspectiva da convivência. O civismo também incorpora a palavra francesa “civisme”, com a mesma tonalidade significativa.
Duas observações, em forma de breves reflexões, pedem lugar nessa conversa.
A primeira delas é uma tentativa de caracterizar (descrever) o caráter desse “novo velho civismo”. Sem entrar no mérito de sua origem, por enquanto, esse “novo velho civismo” tem se caraterizado como o conjunto de comportamentos de\pelo a) desrespeito às instituições democráticas; b) deboche da Política e dos políticos; c) comportamento de gado, estúpido, fiel a ordens insanas e à leitura rasteira de fake news; d) culto burro aos símbolos da nação; e) atentos a figuras boçais, surgidas do anonimato, sem tradição e estofo de cidadania, “mitos” de pés de barro, corações e mentes ocas e boca destemperada; e, por último, mas não necessariamente fechando a descrição, f) olhares vigilantes contra a liberdade criativa e libertadora das escolas. Cada um destes tópicos elencados pode ser sobejamente ilustrado por fatos e comportamentos acontecidos na última década. Poderíamos dizer que isto não é civismo. Mas é: um novo velho e conhecido, pesado e violento civismo que vem desenhando as práticas comportamentais políticas mundo afora – nosso país adentro.
Ao passar recentemente por conversas sobre Escola e Política, me dei conta mais claramente do risco que corremos com a tomada do poder legislativo por grupos reacionários, retrógados e direitistas.
A segunda observação, portanto, é sobre a Escola, porta de entrada do civismo. Não vamos esticar a discussão sobre a função da escola neste quesito, na formação do cidadão consciente, crítico e minimamente preparado para viver em sociedade. Registremos que instituições como família, igreja, mídia, redes sociais, entre outras, também influenciam essa formação. É na Escola, entretanto, que essa formação se dá de modo sistemático, focado e controlado. Em uma época com acentuada crise de valores, a briga pela ocupação dos currículos escolares merece nossa atenção. A história recente da educação nacional traz à lembrança as abomináveis disciplinas Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política, bem como a covarde reclusão dos grêmios estudantis a “centros cívicos e diretórios Acadêmicos”, conformando o civismo escolar à decoreba dos símbolos nacionais e à leitura sem significado da estrutura política do país, desconectados da realidade dura da ditadura em que vivíamos. Tempos mornos que vieram com a “redemocratização”, a partir de meados da década de oitenta, não conseguiram lincar a escola com um civismo progressista necessário. Hoje, embalados por uma sociedade que se polariza em quaisquer disputas, por mudanças de valores morais, por muita insatisfação com a Política institucional e com a exacerbação dos desejos e necessidades criadas pelo consumismo, o controle do comportamento passa a ter a escola, supostamente uma panaceia para a cura dos males modernos, como alvo preferencial. Não bastasse o crescimento precário da formação à distância dos educadores e a presença pegajosa do religiosismo pragmático nas fileiras docentes, a Escola se vê ameaçada (ou seria cortejada?) por maluquices deste “novo velho civismo” como a “escola sem partido”, “escolas cívicos miliares”, a exaltação da disciplina (morrer pela pátria e viver sem razão, como provocava no final da década de sessenta o compositor G. Vandré), o culto metódico e protocolar dos símbolos da pátria, enquanto assiste morna e tolerante (ou seria insensível?) a tomada desses símbolos por hordas beligerantes que destilam o veneno do ódio em comportamentos, no mínimo, estúpidos. Lembremo-nos da determinação estapafúrdia do ex-prefeito Jânio Quadros, desprovida de qualquer noção cívica mais significativa, de se hastear bandeira no pátio escolar, diariamente, com os alunos das escolas municipais paulistanas perfilados cantando hinos. Enquanto isso faltavam na Escola autonomia, liberdade, vassouras e itens de limpeza, mastros, bandeiras e aparelhos de som. Foi dele também a compra absurda, no preço e na necessidade, de fitas cassete com hinário para serem distribuídas aos alunos. Práticas de um velho civismo que ainda nos espreita.
Registremos, como último ponto destas breves anotações, que a Escola, à medida em que se expande e cresce em número de alunos, passa a ser um campo minado de disputa do poder, da liberdade, dos destinos dos alunos, uma luta cotidiana contra a ignorância e superstição amadora. A vigilância atenta, seguida de denúncias e movimento devem prevalecer em nossas mentes e corações contra este poderoso inimigo que nos cerca cotidianamente.
Edson Gabriel Garcia, 2024, setembro de primaveras secas dando adeus, abrindo caminho para um outubro aquecido pela festa cívica das eleições.
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Política e Escola: as margens plácidas (parte 2)
Como anunciado no texto anterior, que se completa com este, seguem algumas outras reflexões sobre as relações entre Política e Escola.
Uma consideração fundamental trazida para este início de conversa, pós perplexidade do anonimato e omissão das escolas nas discussões da Política no seu cotidiano, é tentar sugerir algumas ações, alguns caminhos. Não sem antes registrar que não há nenhuma proibição constitucional ou na lei de diretrizes e bases da educação nacional sobre a Escola trazer para a arena escolar a discussão sobre Política. Tampouco há qualquer indício desta proibição no recente Plano Nacional de Educação, Projeto de Lei 2614\2024, que tramita no Congresso, tendo em vista a definição de rumos da Educação Pública nacional, articulando-se aos sistemas estaduais e municipais. Pelo contrário, logo no início do texto, nos propósitos iniciais, entre os itens que estabelecem as diretrizes da educação encontramos no Capítulo II, das Diretrizes, no artigo 3 a seguinte diretriz: “VI – o respeito à liberdade de aprender, de ensinar, de pesquisar e de divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber com base no pluralismo de ideias e concepções”. De cara, este tópico já garante a presença da Política na Escola (a Política como cultura, como pensamento, como arte e sabedoria) e embasa esta possibilidade no “pluralismo de ideias e concepções”. De certa forma (ou de forma certa) Escola tem tudo a ver com Política, pois é certíssimo que a Escola que temos (não a que queremos ou precisamos) é fruto rigorosamente de decisões políticas. Sua estrutura, os profissionais da educação, o currículo (com o gracioso apelido de BNCC), tudo passa por decisões políticas. Não sem razão, as verbas da educação atraem olhares gananciosos dos setores privatistas do país, que correm atrás desses valores das formas mais distintas e indistintas possíveis, travestindo-se de “parceiros, fundações, organizações não governamentais, etc.” oferecendo fragmentadamente ações de apoio, de formação ou gerenciamento de escolas.
Dito isto, com a certeza de que Política e Escola têm tudo a ver uma com a outra, visto que a primeira é determinante na existência da segunda, e que a Escola poderia ser determinante na cultura política, nos perguntamos: a Escola pode lidar com a Política em suas arenas docentes? Pode e deve, sob pena de deixar vazios e buracos – que são avidamente preenchidos por defensores da ideologia zero na escola, da presença inconstitucional e brutal do militarismo na ação curricular, dos agitadores por um novo civismo na escola, pelos revisionistas curriculares que blindam a escola de conteúdos fortemente relacionados com a vida e dos que querem transformar a escola em púlpito de fieis servidores da fé. Pode e deve assumir-se com instituição fundamental, talvez a mais importante de todas, na formação crítica do cidadão. E ponto final. Ou seria ponto inicial? Ponto inicial, pois tudo está sempre em movimento. Por onde começar? Arrisco palpites e sugestões, convites, conversas e propostas, tudo regado a muita disposição de engajamento e outro tanto de velas acesas para todos os santos.
Penso que a primeira ação é cobrar dos parlamentares a que temos acesso que o termo “política” seja colocado no item VI, do artigo 3, do Plano Nacional de Educação, projeto de lei que tramita no Congresso. Sem pecado e com juízo.
Outra proposta é transversalizar, via LDB, o tema “política”, sugerindo que essa matéria seja abordada por qualquer disciplina que se abra para isso (e todas permitem, uma vez que a Política está no preço dos bilhetes do transporte público, na história que contamos, na geografia em que pisamos e respiramos, no investimento na escola em que se estudamos, na matemática do orçamento público de cada ente federativo e nas finanças do orçamento familiar... e vai por aí a fora).
É possível pensarmos em uma disciplina curricular, Política, arranjada de forma transversal em todos os conteúdos ou articulada com temas da realidade de cada escola. Esta proposta pode ser interessante até para substituir os arroubos patrióticos dos desavisados e colonizados por discursos direitistas de que “precisamos ter de volta no currículo a Educação Moral e Cívica”. Nada mais retrógrado, reacionário e passadista do que este suposto “novo civismo”. Um túmulo para a discussão política na Escola.
A Escola precisa se apropriar, não só em períodos eleitorais, do sentido que a Política está em toda ação humana, em todo movimento, em toda decisão e em todos os pronunciamentos. Isentar a Escola dessa discussão é tirar-lhe os pés do chão e colocá-la numa redoma blindada que flutua sem sentido em imaginações precárias. Apropriando-se de sentido vivo da Política, a Escola se abrirá para debates diversificados, entrevistas de políticos e administradores do dinheiro público, visitas a órgãos públicos, conversas com representantes de movimentos políticos da sociedade, elaboração de painéis, de jornais, debates de vídeos, análises de discursos políticos, grupo de estudos, aprofundamentos de estudos das fakes. Ou seja: trazer, de forma ordenada e crítica, para o currículo escolar a Política que rola solta, com acesso incontrolável, nas redes sociais. As possibilidades são infinitas e a criatividade é o limite. O contrário disso é o perigo de continuarmos pensando que casos de violência, por exemplo, na Escola, que levou um aluno ao suicídio, é mera questão de indisciplina que pode ser resolvida com a intervenção policial.
Encerro estas considerações com pergunta que nunca se cala: afinal, “qual é a escola que queremos?”. Entre arrepios, suspiros e palavras de ordem, em meio ao caos político que cerca o mundo, ainda nos faltam respostas mais assertivas.
Edson Gabriel Garcia, 2024, setembro em curso, colocando em nossos corações e mentes, questões novíssimas pipocadas em um mundo conturbado.
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Política na Escola: as margens plácidas
Recentemente topei com a reclamação de um professor sobre a proibição de colocar na porta do seu escaninho a foto do seu candidato a prefeito do município. Pedi a ele que questionasse o gestor\a da escola sobre o embasamento legal da proibição. Não teve resposta – e não terá. Esse episódio, que abunda em nossas redes de ensino, expõe de modo claro e cruel o tratamento que a disciplina social Política recebe nas escolas. Entra ano e sai ano, vem eleição e vai eleição, os sentimentos mais brutais cercam esta festa cívica da democracia: o medo, a submissão, a vergonha, a omissão. Dos comandantes das pastas públicas da educação aos educadores do cotidiano escolar, Política segue sendo tabu curricular. Não faz parte do currículo escolar, não pode ser assunto de sala de aula, não pode ser sussurrada nos corredores, não pode ser exposta na sala dos professores. Como se Política fosse assunto proibido, sujo, fedido, mal desejado, insano, impróprio para o consumo. Como se conversar sobre e discutir Política nas escolas fosse coisa do demônio, injúria bíblica, destempero constitucional. E o fato se acomoda em margens plácidas: os políticos defensores da ideologia da escola sem partido (e sem política) ficam satisfeitos por serem temidos e respeitados e os educadores ficam tranquilos, acomodados no respeito às determinações “superiores”, pois, assim obedientes, não precisam levar para o interior da escola assunto tão incandescente. De um lado, as políticas policialescas dos falsos ideólogos da escola sem partido pregam que escola não é local de se falar e fazer política e ficam a salvo de análises críticas num ambiente que poderia ser multiplicador dessas análises necessárias, mas não é; de outro lado, acossados por gestões assediadoras e legislação ultrapassada, mas proibidora de voos de liberdade de cátedra, vigiados por olhares de incompreensão e premidos por seu diário de vida cotidiano, do qual faz parte, cada mais presente, uma igreja que prega submissões e política de cabresto, os educadores não se posicionam, não se intrometem e se calam. Preferem todos as margens plácidas, ainda que o rio corra caudalosamente carregando no seu leito muita coisa além da água turva.
As consequências imediatas desse comportamento de mão dupla são visíveis. Pelo menos dois estão visivelmente presentes. Primeiro: educadores omissos e acríticos formam (ou deformam) alunos submissos, desacostumados a lutar por seus direitos. O calaboquismo que hoje impera em algumas redes de ensino (negativamente exemplar na rede estadual de São Paulo) atua de diversos modos para silenciar educadores: ausência de concursos para efetivação nos cargos, vínculos trabalhistas precários, formas frágeis de ocupação de cargos de coordenação ou gestão, amortecimento das instituições de apoio democrático na gestão, principalmente o grêmio estudantil e o conselho de escola, formação pedagógica direcionada, entre outros. Asfixiados por assédios constantes e preocupados em sobreviver profissional e economicamente, os educadores se calam e se acomodam na covardia do silencio irritante. E afogam juntos princípios de uma educação libertadora. Segundo: afastam a realidade escolar da realidade contextual em que vivemos. Embrulham a escola numa redoma de vidro e não deixam que os dilemas, as dúvidas e os conflitos de fora entrem no currículo de dentro, gerando uma falsa proteção. Fora dos muros da escola, a meninada e a moçadinha sabem que as margens não são plácidas e que a caudalosidade do rio que corre nas veias do cotidiano arrasta tudo o que vem pela frente, sem segurança: galhos, margens, bancos de areia ou portos. Então, amortizados pelo silêncio dos educadores, de olhos esbugalhados no meio da religião que avança na direção da captura dos corações docentes, que trocam uma discussão bem feita dos problemas da sociedade por promessas de que “deus está no comando”, e avassalados pela torrente de informações fragmentadas nas\das inúmeras telas da vida, crianças e jovens transitam na escola em meio a espaços opacos de aprendizagem e espaços agressivos de respostas a esta escola. A “indisciplina”, o bullying, a agressividade, o desrespeito às regras mínimas de convivência e a ignorância (que pode levar alguns até a imaginar descuidadamente que uma escola com policiais na gestão seja solução) substituem uma possível matéria sintonizada com a Política da vida.
Se a Política está dentro de nossas vidas, cotidianamente, querendo ou não, tendo consciência disso ou não, gostando ou não, vem uma pergunta, dessas que nunca se calam: porque a Política não entra, ainda que transversalmente como conteúdo de urgência social, nas conversas da escola, nas reuniões da escola, nos temas tratados pelas disciplinas escolares?
A escola pode trazer ou levar para os bancos escolares a discussão política, não só em épocas de eleições, estes momentos de oportunidade concreta, sobretudo como seu “dever escolar”. A escola, que aparentemente ainda não percebeu que ela é fruto de “políticas”, não pode se furtar dessa “lição de casa” e encontrar razões e formas para este novo civismo necessário. Sob pena de não mais nos surpreendermos com grupos de alunos, midiatizados e colonizados por uma percepção ligeira de sua realidade, provocando os adultos, educadores de ofício ou não, com os gestos estúpidos dos três dedos centrais da mão para baixo. Se a Política pode nos sinalizar do perigo por fatos como este, a escola tem o dever de evitá-los pelo caminho difícil do diálogo temático.
Voltaremos ao tema.
Edson Gabriel Garcia, 2024, setembro quente e seco, cuja secura não destrói nossas convicções por uma educação libertadora.
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O Poder e as eleições
Há um ditado popular que diz algo parecido como “Se quer conhecer Inácio, dê a ele o palácio”. Um dos entendimentos desse adágio popular pode ser: se você quer conhecer o caráter de uma pessoa, dê a ela o poder. Nada mais sábio, sobre a natureza da alma humana, do que esta afirmação intuitiva do saber popular. O que tem de tão atrativo e tão, contraditoriamente, repulsivo no poder? O que faz com que pessoas fiquem cegas pelo poder? Algumas a ponto de se imaginar como o soberano poderoso do universo ou se auto atribuir o título pomposo de “o Estado sou eu” ou a miragem contemplativa diante do espelho e perguntar ao próprio reflexo se “há alguém mais bonita do que eu”?
O poder atrai pela possibilidade de domínio, de satisfação pessoal, de prazer pelo mando, pelo orgulho de se saber controlador dos destinos dos outros. O poder encanta, é charmoso, atrai bajuladores e seguidores. O poder enseja disputas acirradas, guerras, e todo tipo de crime (genocídios, torturas, prisão, etc.). O poder cega e turva a vista. Lutar pelo poder instiga o uso de todas as armas (mentiras, manipulação de dados e informações, slogans, agressividades, destruição física, etc.) e nem sempre o diálogo faz parte dessa lista. As grandes tragédias da humanidade, como as guerras mundiais, retratam, acima de tudo, disputas pelo poder. Todas as “guerras religiosas” têm, embutida nos embates, a conquista de almas e riquezas materiais. O Paraíso é a promessa metafórica. Poder, riqueza acumulada e domínio caminham de mãos dadas. A riqueza muda de forma: se um dia foram prioritariamente as terras, hoje teme-se mais quem tem o domínio da tecnologia de comunicação e informação. Se antes, temia-se a força guerreira de Gengis Kan, Napoleão Bonaparte ou J. Stalin, hoje o temido é Elon Musk, o big brother da vez. O que vai no profundo da alma humana que luta pelo poder, muitas vezes simplesmente por ter ou estar no poder? Será cada um dos poderosos, tiranos ou não, uma Rainha Louca (personagem de Lewis Caroll, no seu emblemático Alice no País das Maravilhas, que merece ser lido a cada dois anos pelo menos) a ordenar a cada suspiro de desobediência ou contrariedade dos súditos e dos inimigos um “cortem-lhe a cabeça!”?
O que o poder tem a ver com eleições em uma democracia?
Muito. Disputar uma eleição tem, sobretudo, o propósito de o candidato, se eleito, assumir o poder público para que, possa “lutar pelo bem da maioria”. O poder público dá acesso à fama, ao discurso ampliado, e, especialmente almejado, ao dinheiro público. Eleito, um candidato tem aberto o microfone e a imagem para seus discursos e o acesso, ainda que algumas vezes de forma indireta, à chave do cofre do tesouro público. A escolha e voto em um candidato passa, muitas vezes, sem que muitos tenham essa percepção, delegar poder a alguém cuja biografia é especializada em “idiotias”. Nesse caso, a palavra “idiotes” tem origem nos primórdios da democracia grega, com o significado próprio para designar os gregos que se ocupavam dos seus negócios particulares, privados, distantes das questões “políticas” da cidade. Essa configuração permite que arrisquemos chamar este eleitor de “idiota político”, no sentido de que vota num candidato, com biografia inequívoca, que tendo acesso ao poder público é mais preocupado e interessado no poder privado. Eleitor com o perfil de um “idiota político” tem pouca noção da diferença entre o público e o privado, sabe quase nada sobre o tamanho necessário do Estado para atender demandas básicas do bem estar comum da maioria dos cidadãos e escolhe seu candidato em meio a um vazio de consciência política em que prevalecem justificativas de voto tais como “voto no rico pois ele já é rico e não precisa mais de dinheiro” ou “rouba mas faz” ou “esse não é da política e portanto não vai fazer igual os demais”. Este vazio de consciência política abre espaço para o surgimento dos outsiders, fenômeno recorrente em democracias cujo aprofundamento desta consciência é superficial, o sujeito que se vale dessa “despolitização” para chegar ao poder. “Toma posse” do cargo sem preparo, sem conhecimento e sem plano para o que fazer com o poder ganho no voto. Da mesma forma que tempo atrás, a publicidade bem feita quase nos fazia acreditar que a “liberdade era uma calça jeans azul e desbotada”, a superficialidade da consciência política faz crer a muitos “idiotas políticos” que se pode entregar o poder da coisa pública a qualquer marginal debochado. Estes, chegando lá, levado pelos votos e com a chave do cofre na mão, fazem o que bem entendem, geralmente em proveito próprio, idiotias políticas, no sentido grego. Confundem propositadamente o poder voltado para o bem comum com o poder direcionado para o bem privado.
Neste sentido, eleições democráticas, sempre bem-vindas a cada dois anos, têm tudo a ver com a ocupação e exercício do poder em sua concepção pública, com o fortalecimento de partidos políticos sérios e com a escolha consciente de que cada voto é um pedaço de poder que se está dando para alguém exercê-lo em nome do eleitor. Tudo cozido num fogo ardente com ingredientes nem sempre razoáveis: a ligeireza de como a política é afugentada da escola, o universo amplo de fake news que abunda nas redes sociais, a pouca seriedade com que a maioria trata a biografia dos candidatos e pelo desejo de mudança de atitudes da qualidade social da política.
Quem tem o poder de fazer os seus candidatos chegarem ao poder público é o eleitor, graças à liberdade de escolha. Sob pena de fazermos uma revolução dos bichos e levarmos ao poder porcos como Napoleão (do belo livro A Revolução dos Bichos, de George Orwell) que pensam que “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”. Uma pérola da idiotia política.
Edson Gabriel Garcia, 2024, setembro patriótico, confundindo patriotismo com bobagens ditas sem consequências nas redes sociais.
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Cacareco, outsider e novos tempos na Política
Os mais velhos entre nós certamente hão de se lembrar do rinoceronte Cacareco (na verdade, uma fêmea), que veio do Rio de Janeiro para o zoológico de São Paulo, com a finalidade de povoação da espécie animal, e se tornou uma coqueluche entre os paulistanos. A tal ponto que, lançado seu nome na eleição municipal do longínquo ano de 1959, para concorrer ao cargo de vereador, teve expressiva votação de cerca de cem mil votos. Na época, os votos eram cravados em cédulas de papel, daí a possibilidade de se escrever no papel (o papel sempre aceita tudo) notas de protesto, de troça, de revolta, ou qualquer mensagem que anulava o voto. Cacareco não assumiu cadeira na Câmara Municipal de São Paulo, mas alçou voos mais altos tendo sido, inclusive, inspiração para a criação de um partido político na França. O “fenômeno” Cacareco passou à história como um dos eventos políticos de votos de protesto ou nulos mais famosos de todos os tempos a ponto de o então Presidente da República Juscelino Kubitschek declarar sobre o fato “não ser intérprete de acontecimentos sociais e políticos e aguardar as interpretações do próprio povo”.
Isto lembrado nos traz à reflexão que “fenômenos” (palavra cujo significado original é sinônimo de evento, fato, acontecimento, mas acabou por adquirir novo significado como algo extraordinário, fora da curva) “fora da caixinha” sempre existiram. Cacarecos, messias salvadores da pátria, enéas e todo tipo de outsiders sempre existiram e sempre existirão. Voos curtos para pesadelos longos que atravessam o cenário político. Um olhar rápido na história recente do país põe na pauta da memória alguns outsiders, quase todos envoltos em finais políticos trágicos: Jânio Quadros, o homem da vassoura, com a qual varreria a corrupção do país; Collor de Melo, o caçador de marajás e, mais recentemente, o inelegível Jair Messias Bolsonaro, o “mito” que se elegeu pregando a falência da política (da qual havia sido partícipe por quase três décadas de inutilidade) e passou à história como um dos piores presidentes do país. Pela falta de um dos fatores seguintes ou pela composição de todos (falta de estrutura pessoal, falta de base política, desconhecimento e desrespeito ao funcionamento dos partidos políticos e das instituições democráticas), valem-se da ignorância política dos cidadãos, entram no miolo de seus sonhos rasteiros de visão da Política como algo sujo, imoral ou plena de corruptos, apenas assim, e alavancam (falsos) desejos de mudanças. E acaba em renúncia, impeachment ou desastre governamental.
O outsider, palavra de origem inglesa, inicialmente usada no turfe para localizar o cavalo que “corria por fora”, o azarão sem chance de vencer o páreo, hoje também se aplica o termo a uma pessoa “deslocada de um determinado métier”, “fora do grupo”. Na Política, outsider é o candidato impensável que surge aparentemente do nada e vai ultrapassando os adversários. É o azarão que vence o páreo. Antes pouco dicionarizada, outsider hoje é comum na linguagem política cotidiana. Haverá sempre, por perto, um outsider comendo pelas beiradas.
O outsider é um marginal, no sentido de estar à margem, um intruso, não convidado para o baile, que surge quase sempre em cenários de muito desencanto com a Política institucional. Entre muitos outros, nos tempos atuais, alguns fatores contribuem para o surgimento desse forasteiro:
a) a baixa confiabilidade das pessoas nos políticos contemporâneos, estes vistos como picaretas (que cavam somente para si), imorais (que mentem descaradamente), fúteis (que mudam de partido e de ideologia dependendo de seu interesse pessoal) e corruptos (não têm nenhum respeito pelo dinheiro e estão sempre à espreita para saquear o dinheiro público);
b) são pessoas que, mesmo sem trajetória política e nunca filiados a partidos políticos, conseguem perceber a insatisfação de parte grande da população com os políticos e com a Política e conseguem capitalizar esse manancial de insatisfação para suas promessas, geralmente, descabidas, boçais, destrutivas e caóticas; e
c) arregimentam essas pessoas com alto grau de insatisfação, com baixo nível de consciência histórica e política e com muita sede de encontrar quem possa mudar a situação, resolver problemas e satisfazer os seus desejos. Popularmente, o senso comum diria proverbialmente: “juntou a fome com a vontade de comer”.
Outsiders furam bolhas de eventuais polarizações e se projetam num céu de instabilidades, tendo a marginalidade do caminho à sua disposição, o deboche e o discurso “antissistema” na ponta da língua, se instalam arrombando paredes, abrindo caixinhas e vendendo barato uma mercadoria chamada felicidade. E nem podem ser chamados de “terceira via”, visto que arrombam a polarização e não fazem parte do script da Política tradicional.
De certa forma, a Política anda muito pobre de políticos voltados para o bem comum da maioria da população. Dadas essas condições, apimentadas nessa tosca modernidade pelas redes sociais, autônomas, anônimas, fervilhantes, livres de controle, apreciadoras de fake news, os outsiders são verdadeiros fenômenos, no sentido atual da palavra, e acendem o farol vermelho e exponenciam o sinal de alerta para todos os que entendem a Política como a arte ou o diálogo em busca do bem estar comum da maioria e como uma disciplina social necessária.
Edson Gabriel Garcia, 2024, setembro dando o ar da graça, meio sem graça ainda, aquecendo motores dos movimentos políticos eleitorais.
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Quem fiscaliza e controla a execução do orçamento
Uma das tarefas mais difíceis na política de execução orçamentária é a de controle dos gastos do orçamento. O assunto (orçamento) é complexo, tanto na sua origem, como se forma um orçamento, quanto na sua execução. Discute-se demais a composição do orçamento (de onde vem o dinheiro público) e de menos a sua execução (para onde vai o dinheiro público). Talvez propositadamente o olhar dos cidadãos consumidores, pagantes de todo tipo de impostos, seja condicionado a mais reclamar do dinheiro que sai do seu bolso do que conhecer os caminhos que esse dinheiro amontoado no orçamento segue nas suas aventuras. E essa opção ideológica tem propósito e serve aos grupos donos do poder que manipulam os gastos orçamentários mais ou menos à vontade, e que permite, como já escrevemos antes, os vários, mascarados e disfarçados, saques ao orçamento e as criativas contabilidades. O que se fala e se olha, ao convite da mídia, ela também interessada nas benesses do orçamento, é como e porque pagamos tantos impostos (prato predileto da mídia e dos economistas do mercado) e como e porque os governos gastam demais (prato frio que precisa ser requentado à luz da pergunta: quem se beneficia com isso?).
Pouco transparente, nas modalidades atuais, o controle pode – e deveria – ser feito em três níveis: a) pelo povo, dadas as condições para isso – aqui incluídas as organizações não governamentais ligadas ao controle transparente do orçamento; b) pelo Poder Legislativo, eleito, entre outras coisas, para fiscalizar o Poder Executivo; e c) Tribunais de Conta – órgãos técnicos com essa função específica. Seguem alguns dedos de prosa sobre isso.
O povo, o cidadão, pode – e deveria - acompanhar pelos sites dos entes federativos (quando acessíveis à compreensão humana). Pode acompanhar com os parlamentares que elegeu para fiscalizar o gasto público.
O Poder Legislativo, constitucionalmente estabelecido para isso, tem função obrigatória de fiscalizar o Poder Executivo, apontando gastos desnecessários, gastos superfaturados, gastos não justificados, gastos desviados, gastos fictícios, e gastos perdulários, entre outros. O Poder Legislativo, via de regra, não tem feito isso e vem se “vendendo” ao Executivo, formando base de apoio e aprovando as contas anuais. Deveria, mas não o faz. Fica registrada a importância do voto, da escolha, da eleição e da composição do Poder Legislativo.
Os Tribunais de Contas, também constituídos para esse fim, e entendidos por muitos como um órgão do Poder Legislativo, com seu corpo técnico, apontam problemas nas contas dos entes federativos. Por não terem poder de justiça, encaminham os relatórios finais aos parlamentares, para que estes aprovem ou reprovem as contas dos entes federativos. Nosso país tem um Tribunal de Contas da União, vinte e seis Tribunais de Conta do Estado, um Tribunal de Contas do Distrito Federal, dois Tribunais de Contas Municipal (apenas São Paulo e Rio de Janeiro têm tribunal de contas próprio) e Tribunais de Contas dos Municípios (órgão estadual que controla as contas dos municípios de cada Estado. Apenas três Estados têm esse tribunal). De modo geral, os tribunais de conta devem fiscalizar e controlar administradores e outros responsáveis pelo uso do dinheiro público, bens e valores. Pessoas físicas ou jurídicas que usam o dinheiro público, por convênios ou acordos, também devem ser fiscalizadas.
Paralelamente, o Tribunal Superior Eleitoral, embora não seja órgão com as características dos Tribunais de Contas, tem a função, cumulativa com outras, de fiscalizar e aprovar - ou não – as contas dos partidos políticos e dos políticos. Definitivamente aprovada a PEC da Anistia, um golpe financeiro dos políticos no orçamento público e na moralidade política, o trabalho do TSE neste quesito deverá diminuir.
Em resumo, os Tribunais de Conta, apesar do comprometimento da indicação política de seus ministros, compõem com o Poder Legislativo, Ministério Público, Tribunal Superior Eleitoral e Polícia Federal o grupo institucional ao qual cabe a fiscalização, o controle e aprovação dos gastos. No entanto, a figura principal nesse cenário, quase sempre ausente, é o povo, o cidadão.
O cidadão, por direito e dever, deve ser o curador, o tutor e o fiscal dos gastos públicos, a partir dos dados disponíveis pelos órgãos institucionais, principalmente com um olhar atento, para além da questão fiscal (notas fiscais aceitam tudo e mentem muito!), para o que podemos chamar de qualidade social do gasto.
Em outras palavras, o controle da atividade política está nas mãos do cidadão.
Edson Gabriel Garcia, 2024, agosto quase findo, tão cheio de peripécias de movimentos no tabuleiro político.
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Jetom: saque elegante ao dinheiro público
Como afirmamos nos últimos textos sobre o dinheiro público, o pé-de-meia de todos nós, o assunto é vasto e tem diversas facetas. De um lado, a questão da arrecadação, de que forma o dinheiro público que compõe o orçamento, é feita – que vem sendo objeto de longos debates e aprovação de novo arcabouço fiscal nas casas legislativas federais com o nome de reforma tributária. Busca-se diminuir o número de impostos e tornar mais justa a arrecadação como o recolhimento de impostos pelas diversas camadas da população. Costumam dizer os economistas que, por aqui, quem paga mais impostos, proporcionalmente, são os mais pobres, entre outras razões, porque os mais ricos, a elite e os donos do poder fizeram leis que os beneficiam. De outro lado, o uso (gasto ou investimento) desse dinheiro. Parte da despesa é gasta na manutenção do Estado minimamente funcionando, a máquina pública prestadora de serviços com seus equipamentos e servidores públicos. A questão dos salários dos servidores públicos sempre vem à tona, por linhas irônicas e injustas, como se todos esses fossem “marajás” e tivessem salários nababescos, o que nem de longe é verdade. Isso quase sempre acompanhado por denúncias na mídia – que faz de casos pontuais a verdade abrangente, criando no imaginário popular que todo servidor público chora de barriga cheia.
A composição salarial dos servidores, em sua maioria, é feita por uma base e por adicionais conquistados duramente e sem regalias ao longo de suas carreiras. Reformas administrativas e emendas constitucionais aprovadas ou em andamento vêm acintosamente tirando alguns desses direitos, fazendo minguar cada vez mais os pálidos salários da maioria dos servidores. No entanto, como em tudo, a Política está presente, para o bem e para o mal, e faz ou permite suas estrepolias criando castas abastadas de servidores públicos notadamente nas Forças Armadas (com orçamento obscuro e pouco transparente) e nas classes do Poder Judiciário. Costumam ser beneficiados por nacos substantivos do orçamento e têm autonomia par criarem suas benesses. Mas não são apenas estes servidores de “elite” que se locupletam de vantagens criadas legalmente, sem nenhuma conexão com a moralidade dos gastos públicos. Há uma série de servidores do executivo, principalmente, que são beneficiados por um mecanismo chamado “jetom”, pouco conhecido e nada divulgado entre nós mortais recolhedores compulsórios de impostos. Falemos um pouco disso.
Jetom é uma palavra de origem francesa que significa um tipo de remuneração acrescida ao pagamento salarial principal que é devida a agentes e servidores públicos pelo trabalho particular em comissões, conselhos ou outros órgãos colegiados de deliberação coletiva. O jetom se diferencia dos auxílios\penduricalhos do tipo ajuda de moradia, de saúde, de diárias, etc. Também significa, ultimamente com menor frequência, o pagamento adicional ao salário os parlamentares que atendem convocações extraordinárias de seu parlamento. Embora haja limite constitucional sobre o pagamento e recebimento de jetons, na prática isso não se observa e tampouco é controlado, de tal forma que alguns servidores públicos “engordam” substancialmente os seus rendimentos com a participação nesses órgãos\conselhos colegiados, cuja participação é, via de regra, feita dentro de seu horário de trabalho. A falta de controle e transparência nesse assunto permite que a) nada se saiba disso; b) se os preceitos constitucionais de limite de salário são respeitados e c)o que efetivamente é pago e de que forma é pago e se é correto, justo e necessário. Como tantos outros aspectos do orçamento, este também parece ser mais uma forma de “saque”, dentro da lei, aos fundos do dinheiro público. E absolutamente desconhecido pela maioria dos contribuintes – salvo pelos que são beneficiados. A questão poderia ser tratada com transparência se salários e toda sorte de composição destes fossem públicos e transparentes. Se o agente e o servidor são públicos e prestam serviços ao Estado e à população, nada mais correto do que saber o que recebem por seu trabalho. Qualquer tentativa de se fazer isso é barrada na justiça – esta e seus servidores também interessados nessa ocultação de segredos.
Como se vê, muitos assuntos ou temas da Política são tratados como “segredos de Estado” e isto somente mudará com o maior amadurecimento democrático de nossas instituições e com a educação política mais esmerada de todos nós.
Edson Gabriel Garcia, 2024, agosto, mês do folclore, continuemos na luta para tirar a Política do anedotário folclórico e torná-la disciplina séria nas escolas.
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Saqueadores do orçamento: colarinhos brancos e coloridos
Nem só colarinhos brancos estão de olho no butim do orçamento público. Há um colorido em rebuliço à espreita do menor descuido, este quase sempre proposital, para mordidas vorazes no orçamento. Os ataques e saques vêm de todo lado, de cima, de baixo, do meio, da beira... Interessante observar, antes de desfilar o elenco de mordazes abocanhadores dos recursos coletivos, que o orçamento ocupa destaque na mídia por dois motivos: a) crítica contra os impostos, vinda de todos os setores, pois ninguém gosta e nem quer pagar impostos; e b) cobrança pesada sobre o governo para que este corte despesas (claro, estamos falando de despesas essenciais aos funcionamento do Estado, e não das benesses dos setores privilegiados). Por trás disso há uma evidente posição favorável ao enxugamento do tamanho do Estado (que se danem os menos favorecidos) e uma visão do Estado arrecadador como uma seguradora a serviço dos donos do poder. Na prática, isto significa: menos dinheiro para os desassistidos e explorados e mais dinheiro para socorrer ou engordar divisas dos donos do poder. Colarinhos de todas as cores são engomados para a grande festa que é morder nacos substanciosos do orçamento. Listarei a seguir algumas dessas mordidas, coloridas diversamente, suavizadas para os olhos dos descuidados, escondidas para os olhos dos menos atentos, mascaradas para os olhos dos menos interessados, mas sempre polpudas para a elite do poder e para a elite do funcionalismo público.
Salários polpudos, recheados de “penduricalhos”, estes disfarçados de inúmeros jeitos e modos, em forma de “auxílios”, extrapolam qualquer lógica de bom senso, multiplicam por dois ou três os já bem nutridos salários do poder judiciário e das forças armadas. Membros de estafes de governo recebem jetons volumosos por participações em sessões de “conselhos” administrativos. Muitas vezes esses jetons são maiores do que o salário, uma ou duas vezes. Uma triste ironia, se considerarmos que a maioria dos servidores públicos sobrevive com salários miseráveis e com cortes constantes dos poucos direitos feitos nas últimas reformas da previdência (2019) e trabalhista (2017). Para além dessa lambança, muitos desses “altos funcionários de colarinho branco” são isentos de prestar contas ao imposto de renda.
No âmbito da Política institucional, uma novidade criada no governo anterior (2019\2022) é a chamada emendas parlamentares secretas, hoje jocosamente apelidadas de “emendas pix”. Nada pode haver de mais ordinário e imoral do que esses segredos, partindo de quem deveria cuidar com esmero e retidão do orçamento. Essas emendas, verdadeiros cheques em branco com o que se compra o apoio de parlamentares de caráter duvidoso, são distribuídas pelo Poder Executivo, com o controle do Poder legislativo, indo para as “bases” (antes apelidávamos essas bases de curral eleitoral) dos parlamentares sem a necessidade de prestação de contas, zero transparência. Uma farra sem tamanho. Ainda hoje isto vem sendo questionado no Supremo, sem decisão definitiva, com as lideranças da Câmara Federal e do Senado esperneando. Uma obscenidade.
Ainda no campo da Política institucional, a recente aprovação de uma emenda constitucional, conhecida como a Pec da Anistia, em que os autores da emenda aprovaram em seu próprio benefício o mais escandaloso perdão de dívidas de que se tem notícias. Neste passa-moleque os políticos aprovaram perdão a toda a sorte de falcatruas feitas pelos partidos políticos nas últimas eleições com o dinheiro público. Depois da proibição de financiamento de candidatura com dinheiro de empresas privadas, o financiamento passou a ser feito com dinheiro público, e isto envolve regras a serem seguidas e prestação de contas. De certa forma, esta PEC credencia os partidos políticos, que neste ano receberão a fabulosa quantia de quase cinco bilhões de reais, a cometerem todo tipo de falcatrua, de olho num perdão posterior. Um desserviço à credibilidade, já tão abalroada, dos partidos políticos.
Uma outra forma de saque do tesouro público\orçamento é a privatização de empresas públicas. Baseado no princípio do enxugamento do Estado e com números nem sempre confiáveis, o patrimônio público, construído com o dinheiro de todos nós, é entregue, na maioria das vezes, por valores bem abaixo do mercado, aos agentes privados. Exemplo disso, recente, foi a venda da maioria das ações de uma empresa paulista do ramo de serviço público (saneamento), empresa saudável e lucrativa, por valores bem abaixo do mercado, para uma empresa sem notória experiência na área. Operação suspeita, com raras oposições e denúncias na política legislativa e indefinição murista do judiciário. A privatização, como sabemos – e se não sabemos, temos que procurar saber – tem como premissa maior enxugar a máquina, cortando recursos humanos e diminuindo a prestação de serviço, para se chegar ao lucro máximo.
Os contratos de obras são verdadeiros mananciais de possibilidades de saques ao dinheiro do orçamento. Há uma lei geral de licitações que, como toda lei, não cobre tudo e deixa sempre buracos para interpretações. São milhares de licitações feitas cotidianamente pelos inúmeros entes federativos e é quase impossível aos Tribunais de Contas, estes também viciados, controlar tudo. Daí que editais viciados, favorecimento a determinadas empresas (os amigos de sempre), renovação de contratos, recálculos de valores, atraso, desistências no meio do caminho – sem punições - e superfaturamento de obras e respectivas medições dos serviços realizados, entre outros descaminhos, acabam por catapultar os valores das obras públicas, muitas delas com seu valor inicial triplicado. Esses descaminhos abrem brechas para várias formas de desvios do dinheiro público.
Em todas essas formas de ataques e saques ao orçamento público, duas coisas se combinam: a falta de ética de grande parte de nossos políticos e a nossa ignorância na matéria. Ambas se sustentam na baixa qualidade educacional pública sobre o assunto, que é amplo e ainda permite outras abordagens. Voltaremos ao tema.
Edson Gabriel Garcia, 2024, agosto que avança em meio a preparativos para mais uma festa cívica chamada “eleições”.
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Colarinhos brancos
Colarinhos brancos é uma expressão muito usada, pejorativamente, para designar crimes cometidos contra as finanças públicas, embora ultimamente, apesar do noticiário farto sobre o assunto, ter aparecido menos na mídia e nas conversas dos rodapés políticos.
Originalmente se referia aos crimes contra a economia das grandes empresas, cometidos por altos funcionários, gente bem vestida, camisa de colarinho branco, gravata e terno. A denominação, ainda que pejorativa, de certa forma abranda a identificação do praticante do delito, de colarinho branco, mitiga a natureza do crime e alivia para o seu praticante. No século passado, por volta da terceira década, já vinha sendo usado, tendo como explicação mais próxima o costume de empresas americanas situarem seus funcionários pela cor dos uniformes. O branco, sinônimo de pureza e limpeza, identificava os mais altos funcionários. Isso pode parecer – se é que não parece mesmo – que estes funcionários, de confiança, mereciam toda a confiança e, de certa forma, eram compreendidos e tinham suas faltas antecipadamente perdoadas.
Resumidamente, os crimes de colarinho branco são a denominação das condutas irregulares contra a economia e finanças praticadas por homens da Política e dos altos negócios. Daí, a expressão se deslocou, talvez pela incidência maior, para os crimes cometidos por políticos ou agentes públicos, em conluio com outros agentes privados, contra o tesouro público, de forma direta ou indireta, sob lei ou fora da lei, aberta ou disfarçadamente. Em palavras mais amenas, os criminosos contra o tesouro público não eram tão criminosos assim, pois afinal o seu colarinho era branco, sinônimo da elite (que sempre impôs aos pobres a impureza, a sujeira nas roupas e os crimes menos “brancos”). Estudiosos do assunto apontam uma característica interessante desse tipo de crime: aqueles que os praticam entendem que, por serem pessoas da alta sociedade, políticos ou homens de grandes negócios, que se sentem acima das regras e leis, algumas criadas por eles próprios, praticam os delitos como algo comum ou necessário, e não se sentem tão culpados por isso. Buscam justificativas para abrandar o crime e muitas vezes, como é o caso de políticos, postulam algo como uma “corrupção honesta”. São as metáforas da retórica da elite no poder.
No Brasil, a expressão “crimes do colarinho branco” surgiu com a promulgação da Lei Federal 7492\86, na esteira da compreensão já comum na corte americana, para dar nome aos delitos contra a economia pública. Em palavras mais cruas, sem metáforas ou eufemismos, são os “assaltos” ou saques, dentro da lei ou fora dela, direta ou indiretamente, aos cofres públicos. Em um cenário complexo da economia de um país, do nosso em particular, é difícil para a maioria da população entender os meandros das armadilhas dos que se valem do dinheiro público em benefício próprio ou de algum grupo. E por isso, os desvios de conduta, principalmente facilitadas por quem deveria controlar essa situação, os políticos, se sucedem em número muito grande e sem o menor conhecimento da população. Para citar apenas alguns, de uma lista muto grande, os mais falados, que a grande imprensa se permite anunciar, ei-los: sonegação de impostos; lavagem de dinheiro; evasão de divisas; fraudes em licitação ou em contratos de prestação de serviços; nas absurdas vantagens salariais de certas castas de funcionários públicos; fraudes contra o sistema previdenciário; falsificação de documentos; favorecimento de grupos ou instituições no uso e acesso do dinheiro público; formação de quadrilha; uso de informações privilegiadas em benefício próprio ou de grupos, etc.
Todo este cenário se apoia
a) no pouco conhecimento que a maioria da população tem sobre as enigmáticas operações financeiras;
b) na facilitação que os agentes públicos oferecem, certamente porque também levam vantagens, aos praticantes dos delitos;
c) na total falta de transparência no uso dos recursos públicos; e
d) na relativa facilidade de não ter nenhuma apuração e rara punição.
Os efeitos danosos dessa postura criminosa são imediatos, de longo e duradouro alcance. Não se limitam apenas ao prejuízo imposto às finanças públicas, mas principalmente causam danos à ordem social, ao desenvolvimento do país como um todo e, sobretudo, aos que dependem mais dos recursos do Estados para uma saúde, educação e assistência melhor, com mais equidade. Como quase sempre, a elite no poder, sejam os políticos sejam os donos dinheiro e do maior poder de barganha, promulga leis que primeiro a favoreça e monta seus negócios de olho gordo no dinheiro público – que antes deveria ser de todos nós. Por outro lado, a disseminação das ideias tortas de que “tudo acaba em pizza” e que “todo político é corrupto” vão se tornando voz cativa, embalando corações e mentes num sentimento de descrença.
Em meio a este cenário que temos pela frente é conhecer, buscar informações e atuar via instituições que a sociedade civil agasalha e via políticos e partidos políticos, os poucos que ainda transitam no caminho da legalidade e consciência social coletiva. Voltaremos ao assunto.
Edson Gabriel Garcia, 2024, agosto bem-vindo, mês dos cachorros-loucos, que estes não nos assustem tanto e que possamos combatê-los com vacinas eficientes.
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Narrativas Políticas
Nada há, na cultura de um povo, de mais belo, imponente e grandioso do que a sua língua. Não sem razão, e com toda sua sabedoria poética, que Fernando Pessoa afirmou ser a “língua sua pátria”. É a língua a mensageira do pensamento. Bem se expressou Lupicínio Rodrigues, em sua FELICIDADE, “o pensamento parece uma coisa à toa\mas como é que a gente voa quando começa a pensar”. Voar num sentido pleno de liberdade. Quanto mais repertório linguístico, maior e mais amplo, de maior alcance será o voo do pensamento. Paulo Freire, nosso maior e mais internacional pensador das questões da Política Educacional, entre outras, sempre prezou o ensino da língua como um capital cultural de relevância. Em seus conceitos de maior significação para todos nós, em todos os tempos, sempre associou a competência linguística como fundamental para a leitura do mundo, ainda que esta não se exercesse apenas nesta competência. Língua e pensamento, dois irmãos siameses, se auto determinam e constituem o melhor dos instrumentais de compreensão do mundo e intervenção na história. Privado do exercício competente da língua, o cidadão tem vida de menor qualidade social e política. Não sem razão também que os dominadores agem como sua primeira força de dominação de um povo conquistado o apagamento de sua língua nativa.
Da mesma forma que insinua a beleza metafórica (Vinícius e Tom, nos versos antológicos em que descrevem a FELICIDADE como uma pluma ou Chico Buarque, em sua magistral CONSTRUÇÃO, passeia pela delicadeza dos versos e pela grandeza do significado da mensagem, poética e crítica ao mesmo tempo – para ficar apenas nesses dois breves exemplos), guarda e permite o repertório da memória (tantas foram as discussões nestes últimos tempos sobre a triste, cruel e inesquecível ditadura brasileira para que esta memória não seja esquecida ou apagada da história), e que sustenta a comunicação diária, em suas várias modalidades, textos e discursos, a língua é também, mesmo internamente, no cotidiano de uma nação, um poderoso instrumento de dominação. Uma dessas formas de dominação, para além da redução de oportunidades educacionais de convívio competente com o exercício da língua, nas suas vertentes de fala, escrita, escuta e leitura, é a construção de narrativas. Narrativas, aqui entendidas como a expressão linguística que comporta vários tópicos, entre outros, dentro do seu significado: trama, relato, intriga, lenda, logro, reconto, resenha, representação, novela, enunciação, enredo, saga, ficção etc.
Narrativas, todo povo as tem desde sempre. O imaginário, a memória, a história, o sentimento de orgulho e de patriotismo são construídos com base em narrativas, visto que estas devem dar sentido aos significados desorganizados da vida. Não há – nem nunca haverá – um povo sem narrativas, estas em formas de enredos distribuídos por lendas, fábulas, mitos, romances, peças de cinema e teatro. Como um fio invisível que vai segurando e postando a trajetória da história da humanidade. Somos, por natureza, seres narrativos. Narramos, ouvimos, vivemos e agimos com base nas narrativas.
Em Política, as narrativas estão também presentes, estruturando comportamentos eleitorais, posicionamentos ideológicos e mapas de compreensão (ou incompreensão do mundo). Narrativas políticas são construções retóricas, preparadas para serem ditas em um cenário específico, do teatro da Política, em que os políticos moldam o entendimento público do mundo, através de discursos, histórias e mensagens, e com isso influenciam a opinião pública mais ampla ou seu eleitorado. Muitas vezes um político constrói uma narrativa, uma imagem própria, e transmite mensagens que justificam suas ações e posições. Não necessariamente verdadeiras, pois são circunstanciais e apropriadas para agradar um determinado público. Muitos elaboram sua narrativa em torno de valores ideológicos e objetivos políticos com o interesse de compor uma identidade própria, não necessariamente verdadeira. Fazem parte da construção de narrativas políticas a criação de enredos convincentes e a criação de heróis, críticas rasteiras e superficiais, proposição de respostas simples a problemas complexos. Também é comum que as narrativas políticas, em sua retórica de repetição de breves enredos e slogans fáceis, explorem medos, fragilidades e desejos do povo.
Uma das expressões adicionais a essa postura, é o que se chama de “disputar a narrativa”, que nada mais é do que concorrer com os significados criados por uma narrativa política para desmascará-la, desmitifica-la e derrotá-la na luta política. Construir uma narrativa política passa por definir temas/assuntos, fatos, argumentos e dados estatísticos que sustentam a mensagem. Desconstruir a narrativa em disputa passa por desmontar essa arquitetura, muitas vezes falsa e mal estruturada, com o objetivo imediato de manipular eleitores em busca do voto. Nesse sentido, somente a educação política, com seu alcance de análise mais atenta e profunda, permitirá aos eleitores ou interessados nos movimentos políticos uma desconstrução do que há de falso, inventivo e apelativo nas narrativas políticas, Também nessa direção de “disputar a narrativa política”, conhecer, ainda que brevemente, as técnicas da construção da narrativa política usadas por mentirosos, demagogos e incitadores da desordem vazia ajuda a colocar as coisas no seu devido lugar no cenário da Política. Somente a educação política poderá ajudar na análise da desconstrução dessas narrativas, como, por exemplo, uma das mais cruéis e mentirosas dos últimos tempos que é a alcunha de “mito” a um dos políticos mais corruptos, insensíveis e autoritários que bailou no “circo” da Política nacional recente.
Edson Gabriel Garcia, 2024, julho avança em meio a narrativas, fakes, guerras genocidas e desastres ambientais sem que percamos o sonho de um mundo melhor.
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Orçamento em três tons descoloridos
Primeiro tom descolorido: orçamento, corte de despesas e transparência
De modo geral, no segundo semestre de todo ano, uma das palavras que mais ouvimos no âmbito da Política é “orçamento”. Não podia ser diferente, pois se trata de condição fundamental para que um governo possa, no ano seguinte, aprovada a lei orçamentária, efetuar suas despesas (aqui incluídos gastos com servidores, pagamento de juros de eventuais dívidas, investimentos, etc), com base na arrecadação, uma operação aparentemente simples de caixa: entrada e saída do dinheiro. O orçamento público é uma das peças mais complexas de um governo e de difícil entendimento para nós, mortais comuns, desvestidos de conhecimentos mais elaborados de economia. E, diga-se de passagem, nenhum governo, até hoje, fez esforço para tornar esse mecanismo palatável à nossa vã compreensão: transparente, de fácil compreensão, para que possamos discutir, intervir, propor, cobrar. O que nos restam, como as sombras da caverna platônica, são fragmentos ditos aqui e ali. É muito difícil entender e criticar e opinar tendo nas mãos e ouvidos meros fragmentos indiretos. Um desses fragmentos é a crítica constante feita pelos economistas do mercado, dos que visam apenas o seu lucro e sem nenhuma preocupação social com a divisão do que foi arrecadado, sobre a necessidade de corte de despesas. Referem-se, certamente, ao corte de despesas nos gastos e investimentos no serviço público, nos servidores e em programas assistenciais do ponto de vista social. O corte nunca atingirá as grandes empresas, os bancos, os rentistas e os políticos de baixo caráter e bolso nunca satisfeito: estes são protegidos por leis, por incentivos fiscais, pela manutenção de juros altos e pela pressão política sobre o governo. Assim ligeiramente posto, o corte de despesas, metaforicamente chamado de ajuste fiscal, visa tão somente à sobra de dinheiro para os mais ricos. No fundo, a discussão da arrecadação (taxar quem e quais empresas e operações) e da execução do orçamento (gastar e investir em que, quem e onde) é uma discussão essencialmente política, que passa pela discussão do tamanho do Estado que queremos e precisamos. Movimentos políticos econômicos como a privatização estão diretamente relacionados com o enriquecimento de poucos e precarização dos serviços públicos para a maioria que deles precisam. Pela falta de discussão e de transparência não nos damos conta desse movimento.
Segundo tom descolorido: o controle da corrupção
A falta de transparência interessa, sobretudo, aos que praticam a corrupção. A palavra corrupção chegou até nós por “corruptione”, da língua latina. Na origem, significava algo quebrado em pedaços, e, posteriormente, apodrecimento e em decomposição, significado aplicado ao que acontecia após a morte. Atualmente, na língua portuguesa, o significado é parecido: podridão, coisa fedida, significados aplicados aos atos ilegais praticados por políticos, governantes, funcionários públicos e agentes privados. Significado apropriado, pois nada pode ser mais podre e fedido do que o desvio escandaloso e criminoso do dinheiro público por alguns, em prejuízo da maioria e da sociedade. Não há corrupção de um lado só. A corrupção envolve o corruptor e o corrompido, ou seja, quem propõe e quem aceita a proposta. A corrupção é danosa e extremamente prejudicial, pois tira de muitos e transfere para poucos, quase sempre pessoas ou grupos ricos. Os prejudicados com a corrupção são os mais pobres, cidadãos que dependem do dinheiro público para ter uma vida mais justa. A corrupção tem diversas caras e formas, muitas delas dentro da lei, com cara de coisa honesta, entre as quais apontamos: obras públicas com editais marcados; construção de obras desnecessárias ao interesse comum; privatização abaixo do real valor do patrimônio, com compensação ao liquidante; aditamento no valor de contratos públicos; transferências de valores feitas por políticos que, em nome do povo, beneficiam sobretudo suas propriedades; uso de informações privilegiadas para investimentos, etc. Entre essas citadas destacamos as chamadas emendas parlamentares, dinheiro do orçamento público, reservado para parlamentares que repassam para seus redutos eleitorais, sem controle rigoroso, que muitas vezes beneficiam direta ou indiretamente o próprio parlamentar ou seu grupo. As emendas secretas do orçamento, como foram apelidadas pejorativamente, são um exemplo clássico disso. Nem o executivo e nem o judiciário colocaram fim nesse vazamento colossal de dinheiro do orçamento, sem controle político ou econômico.
Terceiro tom descolorido: a PEC da Anistia
Não há milagres: dinheiro na mão é vendaval, pecado capital. A relação dos partidos políticos com o dinheiro público é, a um só tempo, triste e dolorida, escamosa e indecorosa. O dinheiro público retirado do orçamento e destinado ao fundo eleitoral, nos anos de eleição chega a ser indecoroso, pela quantia e pela ausência de controle. Em princípio, proibida a doação de empresas, é justo que as campanhas democraticamente sejam feitas com dinheiro público: transparente, bem usado e rigorosamente controlado. Nada disso acontece, para tristeza dos princípios éticos e democráticos. Para pintar ainda mais fortemente com tons descolorido, a PEC da Anistia (Projeto de Emenda Constitucional 09\23), que perdoa todos os partidos políticos de todas as suas arruaças econômicas com o dinheiro público em campanhas eleitorais anteriores, é um assombro em tempos de dificuldades econômicas de cerco ao ajuste de contas públicas e escolhas de qual prato será colocada a comida. Um descalabro que mancha a Constituição Federal, empobrece a cultura política, suja os partidos políticos que apoiam tal massacre, dá asas a todo tipo de especulação dos que criticam a democracia. Um pecado com perdão caro demais
Tudo à luz dos olhos opacos da sociedade – que não se informa, não cobra transparência e não coloca na parede os políticos nos quais votou.
Edson Gabriel Garcia, 2024, julho de saudosas lutas constitucionalistas, em que alguns perderam a vida por acreditar que a democracia constitucional é melhor para todos.
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Debate público: sinal fechado?
Dois acontecimentos recentes, fartamente noticiados pela mídia impressa, chamaram minha atenção para esta questão prosaica que é o debate público de ideias divergentes. Falo do ataque verbal e destemperado, completamente desrespeitoso das regras e etiquetas parlamentares, à deputada federal Luiza Erundina, naquilo que deveria ser o costumeiro no parlamento, o debate de ideias divergentes. E falo da mais uma estapafúrdia proibição de leitura de livro em escola, desta vez, atingindo um dos autores mais lidos e consagrados da nossa literatura infantil e juvenil, Ziraldo, sob alegação falaciosa de linguagem imprópria para crianças e jovens. Seja em Brasília, São José dos Campos ou Conselheiro Lafaiete, a dolosa proibição por formas toscas e burras do diálogo vem nos assombrando.
Estaria decretado o fim do debate, como o conhecemos, o confronto dialogado de ideias divergentes?
Debates, diálogos, discussões, como se queira chamar o confronto de ideias divergentes é o grande mérito da democracia. É da natureza da democracia dar voz e vez às ideias dissonantes. Negar esta condição à conversa de muita gente sobre assunto de muitas e possíveis interpretações é o mesmo que querer decretar o fim da democracia. Como manter um regime democrático sem a pluralidade das ideias, sem divergências apontadas, sem conversas de tonalidades e acentos diversos, sem o prazer de divergir, sem a maturidade de muitos olhares que cabem na mesma fotografia democrática?
Conflitos, causados pela divergência de sentimentos e pensamentos e ações, existem, provavelmente, desde que os humanos se juntaram para resolver problemas. E, parece-nos, que quanto mais complexa vai ficando a sociedade, mais conflitos surgirão, mais difícil vai ficando a mediação e a solução para esses conflitos. As diferenças dos olhares políticos, dos vieses ideológicos e das nuances religiosas vão compondo visões de mundo aparentemente cada vez mais solidificadas (ou polarizadas em muitos polos) e mais difíceis de se comporem na direção de um entendimento. Parece-nos, pois é difícil fazer afirmações categóricas nesta liquidez social, que posições moderadoras, capazes de construir pontes, ligar caminhos, negociar significados e opiniões e entender também outros lados, estão cada vez mais longe da civilidade. Entrar num debate, hoje, parece exigir a "faca nos dentes" e deixar de lado qualquer sensibilidade para o entendimento. É a defesa brutal de uma ideia, seja por radicalização do excesso ou da escassez de conhecimento sobre o assunto, seja por provocação barata, seja por entender que mais vale estar na mídia, sob qualquer preço, do que buscar atender interesses mais amplos. As etiquetas (aqui entendidas como pequenas éticas) do debate público parecem estar se perdendo: as razões substituídas por agressões e o desarme violento do interlocutor tem mais charme. Vencem os espetáculos performáticos e não o bom senso dos argumentos. Ouvir o outro passa a ser um detalhe de insignificância; melhor mesmo é impedir a fala do outro através de desarmes e armadilhas, coerente com a lógica formal do debate atual.
Alguns pensadores apontam o crescimento exponencial das redes sociais, onde o vale-tudo campeia no ringue e os lutadores preferem a agressão tresloucada sem juízes, árbitros ou mediadores, como a causa deste sinal fechado para o debate público. Prevalecem nestas esferas públicas, para onde o debate público parece ter se locomovido e encontrado cenário apropriado, o tom cinzento do grito e do palavrão, o cheiro nada republicano da farsa fakeniana, o sabor ácido e salgado do autoritarismo unilateral. Daí talvez o clamor por se regulamentar as redes sociais – se é que isto seja possível. O debate público foi deslocado de outras esferas, antes de menor alcance e mais intimistas, como a imprensa, a escola, a família, a praça, o bar, a igreja, o trabalho, ainda que algumas delas permaneçam como palco de debates, na maioria das vezes, predomina uma fala unilateral e autoritária, algo como “me ouça e me obedeça ou faça como eu falo, mas não como eu faço”. Deslocado dessas outras esferas, com a responsabilidade pela qualidade social cidadã sendo terceirizada de modo leviano, para as redes sociais, estas não são apenas os canais do debate, mas são o próprio debate, banalizando regras, corrompendo limites do bom senso e da tolerância, radicalizando, ignorando a possibilidade de mediação. Trazida de outro contexto, mas com caimento perfeito para esse assunto, é como se “a porteira tivesse sido aberta e toda a boiada pudesse passar sem controle social”, ideia defendida em tempos obscuros de governo anterior. De certa forma, enquanto temos o coração e a mente desviados por esses novos tempos e formas do debate público, a boiada continua passando quase invisível. Exemplo disso é a plataforma de redação oferecida como trabalho pedagógico aos alunos da rede estadual de ensino paulista em que, instados a escrever – e, portanto, a pensar sobre o que vão escrever – sentem-se obrigados apenas a preencher um determinado número de caracteres, sem organização de coerência e coesão e lógica de pensamento. Podem digitar uma sequência de letras aleatoriamente e mesmo assim serão bem avaliados. Uma insanidade que contribui para o abastardamento do debate público disfarçada de avanço pedagógico, via plataformização da educação. A indigência mental bancada com rios de dinheiro público.
O que resta, para finalizar estas breves anotações sobre este tema: a)educação ainda é o caminho político da cidadania democrática; b)regulamentação das redes sociais, no que for possível, se faz necessário; c)o conhecimento ainda é o caminho mais curto para se combater desvios das tentativas de aniquilamento do debate público; e, por fim, mas sem finalizar a conversa, o debate público, aberto, rico em pontos alternativos, divergentes ou não, e mediados confortavelmente ainda é o alimento mais saudável para a democracia. Quanto mais, melhor!
Edson Gabriel Garcia, 2024, junho dando adeus, abrindo sorriso para debates de assuntos relevantes na democracia.
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Desobediência Civil e a desestatização do Estado Democrático de Direito
A desobediência civil, de que falamos em outro texto, pode ter uma cara política mais ampla, disfarçada e com ações variadas contra a existência de um Estado Democrático de Direito. Isto, na prática, significa uma orquestração de alguns setores da Política contra o regime democrático, constitucionalmente assegurado no Estado Democrático de Direito (regime político garantido pela Constituição Federal tendo por base posturas e princípios democráticos, entre os quais, basicamente, o respeito e a garantia dos direitos estabelecidos na carta magna). Reflitamos um pouco sobre isso.
Comecemos por saber que é bom que tenhamos a história na mão (e memória, principalmente a mais recente, disponível) para que não nos esqueçamos de fatos políticos abomináveis, os quais devem ser lembrados para não serem esquecidos. E, não esquecidos, que façam parte da história e da memória de todos nós. Embora um contexto histórico dificilmente é repetido, a comparação sempre permite atualizar reflexões. Muito do que foi ontem não precisa ser assim hoje. Também é bom saber que há um crescimento mundial substantivo dos grupos ideologicamente chamados de extrema-direita, cujos princípios agasalham ideias torturantes de negação de direitos, contrárias ao respeito pela diversidade, costumes atrasados, estado enxuto, uso da violência e da força em vez do diálogo. O apagamento da memória e o poder político nas mãos desses políticos pregadores da individualidade burra e autoritária podem caminhar na direção de uma desestatização do Estado Democrático de Direito, no enxugamento deste regime político democrático. Esquecimento, adormecimento de lembranças, falseamento da história e as diversas formas de perdão, a anistia uma delas, põem o branco na página e permite, sem muitas delongas se colocar outra pauta: a desestatização do Estado, a negação do regime democrático desenhado neste Estado Democrático de Direito.
Para além da lida com a memória, convém apontar as diversas ações desses grupos políticos, que ocupam espaços da Política institucional, ou que invadem com eficiência as redes sociais cooptando novas mentes e corações desprovidos de consciência política mais aprofundada e leituras de realidade mais sólidas, presas fáceis, pois provavelmente portadores do medo e da insatisfação com modelos políticos atuais. Vejamos como isso se dá e quais suas principais caras. Uma delas, sem dúvida, é a disseminação do falso fracasso dos regimes democráticos. Põem a tolerância à diversidade, o respeito à minoria e o exercício do diálogo como causadores desse suposto fracasso. A proliferação de projetos de escolas cívico-militares, com sua ideologia do autoritarismo sufocando a liberdade e a criatividade, é um exemplo disso. Creditam a baixa qualidade de muitas escolas públicas à falta de autoridade e não à falta de recursos humanos e materiais para o exercício da educação de qualidade social. Dentro da lei, ou de uma interpretação torta da lei, vão fincando clavas, com o argumento de que a população assim o deseja, e abrindo brechas para o desmonte do Estado Democrático. A privatização, dentro da lei, vai diminuindo substantivamente o patrimônio e alcance do Estado social, em nome de equilíbrio de contas públicas, cuja cara real é o lucro, o enxugamento do estado em suas funções coletivas e sociais e brutal oferta de serviços básicos para grande parte da comunidade. Desestatização do Estado em uma das suas atuações mais básicas: redistribuir as riquezas produzidas por todos. Um Estado enxuto, pobre de patrimônio e recursos, ante uma parcela pequena detentora da grande riqueza da nação. Um Estado grande arrecadador e repassador de parte substantiva do orçamento para as empresas donas dos serviços públicos privatizados. Um bom exemplo disso é o Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo, ontem um equipamento primoroso, hoje um equipamento sucateado, nas mãos de empresas privadas, com escassa possibilidade de atendimento ao servidor adoentado. Sigamos apontando os descaminhos da desestatização: as sucessivas campanhas de difamação do Supremo Tribunal Federal -STF, por suposto autoritarismo e prevalência política sobre os dois outros poderes, incansáveis pelas redes sociais da direita autoritária, indócil e ignara, é outro fato presente nesse caminho da desobediência civil institucional. Por pior que seja a composição do Supremo, ainda é nele que repousa nossa sugurança de guarda da institucionalidade constitucional. Mais ainda: o jogo dos vetos do Congresso Nacional, visivelmente para constrangimento da autoridade presidencial e para cacifar acordos políticos, parecidos com barganhas de fim de feira, sem preocupação com o desenho democrático da sociedade e do interesse da maioria dos cidadãos. Derrubam-se vetos, ainda que essa prática faça parte do jogo democrático institucional, pelo prazer de impor derrota ao governo e trocar esse cacife político por benesses econômicas para parlamentares.
Sozinho, o Estado Democrático de Direito não se segura no prumo pois depende, de um lado, da atuação dos que detém o poder e têm obrigação de zelar por sua preservação e pelo interesse da maioria, e, de outro lado, da atuação da sociedade civil, os maiores interessados. Se o interesse dessa maioria for conflitante – em democracias, o conflito é sempre possível de aparecer, já que é de sua natureza do regime democrático mediar conflitos – com o interesse dos que estão no poder, isto tem que ser denunciado e combatido. Como exemplarmente vem acontecendo no país todo, as manifestações contra as aberrações do Projeto de Lei 1904 (o projeto que equipara o aborto ao homicídio). Luta diária pela manutenção do Estado Democrático de Direito.
O jogo, as negociações, as conversas e as proposições, com base na constituição, fazem parte da vida humana política. O que não devemos aceitar é o desmonte, o desrespeito, o escárnio, o atraso legalizado, a manipulação esperta da ignorância, sob pena de virar uma anomia, um desrespeito geral às regras e leis, o que é perversamente ruim para a maioria. Só é bom para os espertos, maus políticos, picaretas, autoritários, ricos e poderosos.
Edson Gabriel Garcia, 2024, junho amadurecendo nossas lembranças de olho no futuro.
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Desobediência Civil
Matéria recente publicada em jornal de grande circulação nacional discutia com diferentes interlocutores, a maioria deles pertencentes à chamada elite endinheirada, a liberdade de se vestir livremente para frequentar restaurantes da moda, chiques, seletos... As opiniões foram apresentadas, quase todas favoráveis ao respeito ao traje “adequado” exigido por algumas dessas casas de comida badaladas e estreladas, gerenciadas por chefs de cozinha não menos badalados. Predominou o “se não vou de terno à praia não posso ir de chinelo e bermudas num restaurante desse nível”. Seria um desrespeito aos demais clientes. Em meio à leitura, que fiz mais pelo prazer do riso comedido das boçalidades dos endinheirados, me ocorreu que até nessa classe social, dona do dinheiro, da economia e da política, também há episódios de desobediência civil.
E o que é essa tal desobediência civil?
A desobediência civil, explicada em variados textos, é um conceito que expressa uma ação social, um movimento de rebeldia dos cidadãos em uma civilidade, como forma de protesto político. Será sempre um movimento político, contextualizado politicamente, contra – daí o sentimento de desobediência – uma regra ou uma lei vista como exagerada, injusta, que penaliza determinado grupo de cidadãos.
Faz parte desse movimento, além do envolvimento de várias pessoas, que entendem estar no seu direito de protesto, ter como característica ser pacífico, sem derramamento de sangue, não ser violento, e claro, buscar a transformação social. Reforce-se que o sentido político da desobediência civil está sempre no fato de ser coletivo, de envolver muitas pessoas.
O conceito de desobediência civil não é novo. Foi desenvolvido, amplamente discutido em livro, inclusive, por um pensador norte-americano, no século XIX, Henry David Thoreau, revoltado com o montante de impostos cobrados pela nação americana para financiar os gastos, sempre estúpidos e desumanos, da guerra contra os irmãos mexicanos. Embora as pessoas de uma determinada nação, agregadas em torno de princípios que sustentam a unidade nacional, entre os quais os princípios da justiça, o homem, por ser livre na sua natureza, ou querer ser, tem o direito de se manifestar contra determinadas ações de seu governo, quando entender que isto se faz necessário, argumentava. Negando-as, insurge contra elas, e manifesta seu direito de desobedecer a regras, leis, posturas, de um governo autoritário – que impõe obediência aos cidadãos que são contrárias às suas. Ser um cidadão obediente, quando é obrigado a obedecer a leis injustas, não o faz mais cidadão. Daí o direito de protesto, o direito de desobedecer a leis injustas aprovadas por governos autoritários. Ressalte-se que, na defesa do conceito, este pensador político-filósofo norte-americano justificativa a desobediência civil dentro de um contexto cujo movimento cidadão se baseava na busca por igualdade e justiça. Não defendia, desse modo, a mera ação do indivíduo, mas um sentido coletivo de luta por mudança social. Um ato de rebeldia, pacífico, contra arbitrariedades e injustiças. Um exemplo desse movimento coletivo de rebeldia foi a intensa luta, no país norte-americano, capitaneada por Martin Luther king, no século passado, com protestos espalhados por todo o país contra a segregação racial imposta aos negros e a favor dos direitos civis iguais para todos os cidadãos americanos.
A história da humanidade abunda em exemplos. Na Índia, ainda sob o domínio da Inglaterra, Mahatma Gandhi levou adiante movimentos de desobediência civil. Dois deles são símbolos desse tipo de movimento para o mundo todo: A Marcha do Sal, em 1930, 400 quilômetros até o mar, contra o monopólio do sal e impostos abusivos cobrados dos indianos; e a proposição de boicote ao uso de roupas feitas pela colonizadora Inglaterra.
Por aqui, nos idos do regime autoritário militar aconteceram várias ações neste sentido, algumas mais intensas do que outras, entre os quais as greves trabalhistas da região do ABC. Acumulados, estes movimentos foram ganhando força amalgâmica e dando as condições de mudança, alterando as leis e atos injustos da ditadura: fim de cassação de direitos políticos, criação de partidos políticos para além da bizarrice do bipartidarismo, liberdade de expressão, eleições gerais, etc.
Recentemente, o Padre Júlio Lancellotti deu exemplo generoso dessa desobediência civil, em favor dos injustiçados, contra tiranias absurdas, ao quebrar com uma marreta as pedras colocadas sob um viaduto, com o claro objetivo de impedir que os desassistidos ali dormissem. “Há muitas pedras injustas para serem destruídas”, afirmou profeticamente. Quebradas as pedras, a marreta foi pendurada numa das paredes do viaduto como símbolo da resistência e da desobediência civil.
Mais próximo de nossos dias, estupidez à toda prova, os negacionistas e seus seguidores insensatos, tentam impor um movimento de desobediência civil contra o uso salutar das vacinas. Em que pese o ódio destilado por este movimento nas redes sociais, há de se reconhecer, apesar da tresloucada dose de ignorância que sustenta essa ação coletiva, que se trata de um forte movimento político de desobediência civil.
A avaliação do resultado desses movimentos políticos fica por conta da história. Muitas vezes o resultado não é imediato ou tanto quanto o desejado, no entanto fica a semente do sentimento, da luta, da força da reivindicação pela desobediência.
E fica também, para reflexão de todos nós, a questão ética, que permeia toda ação política, da qualidade de cada momento de desobediência civil: são todos, por sua natureza política, merecedores de respeito? Como escreveu, G. Orwell, no seu clássico A Revolução dos Bichos, que “todos os animais são iguais; mas alguns são mais iguais do que outros”, também esses movimentos são todos de igual teor político ou alguns são mais eticamente políticos do que os outros?
Edson Gabriel Garcia, 2024, junho com seu jeito de outono-inverno abrindo espaços para todas as lutas possíveis.
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Caça às Bruxas: perseguições políticas desde sempre
A expressão Caça às Bruxas tem sua origem datada aproximadamente nos séculos anteriores a XVI e XVII, época de seu apogeu. Refere-se a movimentos de perseguição - e, muitas vezes, execução ou cancelamentos, como se diz atualmente - religiosa, política e social. De modo geral se caracteriza por uma investigação tecnicamente pouco aprofundada e muito alardeada, com o objetivo de cancelar, exonerar, punir e castigar politicamente uma pessoa (com o entendimento do termo "politicamente" bem amplo), em razão de supostas atividades subversivas, corruptas, desleais e imorais. Embora seja uma expressão vasada no feminino, o que quase sempre demonstra o preconceito de gênero da gramática, é estendida a toda a forma de perseguição e cancelamento. Acentuou-se no gênero gramatical feminino porque certamente, ao longo da história da humanidade, foram as mulheres o objeto primeiro da perseguição. Na prática o preconceito sexista e o temor da feitiçaria vem desde sempre, pré-história, antiguidade e idade média, começando a diminuir a partir do Iluminismo, quando a crença cega em bruxarias cede terreno aos novos tempos de pensamento e comportamento (o Iluminismo incluiu uma série de ideias centradas na razão como a principal fonte de autoridade e legitimidade e defendia ideais como liberdade, progresso, tolerância, fraternidade, governo laico, separado da igreja, baseado em constituição, entre outros princípios).
Preconceitos à parte, que não é o caso que aqui vamos tratar, o que queremos observar é como, apesar da suposta evolução da humanidade, a caça às bruxas continua fazendo vítimas, cancelando pessoas, jogando no limbo os que pensam diferente, fora da caixinha. É o lado cruel da Política, que lida com o medo e com o irracional no exercício do poder: seja na proibição de direitos, seja na proibição de partidos políticos; seja no cerceamento da liberdade de expressão. O que se observa ao longo da história são episódios, quase sempre de natureza política, embora travestido de religiosos ou sociais, em que o exercício do poder se vale dessas “caças” para anular, aniquilar, executar ou colocar no limbo inimigos ideológicos. São demonizados e literalmente cancelados, no seu tempo, ainda que a história, tempos depois, faça releituras e acomode o modo de agir e pensar do “caçado” às respectivas modernidades. O que antes parecia fazer parte de acordos com demônios ou outras entidades monstruosas, ou manifestasse um pecado frontal contra os dogmas religiosos, é superado e incorporado ao cotidiano. De certa forma, esses comportamentos de quem detém o poder contra os que agem “fora da caixinha” incomodam a sua ignorância e redução do pensamento. Se não pensam como os donos do poder, não podem ter vida normal e devem ser afastados, punidos e tirados da história. É, sem dúvida, um jeito que a ignorância tem de lidar com o diferente, e dessa forma tirar o incômodo da frente. A história da humanidade abunda exemplos: Sócrates, o filósofo grego obrigado a se suicidar acusado de corromper mentes com seu método de evidenciar a ignorância, Galileu Galilei, pensador italiano obrigado a renegar sua teoria do heliocentrismo, para citar dois evidentes “caçados”. Em nosso país, no quarto final do século XIX, o beato Antônio Conselheiro foi morto e sua comunidade dizimada por querer viver uma vida à parte. Capitão Virgulino, o Lampião Rei do Cangaço, que algumas vezes até serviu para poderosos de plantão, enfrentou dezenas de combates com a polícia oficial de seu tempo, até ter o seu bando morto, cabeças cortadas e expostas. Luiz Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança, na primeira metade do século XX, por ser portador de ideias diferentes da ditadura de plantão, foi “caçado”, preso, teve direitos políticos cessados, partido proibido – quase impossível viver.
E assim caminhou a humanidade, apesar do avanço dos regimes democráticos, aperfeiçoando métodos de perseguição, aniquilamento e caça de direitos. Aí estão as redes sociais, desregulamentadas, encruzilhada atualíssima de toda sorte de conflitos, emboscadas, mentiras e cancelamentos, não apenas cotidianamente, mas sobretudo, em época de eleição. O radicalismo e a incapacidade de se adaptar a novas situações e de se respeitar a diversidade, levam candidatos despreparados a demonizar outros, seja pelo fantasma (inexistente) do comunismo, seja pela pregação (mentirosa) de fechamento de cultos e templos religiosos. Aí estão também, os governos de aparência democrática, mas de índole autoritária, a desenvolver, dentro da lei ou com a aprovação de novas leis, novas de formas de “calaboquismo”, de mordaça e de desinformação ideológica. A falta de transparência na execução de políticas públicas e do orçamento contribuem sobremodo para essas práticas obscurantistas que ainda nos assolam.
Caça às bruxas e a desinformação política são parceiras de primeira hora. O antídoto contra isso, ademais contra a ignorância do radicalismo, é a educação política, com base no respeito à diversidade, no conhecimento e no aprimoramento da percepção crítica dos fatos.
Edson Gabriel Garcia, 2024, junho chegando com a alegria das festas juninas, em meio às quais não podemos nos dispersar e esquecer ondas de mau caratismo que permeiam nossas atividades políticas.
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Autoridade e Autoritarismo
Palavras de origem tão próxima, com raiz semântica aproximada, “Autoridade e Autoritarismo” merecem um punhadinho de considerações, visto que ambas estão presentes no cotidiano de todos nós – não apenas em contexto político
Autoridade tem origem latina e significa o direito de se tomar decisões e agir, de respeitar leis e agir em nome delas, de fazer-se obedecer, de poder representar (Autoridade é exercida consensualmente em nome de outro). É, de certa forma, um conceito aberto, que não se fecha em si próprio, cuja terminação pelo sufixo “dade” indica um substantivo abstrato, uma condição.
Autoritarismo, por sua vez, com raiz semântica próxima, também é conceito abstrato caracterizado e sustentado pela obediência total. É um conceito fechado, no sentido de que não admite o respeito pela divergência (o mando autoritário é exercido pela vontade própria de quem usurpa o poder). Como a maioria das palavras terminadas pelo sufixo “ismo”, pressupõe o olhar fixo na mesma direção, na direção do que determina a autoridade autoritária.
Autoridade se baseia no respeito construído; autoritarismo se funda no viés da imposição, da força. Autoridade se constrói com base no diálogo e no respeito à diferença; Autoritarismo se funda no uso da força, da intolerância, do pensamento único. Autoridade é múltipla na forma de pensar o respeito; Autoritarismo é único e inflexível na forma de exigir obediência. A Autoridade se sustenta no exercício do diálogo, na conversa de muitos olhares, no consenso respeitoso das muitas opiniões; o mando autoritário fala, pensa e decide sozinho, acreditando cegamente no seu pensamento único.
Ambas atitudes se sustentam no poder de mando: no exercício do mando por autoridade concedida, o mando é consensual; no autoritarismo, o mando é concentrado, fechado, outorgado. O exercício da Autoridade é o começo do papo; o exercício do Autoritarismo é o fim de papo.
Do ponto de vista político, a Autoridade se filia ao regime democrático enquanto o Autoritarismo se encontra nos regimes autoritários, concentrados, ditatoriais. Exercício da Autoridade se dá bem em regimes democráticos e o exercício do Autoritarismo se assenta em regimes duros, ditatoriais, de força e violência. Regimes com base na Autoridade são democráticos, as leis são discutidas, a Constituição é promulgada, as eleições ocorrem naturalmente. Nos regimes ditatoriais, a censura cala a boca da liberdade, a violência se impõe pelo medo, as leis são impostas (atos institucionais, por exemplo), a Constituição é outorgada. Há uma diferença profunda entre promulgar (deliberar democraticamente) e outorgar (impor autoritariamente). Do ponto de vista da convivência, a Autoridade representa muitos e busca negociar sentidos entre as muitas opiniões ao passo que a atitude autoritária é fechada, radical, navega em caminho único. O exercício da Autoridade compõe com a responsabilidade e com a multiplicidade de entendimentos o seu caminho. Tem-se a sabedoria de que assim é mais demorado e mais difícil, mas é caminho pavimentado com a argamassa da durabilidade. O caminho da pavimentação da Autoridade experimentada em diferenças enriquece a alma humana e a humanidade. O exercício do Autoritarismo compõe com o radicalismo do pensamento menor e único o pavimento escorregadio do seu caminho. O radicalismo do pensamento autoritário empobrece, do ponto de vista da sabedoria humana, a humanidade.
Nossa relação com a Autoridade é sempre política, no sentido de que é uma escolha. Pode-se optar por relação democrática, de composição, de acomodação das diferenças. Como bem observa o professor Vitor H. Paro, em seus pitacos filosóficos, sobre a relação com a Autoridade, “...ela não precisa ser autoritária. Ela é democrática quando o exercício do poder se dá não sobre o outro nem contra o outro, mas com o outro. A obediência acontece não por submissão, mas pelo consentimento livre das partes envolvidas.“ Ou pode-se optar pela via do autoritarismo, esta também uma relação política.
A Autoridade é o caminho da natureza humana democrática, da escolha pela liberdade, pela negociação, pela composição, com a certeza de que mais vozes podem decidir melhor. A liberdade democrática sugerida pela Autoridade pressupõe responsabilidades divididas.
O Autoritarismo é o caminho mais opaco, contrário à natureza humana. Terceiriza as responsabilidades e se esconde nas curvas escuras da omissão.
Decida-se, escolha e viva sua opção, seja por caminho escuro a ser transitado de olhos fechados em estradas pavimentadas pela voz autoritária ou por caminho claro, transitado de olhos abertos e participativos.
Edson Gabriel Garcia, 2024, maio chegando ao fim cobrando as responsabilidades climáticas que os negacionistas autoritários fingem são ter nada com isso.
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Estado e a Solidariedade Humana
O assunto está sempre em voga. Num país com precária distribuição de renda, com instituições de apoio jurídico e social sofrendo frequentes ataques de desmonte, com a economia ditando a última palavra na maioria das ações, com a salvaguarda perene do lucro, essa discussão se faz necessária. Não tenho aqui a pretensão desajuizada de tomar partido em um ou outro lado da conversa, mas gostaria de deixar algumas ideias postadas para futuras reflexões, mesmo correndo o risco de aligeirar a conversa.
O que entendemos por solidariedade. O que entendemos por Estado e qual seu papel político. É possível relacionar estes dois pontos?
Já foi assunto destas conversas sobre Política a definição do que é Estado, diferenciando-o de governos com mandatos definidos. Estado é o conjunto das instituições que permitem a um governo, eleito, mas com tempo de mandato, pôr em prática as políticas públicas. Nesse sentido, Estado é o conjunto de nossas instituições, desenhado pela Constituição Federal, colocado à disposição dos eleitos para governarem o país. Regime democrático, presidencialista federativo, três poderes harmônicos (Executivo, Legislativo e Judiciário). De modo geral, o papel do Estado é colocar em prática as políticas públicas. Estas políticas não são de governos, mas do Estado, do povo. Nem sempre isto acontece, principalmente em regimes democráticos ainda frágeis em que as políticas públicas são alteradas de um governo para o outro, ocasionando rupturas e descontinuidades. Em nossa democracia, ainda frágil, precisando de regas constantes, há uma discussão frequente sobre o tamanho Estado. Estado social, com mais responsabilidades com o povo mais precisado, ou Estado mínimo, com poucas ou nenhuma responsabilidade social.
Solidariedade também já foi assunto de reflexões nossas. A palavra traz em si a ideia de algo sólido, orgânico (todos juntos somos fortes, ninguém solta a mão de ninguém, olhar coletivo... são expressões do povo ao redor desse sentimento). Pelo mundo, pensadores respeitados têm se pronunciado a respeito desse tema. Edgar Morin (1921), filósofo e sociólogo francês, fala de uma “solidariedade internacional” e propõe a restauração da solidariedade entre os mais próximos. Estas ideias, ainda tão longe de nosso cotidiano, apontam para uma outra via do futuro. Como se a solidariedade internacional fosse a grande pauta dos nossos tempos e a única saída para a humanidade, antes da barbárie.
Sobre esta relação, necessária, presente e multifacetada, de Estado e Solidariedade, pontuo duas ideias para reflexões.
A primeira delas é certeza de que o Estado tem que ser solidário com seus cidadãos. Não apenas em tempos e épocas de tragédias ambientais ou belicosas, mas com políticas públicas definidas para esse fim. E isso é uma opção política do modelo de Estado que temos ou queremos. Um Estado Social, preocupado com o bem estar do seu povo, deverá estar preparado para isso, com recursos apropriados e disponíveis. Certamente os que privilegiam o lucro e ganham fortunas com o sofrimento humano, seja em pandemias, em desastres ambientais, em ajustes econômicos ou guerras, não pensarão assim e pregarão para sempre um Estado Mínimo – e os menos privilegiados que se danem. A presença de tragédias, parece, estará cada vez mais presente nos diversos rincões do planeta. A hipocrisia social, a fala forte do lucro em qualquer situação, cortes de gastos orçamentários sociais, guerras sem sentido, tudo isso chama para existência de um Estado solidário, preparado, com instituições de defesa civil capacitadas e com recursos fartos disponíveis. Estado Social e solidário não se faz às pressas e no calor das necessidades emergenciais. Um Estado mínimo e privatizado não serve aos propósitos destes novos tempos.
A segunda reflexão decorre da primeira, é sua subsidiária. A solidariedade em casos de grandes tragédias vem sendo terceirizada para os cidadãos, ao longo dos anos. Pela ação de políticos liberais, neoliberais e ultraliberais o Estado vem sendo esvaziado de recursos para atendimento humanitário quando somos acometidos de grandes tragédias (foi o que vimos na época da pandemia da covid 19, um estado vazio, sem ação, omisso e irônico, muitas vezes atrapalhando a ação de quem estava emprenhado na luta contra o vírus). E essa tarefa passa a ser feita pelos cidadãos que se mobilizam nacionalmente, esquecendo disputas regionais e opções políticas partidárias, e se entregam na tarefa de socorrer quem precisa. A solidariedade – e seu irmão siamês, o voluntariado – deveriam ser complementares, visto que a responsabilidade maior é do Estado. Na esteira do desmonte do Estado, a solidariedade humana assume o protagonismo. Dá conta momentaneamente nas questões básicas da sobrevivência. Os problemas maiores, estruturais, o que realmente vai por a vida em ordem e fazer tudo girar novamente, isto é da alçada do Estado, de um Estado Social que se preocupa e se prepara para esses momentos, frequentes de uns tempo para cá, com fundos especiais significativos, com estrutura de equipamentos e recursos humanos, e agilidade na distribuição dos recursos e proposição de ação.
Assistimos e participamos de um movimento nacional repleto de significação do ponto de vista humanitário enquanto as grandes corporações e poderosos dono do dinheiro, quando não querem lucrar com a tragédia, especulando, salvam seus capitais e ficam na beirada insonsa desse movimento.
Sem perder de vista o movimento nacional da solidariedade do povo, temos que cobrar das instâncias políticas uma política pública estatal preparada, equipada, com recursos humanos e materiais para dar conta de por em ordem a vida de todos os cidadãos, sem depender apenas da valorosa ação solidária do povo.
Edson Gabriel Garcia, 2024, maio de aprendizagens na esteira de tragédias.
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Memória e Política
Tão importante quanto o presente cotidiano é a memória de um povo. Memória é aqui entendida como o guardado acumulado das histórias e experiências vividas por um povo ao longo de sua existência. Há tempos memoriais mais breves e mais próximos e outros mais longos e mais distantes. Ambos fazem parte do DNA de cada um de nós. Um povo sem memória é como um livro com páginas em branco, perdoem a metáfora rasa, onde se pode escrever qualquer história, mesmo as mentirosas, as falsas, as ideologicamente corrompidas. A tragédia de um povo passa sempre pelo apagamento ou mutilação ou branqueamento de sua memória, visto que a vida que se tem para viver é também a vida que se lembra para contar, como já registrava G. G. Márquez, em suas memórias, VIVER PARA CONTAR.
Depois dessa breve e superficial introdução, chego ao assunto de hoje: Memória e Política. E venho trazido pela repercussão que determinada recomendação feita por eminente político brasileiro para que olhássemos para frente e deixássemos o passado para trás.
Começo a conversa sobre isso, buscando ajuda de versos do sempre esteticamente preciso Paulinho da Viola, de sua composição musical DANÇA DA SOLIDÃO, “Meu pai sempre me dizia, meu filho tome cuidado\Quando eu penso no futuro, não esqueço o meu passado”. Há registros de memória coletiva que não podem escapar à lembrança e precisam ser rememoradas para que gerações presentes e vindouras, que não viveram aqueles cenários, possam ter uma compreensão do que aconteceu. Impossível passar pano no registro histórico, tirar do arquivo da lembrança coletiva, em determinados acontecimentos, pois alguns deles são responsáveis por muito do que acontece nos tempos atuais. O medo e o distanciamento da Política entre a maioria dos cidadãos, uma dessas consequências.
O fato histórico ocorrido há sessenta anos atrás, mesmo que para a história da memória de um povo sessenta anos é quase nada, precisa ser lembrado por sua trágica passagem, por sua abordagem criminosa e violenta, pela imposição do medo e da censura e pelo aborto sistemático do diálogo. O golpe de estado imposto em 31 de março de 64, que durante algum tempo foi ideologicamente fantasiado com revolução, tem que ser lembrado, explicado aos que não viveram a época, com detalhes, com fotografias, com biografias, com relatos históricos, com reportagens de jornais não comprometidos, para que, conhecido, em suas facetas cruéis, não possa ser repetido.
Para além da lembrança do que ocorreu, vale repetir, ainda que sem o aprofundamento necessário, já esmiuçado em dezenas de livros e artigos, as semelhanças dos anos do pré-golpe de sessenta e quatro com os anos primeiros do segundo governo de Dilma Rousseff e últimos anos do governo Temer e os anos do governo Bolsonaro: a) crise econômica, certamente causada por fatores políticos; b)crise política com desconfiança do modelo institucional patrocinado pela democracia, em especial pelo desprezo a outras instituições dos três poderes, o Legislativo e o Judiciário, este personificado na figura da Corte Suprema, o STF; c) apoio de parte da elite atrasada (ou inteligente, visto por outro ponto de vista); d)apoio da grande mídia; e e) prontidão das Forças Armadas, sempre de armas nas mãos para servir o país, mesmo que seja contra o país, interessadas nas benesses de se fazer parte de governos autoritários, censuradores e impositores do medo como linguagem do não-diálogo. O concorrente de Dilma não aceitou o resultado e questionou as urnas; Temer forjou de dentro do governo o apoio ao impeachment da Presidente e entregou um país em crise para um aventureiro qualquer que prometeu salvar a pátria. Nessas horas de crise política e econômica, haverá sempre um populista de plantão para negar “a política que é feita” para “fazer a política de outro modo”, quase sempre igual ou pior que o modelo criticado.
No passado um pouco mais distante, a aventura real da ditadura militar, até hoje não responsabilizada pelos crimes de tortura e morte, e, no presente, o flerte (inconstitucional) das mesmas áreas militares conversando com a possibilidade de novo golpe, dando o comando do governo para um militar, ainda que reformado (adjetivo de bom tamanho), não podem ser esquecidas. O fim da ditadura foi de bom lucro para os então ditadores, visto que não foram punidos e de quebra ganharam proteção institucional (Artigo 142, da Carta Magna). Além do que tentam de todas as formas se proteger escondendo fatos e registros, falseando outros e se silenciando sobre muitos acontecimentos. E ainda tentam barganhar, através de seus apaniguados que eventualmente ocupam cadeiras no executivo, incluir na Política Educacional as famigeradas escolas cívico-militares.
Nossa democracia precisa ainda de mais democracia para se equilibrar e se fortalecer. As instituições democráticas precisam ser aprimoradas e fortalecidas. Os ventos da memória precisam soprar sem parcimônia, com a força necessária para arejar mentes e corações e abrir as páginas da história brasileira com esses trágicos registros.
Como afirmou Luis Buñuel, cineasta espanhol (1900 – 1983) e pensador: “Nossa memória é nossa coerência, nossa razão, nossa ação, nosso sentimento. Sem ela não somos nada”. Que a memória continue sendo o farol a guiar os tempos presentes, com a história na mão e o os olhos no futuro. Diariamente.
Edson Gabriel Garcia, 2024, maio misturado por massas de temperaturas elevadas e chuvas trágicas.
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Esse tal Poder Moderador
De tempos em tempos volta à pauta a discussão enroscada sobre o Poder Moderador no nosso regime de governo democrático. Sinal de que o entendimento de que seja isso e como se apresenta não estão resolvidos e nem significativamente pacificados. Como no regime democrático, entrar e sair das discussões é opção livre de cada um, vamos bisbilhotar algumas anotações sobre o tema.
A primeira coisa que ocorre é conhecer o significado dicionarizado do adjetivo “moderador”. Moderador deriva-se do verbo moderar, este de origem latina “moderari”, cujo significado é “dar a medida a”, no sentido de estabelecer a forma, sem excessos, de se fazer alguma coisa. Bem por isso que no espectro significativo de “moderação” podemos encontrar significados como “dar a medida certa”, “evitar excessos”, “conter paixões ou apetites desmedidos”, “tornar-se ou ficar comedido, prudente”. Já se usou muito “moderar” como postura entre debatedores, hoje substituído por “mediar”, com o significado de estar no meio de um conflito ou discussão e buscar solução equilibrada que contemple todas as partes. Por qualquer que seja o ângulo de nossa visão da “moderação”, certamente nesta atitude está concentrada uma certa dose de poder, de mando, de organização, de repressão, de ajuizamento de ideias, fatos e atos. Vem daí, dessa noção de mediar as intensidades acaloradas das atitudes humanas, hoje mais quentes do que nunca, que se inventou o tal Poder Moderador.
O Poder Moderador, na história de nossos regimes políticos tem origem na Constituição Imperial, outorgada (imposta de cima para baixo, sem participação de políticos ou da sociedade civil), em 1824, no Império, logo após a declaração da independência. Constituía-se de um Quarto Poder, coexistindo com os demais poderes, mas sobrepondo-se a aqueles. Talvez pelo contexto político, para harmonizar as tradições políticas da época, esse Poder Moderador concentrava-se nas mãos do Imperador, e só nas deles, como previa o artigo 98 dessa carta magna: “O Poder Moderador é a chave de toda a organização política e é delegado privativamente ao imperador, como chefe supremo da nação e seu primeiro representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos demais poderes políticos.” Ou seja, a moderação, nesse caso, constituía-se em poder dar a última palavra em tudo que acontecesse politicamente no império. Algo meio parecido com “faça o que quiser fazer, desde que eu concorde”. Esse Quarto Poder, autoritário e imperialista, durou até o fim da monarquia, já mais ameno a partir de 1850, quando o imperador criou um Conselho de ministros.
Com a proclamação da República um outro regime de governo foi desenhado no país, nova distribuição do poder, novos atores, sem que, no entanto, a sombra de um Poder Moderador deixasse de pairar sobre nossa precária democracia. Ao longo dos anos de nosso regime democrático, com seus altos e baixos, mais baixos do que altos, a história registra pedaços agudos de poder ditatorial, sob os olhos complacentes e oportunistas das Forças Armadas, exemplarmente registrados na Era Vargas e posteriormente, mais próximo de nossos tempos, na Ditadura Militar, com o destroçamento do Estado Democrático de Direito. A transição da Ditadura Militar, pós golpe e pós tragédia humanitária do governo militar, gerou uma égide protetora dos militares que se apresenta de formas variadas: anistia, impunidade dos crimes atrozes cometidos no período, cobertura ideológica que impede de se contar a história crua como foi acontecida. De quebra, na negociação da redemocratização, com a ditadura já finda por exaustão, os militares continuaram conservando esse escudo, fortalecido pelo medo da violência da força (de quem tem armas nas mãos e podem usá-las quando são contrariados), mantido nas entrelinhas da Constituição Federal de 1988, no famigerado Artigo 142, que para alguns algozes e partidários do autoritarismo ali está consagrado o Poder Moderador das Forças Armadas. Poder esse inexistente no desenho da República Nacional: são apenas três os poderes da República, largamente conhecidos por todos nós (Executivo, Legislativo e Judiciário), com obrigação de entendimento harmonioso entre si e com a justa necessidade de diálogo, sem a menor precisão da interferência do poder armado. Nessa direção, é elocubração delirante entender que no bojo da suposta “garantia da lei e da ordem”, escorregadio assunto do referido artigo constitucional, possa sustentar-se que às Forças Armadas caibam exercer um suposto Poder Moderador. Os poderes da República são três, nenhum deles tem ou deve ter a primazia de acionar as Forças Armadas contra o outro poder, cabendo a estas submeter-se ao poder civil, constituído democraticamente no Estado de Direito. Neste sentido vem se posicionando a Corte Suprema, dirimindo esta suposição delirante.
Aos cidadãos e às cidadãs democráticos e democráticas cabem hoje: a)cobrar uma revisão desse artigo da Carta Magna, para que não paire dúvidas de onde emana o poder republicano; b) cobrar eficiência na apuração de quem atenta contra o Estado Democrático de Direito, fermentando golpes, exigindo punição, conforme definido constitucionalmente; c) lutar por uma definição clara do papel das Forças Armadas, nos dias atuais, em que se discuta, sobretudo, o desenho, o número e o custo dessa instituição e seu papel inalienável na defesa das instituições democráticas, em contraposição às maquinações descabidas de apoio a golpistas com ou sem fardas.
E principalmente, devidamente definido o seu papel de coadjuvante na manutenção do Estado Democrático de Direito, deixe de se apoiar no medo, que armas mal usadas impõem, e em uma violência que não cabe mais nas modernas e vivas democracias.
Edson Gabriel Garcia, 2024, meados de abril. A responsabilidade do diálogo cabe a todos nós, democratas ou não.
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É proibido proibir: escola, censura e liberdade de leituras
Lá se vão mais de cinco décadas desde que um já dinamitador de estruturas carcomidas chamado Caetano Veloso, numa das etapas do Festival Internacional da Canção, 1968, tentou levar adiante sua explosiva música É PROIBIDO PROIBIR, inspirada em frases do movimento estudantil de maio de 68 na França. Numa época em que a ditadura militar brasileira se preparava para dar o golpe mais decisivo nas entranhas da liberdade, com o Ato Institucional 5, ainda havia um contraditório espaço nesses festivais para que artistas – sempre eles e elas – fizessem críticas ao comportamento moralista da sociedade e à censura bravia da ditadura. Foi assim com a atuação do cantor e compositor baiano, naquele festival, com sua música, de estética tropicalista. Triste lembrança de nossa história, uma das muitas, que ficou gravada, e que voltou à lembrança diante de recente episódio grotesco de censura de livros em escolas.
O que resta para comentarmos sobre o citado e estapafúrdio fato de que um determinado livro foi retirado dos caixotes de uma escola, com estranha, mas previsível repercussão entre outras escolas, tendo sua leitura proibida: a liberdade de leituras. Mal sabiam esses censores de meia pataca que o “fruto proibido” é sempre mais gostoso e ao darem visibilidade a esta atitude nada saudável levaram o livro – e seu autor – a uma visibilidade, curiosidade e interesse nunca antes imaginados. Vejamos:
1.Atestam estes inquisidores da moralidade pública seu total desconhecimento do que é uma obra de arte literária. Ignorância literária. Argumentam, em sua tosca fabulação, que o livro tem muitos “palavrões”. Isso é de uma estupidez e de desconhecimento de realidade da juventude sem tamanho (embora com precedentes). Não sabem os “tesoureiros”, aqui no sentido de quem usa tesoura para cortar e podar, que “palavrões” fazem parte cotidianamente do universo dos jovens – e não só deles. E que, dentro de contexto, como é o caso do livro censurado, os “palavrões” se encaixam com lisura, delicadeza e pertinência, como expressão de nossas emoções e sentimentos linguísticos.
2.Atestam estes inquisidores, com esta atitude, que por trás de uma censura haverá sempre algo mais profundo, como a ponta do iceberg que esconde a largueza profunda do resto do bloco de gelo. Escondem esse medo preconceituoso por trás de cortinas de fumaça nada consistentes. Nesse caso, usaram o argumento convincente para poucos do uso de “palavrões” para esconder sua repulsa pelo assunto maior do livro censurado: o tratamento preconceituoso e racista vivido pela personagem. Era isso que sua censura tesourava. Se não fizeram essa poda conscientemente, fizeram por ignorância – o que também faz parte da alegoria fantasiosa dos censores. Têm medo do que desconhecem.
3.Apontam esses predadores do bom senso para um controle cada vez maior das escolas. Exemplo disso foi o barulhento e hoje sepulto projeto “escola sem partido”. Política e costumes deveriam ser temas caros à escola, mas não o são, pois, educadores vivem assediados pelos controladores moralistas do conteúdo escolar. A escola e seus educadores, que deveriam ser os arautos da liberdade temática de conversas, assuntos e discussões, são frequentemente tomados por essas censuras ferozes de mentes estúpidas e avessas às diferenças, às pluralidades e à liberdade de escolha de leituras. Nesse caso, a manutenção de escolha centralizada de livros de leitura para a escola não é uma boa medida. Escola, educadores e educandos devem escolher o que querem ler, dialogando com os diversos títulos e escolhendo-os. Não deixa de ser uma censura prévia, a escolha centralizada, retirando do processo os primeiros interessados na escolha dos livros que querem ler. Isso fecha o debate na escola e permite o aparecimento desses censores salvadores da falsa moralidade.
4.Apontam para uma tendência, de escala planetária que é a pretensa “salvação” do planeta humano pela vigilância e controle de costumes impondo regras fechadas de censura, com pouca ou nenhuma tolerância ao diálogo. Estas atitudes apontam para o surgimento de aproveitadores da “fé” – que há adormecida na maioria de todos nós -, messias e salvadores da humanidade que se instalam no púlpito de igrejas e de áreas públicas da política. Pastores e salvadores da pátria se aproveitam desse espaço de crítica ingênua de comportamentos e constroem seu discurso, sua fama, sua fortuna e sua hipocrisia. Sem nada contribuírem para o “tesouro” nacional, em todos os sentidos.
O que há pra fazer?
Muito, cotidianamente. Posicionamento público contra a censura, elogio ao diálogo, ao conhecimento, incentivo a todas as práticas possíveis de leitura, cobrar políticas públicas para escolas de qualidade, criar movimentos públicos – de quaisquer tamanhos – contra a censura e pela liberdade de expressão. E ter, na mente e no coração, como princípio de vida que há muitos avessos de pele, parodiando aqui a metáfora encantadora que dá título ao livro censurado de Jerferson Tenório, O Avesso da Pele, pois muitas vezes, é no avesso da pele que está ancorada a vida de outra pessoa. Que fique decretado, de uma vez por todas, que é proibido proibir visitar outros avessos. Eis a plenitude da vida.
Edson Gabriel Garcia, 2024, abril já andado nos seus princípios, mês simbólico de luta pela liberdade.
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FORÇAS ARMADAS: novamente em pauta
Novamente as Forças Armadas entram na pauta de muitos de nós, seja porque acusações de corrupção envergonham a classe, seja porque a corporação está no meio de suposta tentativa de golpe, seja porque questionamos o seu custo-benefício, como fazem os economistas financistas. Afinal, para que servem as Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica)? Para defender a Pátria, resposta imediata e objetiva, cujo entendimento passa por longos questionamentos, alguns dos quais já tratamos em outros textos, aos quais voltamos.
Historicamente a definição do papel que cabe às Forças Armadas é definido pela Constituição e por outros documentos legais infraconstitucionais (leis/decretos), com base em um corpo estável, disciplina e hierarquia. Na atual Constituição o assunto é tratado, mais detalhadamente, no artigo 142, institui para além da defesa da Pátria, dos poderes constituídos, a garantia da lei e da ordem. Para alguns analistas, este pequeno “descuido”, ensejador de clima pro-golpes, foi pensado como um suposto quarto poder, poder moderador, que em tese não existe constitucionalmente (são três os poderes do nosso Estado Democrático de Direito, como sabemos). Este lusco-fusco de poder a maior não melhora o desempenho das Forças Armadas e tira o foco de sua função precípua, a defesa – não o olho belicoso de ataque. Esta interpretação de que a garantia da lei e da ordem, pelo artigo 142, estendido aos chefes dos três poderes, é equivocada e serve apenas para reforçar ideias de golpistas, de políticos incapazes de lidar com os conflitos próprios da democracia, que preferem politizar a desejada isenção das Forças Armadas incitando-as à inobservância de suas obrigações constitucionais e levando-as a sonhar com um poder que é civil e não militar.
O que significa defender a Pátria? Defender contra quem? Inimigos de fora? Ou de dentro? quem são os inimigos contra os quais precisamos de defesa? As nossas gloriosas Forças Armadas, cujo custo é uma caixa de pandora, com guardados inacessíveis, há muito tempo vem se constituindo como um organismo de defesa de sua auto sustentação e da defesa de governos militares, de governos que priorizam a força e o autoritarismo. Fogem do princípio de que o poderio militar deve servir ao poder civil. A história demostra que, ao longo da história, notadamente nas páginas da República, vem se atestando mais como um braço armado de sustentação pela força de regimes autoritários e militares do que na defesa da democracia. E, também, ao longo da história, os crimes cometidos por seus integrantes, em nome da defesa da Pátria, ficaram escondidos debaixo do tapete sujo da censura, perdoados por anistias nada confiáveis ou pela absolvição de sua própria Justiça Militar (como diz o povo, em sua infinita sabedoria intuitiva, "é como colocar cabrito para cuidar da horta").
Seriam as Forças Armadas inimputáveis? Podem, em nome da defesa da Pátria, cometer qualquer deslize, qualquer crime, como participar de arquitetação de golpe contra o regime político que deveria defender, e ficarem impunes, como instituição? Qual o temor que imobiliza governantes civis de colocarem num júri os autores militares de crimes contra a Pátria - que juraram defender? É isto que justifica a existência de uma Justiça Militar - e seu órgão máximo, o Superior Tribunal Militar, composto em sua larga maioria por militares da ativa? Um corporativismo, tão criticado em outras instâncias, dedicado a salvar e perdoar militares envolvidos em crimes? Em tese, a Justiça Militar, criada em 1808 e integrada ao Poder Judiciário sob as asas autoritárias de Getúlio Vargas, não deveria ser tão rigorosa, ou mais, quanto a justiça civil? Qual o temor?
Seria aquele o mesmo temor de discutir mais profundamente a existência do Artigo 142 da Constituição Federal, que deixa em aberto um suposto poder moderador, fincado entre os três poderes da República, como um eterno machado nas mãos de uma Rainha Louca, num país sem maravilhas, pronto para decepar cabeças? Teria essa negociação da inclusão por fórceps do referido trecho no caput do citado artigo 142 na Carta Magna, na trôpega redemocratização, uma concessão dos democratas aos inclinados e órfãos da ditadura? Ora...ora... o que garante a lei e a ordem é democracia, a negociação, a conversa, o diálogo... e não a ameaça de intervenção do poder autoritário, disfarçado de moderador.
Embora a responsabilidade por seus atos descaminhados não seja o seu forte, as Forças Armadas ainda são uma instituição respeitada pela população, com grande aprovação, mesmo quando parte substantiva de seus membros se metem na Política, e nela se ofuscam em atos de desmandos e corrupção. Interessante indagar se o que sustenta essa aprovação: o medo da força, a necessidade de se sentir protegido, a inculcação ideológica de que estamos e somos protegidos, mesmo num mundo completamente novo e repleto de armadilhas tecnológicas de ataque, ou o crédito oferecido pela falsa - falsa porque genérica - suposição de que os militares se colocam sobre todos os demais servidores da pátria, como cidadãos acima de qualquer suspeita?
Relembrando que os membros dessa força são servidores públicos e, como tal, devem servir ao povo e à nação, sem privilégios e sem a tutela do medo imposto pela força. O mundo atual pede revisão de muitos aspectos da constituição de uma nação, do Estado, da relação entre os poderes, dos poderes, simbólicos ou não, das prioridades, enfim. Aqui para nós, são releituras obrigatórias, em busca de respostas para as indagações seguintes: 1.Qual o papel das armas físicas e pesadas num mundo totalmente mapeado e sinalizado por armas tecnológicas muito mais poderosas?; 2. Qual o real custo de manutenção de milhares de instalações e militares de prontidão? 3.Qual é o inimigo iminente: os vizinhos, os distantes, os de fora ou os de dentro?
Reler e reencontrar caminhos para as Forças Armadas é uma dessas revisões necessárias, sob pena de continuarmos cantando os providenciais versos de Caminhando, do Vandré, que embalou nossos corações rebeldes há mais de cinquenta anos, “Há soldados armados, amados ou não\Quase todos perdidos de armas na mão\Nos quarteis nos ensinam uma antiga lição\De morrer pela pátria e viver sem razão”.
Edson Gabriel Garcia, 2024, março de desencontros climáticos mundo a fora e outros tantos desencantos de guerras aquecidas pelo olhar alucinado de chefes autoritários de estados.
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Quem é o dono da Terra?
Três fatos, de naturezas diferentes, me puxam para uma reflexão absolutamente “fora da caixinha”, mero exercício do livre pensar. Como a liberdade de pensamento é total, dentro dos domínios de repertório de cada um de nós, vez ou outra me pego a pensar em coisas cuja resposta não tenho. Conclamo todos a pensar comigo e, como eu, arrisquem respostas: quem é o dono da Terra?
Retomo o que escrevi no início do primeiro parágrafo, os tais três fatos, de natureza distinta, que me fazem dividir com vocês esta reflexão. O primeiro deles, do qual tomei conhecimento em uma matéria, sem muito destaque, num dos grandes jornais da mídia impressa, dava conta de que fazendeiros “donos de terra” de diversos estados da região mais ao sul do país estavam se organizando e montando uma espécie de força armada (esta expressão sempre carregada de muitos significados) para proteger eventuais ocupações de suas terras por trabalhadores sem-terra. Argumentavam, basicamente, que se a justiça brasileira é lenta e não resolve a questão, da forma como gostariam que fosse resolvida, eles resolverão pela força. Luta cruel e bruta pela posse da terra. O outro fato, este largamente comentado por toda a mídias, em todos os canais das redes sociais e em todas as rodas de conversa, oficiais ou oficiosas, é o que se tem chamado de holocausto (com ou sem precisão no uso do termo), genocídio ou extermínio dos palestinos imposto pelo governo sionista de Israel. Por trás dessa carnificina, poucas vezes vista antes, está a luta pela terra do poderoso exército israelense, coadjuvado pela potência norte-americana, contra os destroçados palestinos espremidos em duas faixas de terra em meio ao território do inimigo. Luta cruel pela posse da terra, prometida ou não. O terceiro fato, este tão somente presente na imaginação literária de quem o conhece, é a saga do retirante Severino, descrita com maestria poética por João Cabral de Melo Neto, no seu maravilhoso Morte e Vida Severina, depois transformada em texto teatral e musicado por Chico Buarque de Hollanda (dois gênios da literatura brasileira) se debruçando sobre as relações dos homens com a terra, de cuja obra retiro os versos seguintes: “ É uma cova grande pra tua carne pouca\Mas à terra dada, não se abre a boca\É a conta menor que tiraste em vida\É a parte que te cabe neste latifúndio\É a terra que querias ver dividida\Estarás mais ancho que estavas no mundo\Mas à terra dada, não se abre a boca”. Luta perdida para a terra imponente.
Com o relato desses três fatos\episódios, em que a luta pela terra, pela vontade bélica de fincar a bandeira da propriedade pessoal, particular ou de grupos, volto à reflexão inicial, motivadora dessas reflexões: de quem é a Terra? A Terra tem dono?
Quem um dia, em priscas eras, cercou um pedaço de terra e proclamou: isso é meu? Seguido por todas gentes e todos os povos e todas as cores e etnias, todos os credos e todas as valentias, declarando “isto é próprio de mim; isto é minha propriedade”. De quem é a riqueza natural da terra? A água, o chão, as florestas, os minérios, o petróleo, enfim, pertencem a quem? A quem chegou primeiro, a quem se instalou, a quem usou a força pra expulsar outros, a quem burla leis sociais e faz da riqueza da exploração da Terra seu objetivo de vida?
No final dos anos oitenta, do século passado, 1987, foi pensada pela primeira vez uma carta de princípios em defesa e respeito pela Terra. Em 1992, no evento conhecido como ECO 92, em que foi realizada a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, foi elaborada a primeira versão do documento que ficou conhecido entre nós como A CARTA DA TERRA, devidamente ratificado pela UNESCO em 2000. Organizada em quatro grandes tópicos, apresenta dezesseis princípios (que vale a pena conhecer). Os quatro tópicos: I. Respeitar e cuidar da comunidade da vida; II. Integridade ecológica; III. Justiça social e econômica; e IV. Democracia, não violência e paz. O primeiro princípio, do primeiro tópico, é “respeitar a terra e a vida em toda sua diversidade”. O mesmo respeito que o Cacique Seattle, indígena norte-americano, nos longínquos anos 1854\55, respondendo ao governo, ante uma proposta de compra das terras indígenas, pergunta, de volta, como resposta: “É possível comprar ou vender o céu e o calor da terra? Se não possuímos o frescor do ar e o brilho da água, como podem compra-los?” E no calor das conversas, nem sempre amistosas, cuja história forjou em nossa memória ideológica uma luta vitoriosa dos americanos contra os indígenas, usurpando a sua terra sagrada, o Cacique Seattle insiste: “A terra não pertence ao homem; o homem pertence à terra”.
Inquilinos somos nós da Terra. Péssimos inquilinos, por sinal. Brigamos por algo que não é nosso, nunca foi e nunca será. Brigamos, nos matamos, violentamos a dignidade humana por pedaços de terra, uns enriquecidos nessa luta, outros abandonados ao próprio destino, incapazes que somos de dividir as riquezas emprestadas da natureza a todos nós.
Teria fundamento a pergunta do chefe Seattle? A Terra tem dono?
Ou, parafraseando a letra caprichada da antiga canção GAROTA SOLITÁRIA, de Adelino Moreira: “Você tem o destino da Lua\a todos encanta \e não é de ninguém...”
Afinal, a Terra tem dono?
Edson Gabriel Garcia, 2024, março das águas quase findas e da terra que nos abriga.
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Reeleição ou re-eleição?
Dúvida cruel, mas nem de longe a questão principal desse instituto eleitoral brasileiro, que volta a ser discutido no legislativo. A dúvida, o questionamento, não está na forma ortográfica de se registrar a palavra. Nem de longe... A polêmica se instala, atualmente com mais intensidade, na utilidade, nos benefícios ou malefícios, que este instituto trouxe para a democracia brasileira. A reeleição fez ou faz bem ao regime democrático brasileiro? À Política brasileira? Aos brasileiros, de modo geral? Eis a questão.
A reeleição foi instituída no Brasil, em 1997, pela Emenda Constitucional número 16, aprovada pelo Congresso Nacional, no primeiro governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, fermentada desde o início desse seu mandato, em meio a uma enxurrada de denúncias de compra de votos favoráveis, denúncias comprovadas e apontadas pela mídia, à época, mas que nunca foram devidamente apuradas (sobre a compra de votos de parlamentares para projetos do Executivo que tramitam no Legislativo há que se dizer que este instituto político não está explicitamente proibido ou liberado em nenhum documento legal, embora sua vigência date desde sempre). Entre outros argumentos para a aprovação do projeto de emenda parlamentar, dizia-se que mandato de quatro anos era pouco para um governante realizar sua política de governo e temia-se (?) pela eleição de Lula, argumento frouxo, como se viu na história posterior. Votada e aprovada a Emenda Constitucional (item acrescentado à Constituição Brasileira, emendando-a), esta começou a valer já para o mandato do presidente em exercício, permitindo, ainda no embalo do Plano Real, sua desejada reeleição.
A reeleição caracteriza-se como a possibilidade de um governante (prefeito, governador e presidente) ocupar sucessivamente um novo mandato no cargo que exerce. Este tipo de instituto político faz parte de regimes republicanos, especialmente nos regimes presidencialistas (já que nos parlamentarismos isto não ocorre dessa forma, pois o parlamentar que ocupa a chefia do estado representa um partido ou uma coalizão e não tem o tempo previamente determinado). Assim, prefeitos, governadores e presidentes podem concorrer a um segundo mandato consecutivo ao final do seu mandato. A volta ao pleito eleitoral de um governante que tenha desempenhado um mandato e tenha ficado um período sem mandato no mesmo cargo não se configura reeleição, ficando esta condição determinada apenas quando se trata de mandatos consecutivos.
A maior crítica que se faz atualmente – e já se podia considerar esta crítica na ocasião da aprovação da emenda constitucional – é que o político eleito para um mandato já começa a pensar no segundo mandato desde o primeiro dia do primeiro mandato. Pressupõe-se que esta crítica, mais que legítima, signifique que o mandante do governo toque o seu mandato de olho na reeleição e não, necessariamente, no seu programa de governo ou no que se comprometeu com seus eleitores. Tendo a máquina governamental nas mãos pode dispor dela para sua propaganda pessoal e para acertos futuros que comprometam o orçamento com causas não prioritárias para a política voltada ao interesse da população. Também pode-se levantar como crítica a essa atuação eleitora pela aventura de um segundo mandato, acordos de apoio que resultem em compromissos não interessantes para o ente federativo. Se o governante vem titubeando na aprovação de seu governo, o custo do apoio à governabilidade é maior ainda, com os partidos da base de sustentação “vendendo” mais caro ainda o seu apoio. Um exemplo exemplar – perdoem a redundância tautológica – dos custos paralelos e indiretos de apoio à reeleição é o acordo nebuloso que a prefeitura de São Paulo fez com o governo estadual, aceitando, com base nos princípios nada claros da municipalização do ensino fundamental, o recebimento de cinquenta escolas estaduais, a maioria sucateada, como vem fazendo o atual governo estadual com a maioria das escolas da rede, que passam a ser administradas pelo município. Costuras de bastidores, quase todas opacas para a maioria dos cidadãos, são, via de regra, nefastas ao interesse dessa maioria. Por último, sem esgotar o rol de críticas à reeleição, pode-se afirmar que essa continuidade no comando do executivo é responsável também pela dificuldade de surgimento e aparecimento de novas lideranças políticas.
E, finalizando estas breves considerações, a gramática da língua portuguesa não tratou, na última reforma ortográfica, das formas de uso do prefixo “re”. Assim, ficamos sem saber, por enquanto, a resposta da douta Academia Brasileira de Letras (que promete para breve a publicação de um vocabulário ortográfico). Pelo sim, pelo não, como acontece em tantos outros casos, o uso vai consolidando a grafia de uma palavra, mesmo que, às vezes, contra o nariz empinado dos estudiosos da história de uma língua, e ficamos com o registro mais comum, sem hífen: reeleição.
E que a falta do hífen não nos atrapalhe nas reflexões políticas!
Edson Gabriel Garcia, 2024, março de poucas águas e promessa de boas discussões políticas.
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Democracia, transparência e corrupção
“Quem ama, cuida”, sugere sabiamente um provérbio popular. O amor exige compromissos e comprometimentos, uma rega constante de olhares, abraços, aproximações, cobranças e partilhamentos. Talvez por isso sobreviva. Quem planta, rega, aduba e cuida, colhe bons frutos. Mesmo sabendo que nem tudo que diz a sabedoria popular reflete bom senso, é possível puxar uma discussão sobre a relação da democracia com a real percepção da transparência e da corrupção.
Em Política tudo é movimento. “E, no entanto, se move”, pregava Galileu, nos tempos de obscuridade científica. E se move em várias direções, com muitos assuntos em pauta. Que relações podemos levantar entre estes três temas tão caros?
Deixemos claro que o significado de transparência sobre o qual faremos essas breves reflexões vai na direção de que a transparência é uma característica daquilo que não possui duplo sentido, do que se apresenta com clareza, que “permite a luz atravessar a matéria ou o material”, implicando em abertura, comunicação e responsabilidade. E nesse sentido, por esta razão, deveria ser um componente básico da estrutura da democracia, sem opacidade, sem pedaladas, sem escorregões, sem jargões. No sentido que tudo o que se quer saber esteja posto às mãos, com clareza, permitindo uma visão que vá além da aparência. A complexidade das sociedades atuais, e da Política posta em prática, torna difícil olhares amplos de todos os movimentos dentro dessa trajetória. Um orçamento, e sua execução, por exemplo, entre tantos outros movimentos dentro da Política, é tão complexo, propositadamente ou por sua própria natureza, que é preciso estudar com dedicação e afinco as operações nele definidas. E nem sempre o resultado é claro, transparente. Para ficar em um exemplo, bastante elucidativo dessa dificuldade, lembremos a obrigatória prestação de contas dos gastos que cada município tem com as verbas recebidas do Fundo para o Desenvolvimento da Educação Básica – FUNDEB, quase nunca transparente. Professores e vereadores de muitas municipalidades recorrem a outros meios para exigir que a prefeitura preste conta com transparência desses gastos, em que pese a existência de um conselho municipal de acompanhamento e fiscalização dos gastos dessa verba – via de regra, apesar de legislação sobre o assunto, conselho formal, manipulado pelos prefeitos e por conselheiros mancomunados com a administração.
A falta de transparência interessa, entre tantos descaminhos, à prática da corrupção.
A palavra corrupção chegou até nós pela palavra “corruptione”, da língua latina. Na origem, significava algo quebrado em pedaços, e, posteriormente, apodrecimento e em decomposição, significado aplicado ao que acontecia após a morte. Atualmente, na língua portuguesa, o significado é parecido: podridão, coisa fedida, significados aplicados aos atos ilegais praticados por políticos, governantes, funcionários públicos e agentes privados. Significado apropriado, pois nada pode ser mais podre e fedido do que o desvio escandaloso e criminoso do dinheiro público por alguns, em prejuízo da maioria e da sociedade. Não há corrupção de um lado só. A corrupção envolve o corruptor e o corrompido, ou seja, quem propõe e quem aceita a proposta. A corrupção é danosa e extremamente prejudicial, pois tira de muitos e transfere para poucos, quase sempre pessoas ou grupos ricos. Geralmente, os mais prejudicados com a corrupção são os mais pobres, cidadãos que dependem do dinheiro público para ter uma vida mais justa. Corrupção é terrível do ponto de vista ético, pois as pessoas em quem devíamos confiar (governantes, parlamentares e, algumas vezes, membros do judiciário), a quem entregamos o direito de nos representar e usar bem o dinheiro público, são as que praticam atos corruptos.
Que relações podemos estabelecer entre democracia, transparência e corrupção?
A primeira relação é sobre a percepção da corrupção na democracia, que parece quase sempre ser maior do que nos regimes fechados. É preciso afastar a noção de que há mais corrupção na democracia por causa dessa percepção e que isto somente é possível porque as denúncias são mais visíveis e a liberdade da imprensa permite estas denúncias. Aparecem mais em regimes abertos porque são mais denunciadas e esta condição não deve influenciar negativamente o ânimo das pessoas com relação ao regime democrático. Uma outra relação é que a falta de transparência, que não combina com democracia, oculta propositadamente atos da corrupção. Números não contados ou mal contados, no escuro das operações, fazem mal à democracia pois escondem a corrupção.
Dessas breves observações podemos inferir que transparência e corrupção, sua irmã bastarda, gerada pela ausência daquela, fazem parte do movimento político e exigem acompanhamento, controle, apuração de responsabilidades e punição necessários ao fortalecimento da democracia. Aqui e ali, organizações não governamentais se ocupam desses assuntos, ainda de modo insuficiente. É preciso estar atento, vigilante e participativo, cobrando “transparências mais transparentes” e acessíveis a todos e combater a corrupção, esse mal do século, com toda a força da alma democrática.
Edson Gabriel Garcia, 2024, as vindouras águas de marços lavando as boas almas e fortalecendo-as para o bom combate.
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Democracia: porque te que amamos tanto!
Democracia, para além da repetição constitucional de que é o governo do povo para o povo, recepciona muitas outras atenções, tais como a participação, o apreço pelo diálogo e pelo conhecimento, o exercício das muitas vozes, a militância e a vigilância contínua, entre outras.
O que gostamos e defendemos na democracia, nós que a amamos tanto?
Gostamos da liberdade, do voo, do sonho, do poder pensar livremente, de ir e vir, de olhar para todos os lados, de mastigar com os próprios dentes, de beber as águas de março e de todos os demais meses. Podemos até nem falar, mas gostamos de ter o direito de falar a qualquer momento e expressar o pensamento. Liberdade de expressão, sobretudo. Com a responsabilidade de se saber dono, para o que der e vier, do pensamento e da expressão.
Gostamos e defendemos a liberdade de poder ler e ouvir, concordando ou discordando. E talvez dormir com gotinhas de incômodo para pensar junto com o travesseiro e reordenar o pensamento para o dia nascer feliz, de novo. Esse apreço pelo diálogo, pela diferença de modos de pensar e falar, de se aculturar ao planeta e definir relações, que é sempre moldado pela base das múltiplas possibilidades de significado da vida. Pela sensação de saber-se única\o, uma unicidade que se forma dentro da diversidade. Sem medo de saber que ninguém tem a verdade absoluta nas mãos. Que a verdade é relativa e será sempre um acerto histórico dentro da imensidão da história.
Gostamos de estar juntos, em turmas e grupos de dois a milhares, um mesmo sonho, um mesmo grito de alerta, uma mesma voz cantando aos quatro cantos do mundo que queremos a felicidade de estarmos juntos, felizes e no gozo de direitos humanos e bem estar social. Estarmos em grupos, pequenos e enormes, e olhar para o lado e saber que somos todos iguais, braços dados ou não” e que “todos juntos somos fortes, somos flecha e somos arco” ou meramente repetindo o refrão, muitas vezes gasto em bocas envergonhadas, “juntos somos mais fortes”. Se um cai, ou outro ajuda no levantar. Se um chora, o outro ajuda com o lenço pronto e calmo, mesmo que sem documento. Se um se cala, o outro ergue a voz. O coletivo, com todas as dificuldades de acertos, preponderando sobre a individualidade egoísta. Como diz o povo, em sua infinita sabedoria popular, intuitiva ou vivenciada, “duas cabeças pensam melhor do que uma”. Democracia, regra da maioria, embora o caminho nunca se feche para as minorias.
Gostamos de participar, de opinar, de comentar, de empurrar, com os ombros da compreensão, os significados públicos e muitas vezes ideológicos que carregam ódio, preconceitos, visões parciais, limites, omissões e mentiras “que parecem verdades”. Queremos estar em todos os lugares, falar todas as línguas, marcar presença sempre, ocupar espaços vazios, mas respeitando e construindo movimentos e espaços onde caibam muitos e cada vez mais humanos humanizados. Aqui, agora e daqui a pouco. O futuro não espera: tem que ser construído hoje com a mesma “mão que toca um violão se for preciso faz a guerra”.
Gostamos tanto da democracia porque apreciamos o conhecimento. O apreço pelo conhecimento, pelo saber, por ter à mão o conhecimento universal acumulado (mesmo sabendo, socraticamente, que quanto mais sabemos, mais descobrimos o quão pouco sabemos) é parte substantiva do valor da democracia. Vem daí a defesa intransigente que fazemos da educação (pública, laica, inclusiva, de qualidade) para todos. A educação formal, via escolas públicas, é o início da longa formação na qual estaremos envolvidos, ao longo da vida. Aprender para conhecer, para entender, para participar, para mudar e para fazer parte da história. Educação política, sempre, ainda que apenas no horizonte.
Gostamos tanto da democracia porque entendemos que o destino de cada um de nós é o bem estar comum. “Gente nasce pra brilhar”, para ser feliz, para fazer sua história.
Gostamos de amar e defender a democracia. Ser um militante dela e por ela. Defendê-la, andando com bandeiras de seus pilares básicos (eleições diretas, defesa intransigente da liberdade, do gozo dos direitos civis, sociais e políticos e do Estado Democrático de Direito, entre outros). Respirar o oxigênio da democracia, ventilar os sopros dos ares democráticos e cuidar para que essa respiração nunca precise ser artificial. Prezar pela manutenção desses pilares não cai do céu, não brota em árvores e nem vem com as ondas do mar: é construção coletiva e cotidiana. Participar e vigiar e cobrar, pois sempre “há perigo na esquina”. Mesmo quando o remédio é amargo e é preciso cortar na própria pele. Malucos, outsiders, populistas autoritários, ditadores e autocratas estão sempre de plantão à espreita do voto e da submissão dos incautos e desavisados e ignaros.
Gostamos tanto da democracia que podemos afirmar, com o slogan político que circula pelo mundo democrático afora, que “o melhor remédio para democracias titubeantes é... mais democracia”.
Declarações de amor são sempre bem-vindas! Fortalecem os amores!
Edson Gabriel Garcia, 2024, fevereiro quase findo abre espaços para o realce da democracia.
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Contabilidades criativas
Não se pode negar a capacidade criativa dos humanos. Se há algo extraordinário na história da humanidade, isto se chama criatividade. Em todos os sentidos e direções, a capacidade de invenção dos humanos é absurdamente admirável. Para o bem e para o mal.
Em Política, os exemplos se sucedem aos punhados, infelizmente ainda, na direção contrária do interesse da maioria dos cidadãos, seja por displicência destes, seja por excesso de esperteza dos outros. Uma das áreas da Política em que a criatividade sobeja é a Economia. Já nos perguntamos quem domina quem: a Política manda na Economia ou a Economia determina os rumos da Política. Enquanto essa resposta não se apresenta mais ou menos construída, vamos tecendo relações entre esses dois campos da atividade humana. E aqui optamos pela Política se valendo da Economia, no que chamo de criatividades contábeis, para se beneficiar. Na sequência arrisco alguns comentários sobre essa criatividade.
Contabilidades criativas, penso e escrevo, são os recursos contábeis colocados à disposição dos políticos (embora não se restrinjam ao ambiente político) para justificar manobras econômicas com o dinheiro público. Como não sou economista – ou coisa que o valha – peço, de antemão, que me perdoem os descuidos conceituais. A mais famosinha é a pedalada fiscal. Ficou “famosa” nos idos de 2016 como argumento básico a favor do (injusto) pedido de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, mesmo o mundo inteiro dizendo que todos os presidentes antes dela haviam usado, sem problema, as tais pedaladas fiscais. E o que são essas danadinhas? Pedaladas fiscais, grosso modo, são manobras contábeis na execução de orçamentos púbicos em que determinados gastos são convenientemente escondidos ou postergados para que o balanço geral de um ano contábil possa ser positivo. À moda do drible no futebol, em que o atacante ilude o defensor, aqui se dá o mesmo, como no caso de se postergar os gastos com os bancos públicos ou retirar-se das despesas determinados gastos orçamentários. Gastos houve mas não aparecem como tais, ficam suspensos em algum limbo.
Insolvências contábeis é outra manobra em que o eufemismo prevalece sobre a crua realidade do desvio ou sumiço do dinheiro. Algo como: roubo há, mas ladrões não há. Se não há ladrões, não há punidos. Simples assim, como no cinematográfico caso das Lojas Americanas, um rombo de cerca de quarenta bilhões, dinheiro maior do que muitos orçamentos estatais, em que todos perderam (empregados, fornecedores, acionistas) menos os donos do dinheiro e da empresa. Nem uma Comissão Parlamentar de Inquérito, perda de tempo homérica, em que os doutos parlamentares se esforçaram em entender, em vangloriar os empresários e nada concluir de proveitoso para a moral contábil do país. Essa operação desastrosa não se trata exclusiva e diretamente de manobra orçamentária com dinheiro público, mas é exemplo salgado de como a Política permite aos donos do dinheiro todo tipo de podridão.
No exercício dos orçamentos públicos, o rol de manobras, escorregões e metáforas contábeis é grande: editais viciados, cartéis, concorrências fraudadas ou direcionadas, superfaturamento de compras ou execução de obras, aditamento de contratos, brechas na legislação. Exemplo de manobra legal, tudo dentro da lei, dentro das quatro linhas como dizia um governante de tristíssima memória, é a tal da desoneração da folha de pagamento das empresas. Algumas empresas (Lobby? Força política?) conseguem se safar, em nome do escorregadio conceito de “manutenção de empregos”, de parte dos impostos devidos ao fisco. Algumas... por que outras não? Tudo isto respaldado a) pela ignorância econômica da maioria de nós, cidadãos enganados, b) pelo jargão do “economês”, que tudo esconde e encobre e dificulta o entendimento, c) pela propositada morosidade da justiça brasileira, e d) sobretudo, pela complacência do olhar dos políticos que a tudo veem e que só costumam cobrar quando o que lhes é prometido não é pago.
Nesse sentido, falar em contabilidades criativas é expor o ladro cruel da relação da Política com a Economia, aquela se valendo desta em seu proveito próprio. Se vale, principalmente, pela falta de transparência nas exposições, explicações e justificativas: quem de nós, cidadão\ã comum, consegue ter acesso e clareza de entendimento das operações matemáticas embutidas nos cálculos, que parecem sempre nos dizer que a matemática não é uma ciência exata? É esta falta de transparência, cujo exemplo atual das tais emendas secretas do orçamento vem bem fornido de esconderijos, permite que se guarde “segredos” tão caros ao modus operandi da corrupção. Sombras nebulosas, eis o terreno sede em que se estabelecem contabilistas criativos e políticos corruptos num pacto de segredos, esconderijos, mapas secretos. Eis parte decifrável dos crimes do colarinho branco tão limpos e apresentáveis quanto nefastamente sujos, tão possíveis quanto desnecessários, tão nebulosos quanto impuníveis, tão mascarados quanto cruéis.
O que fica para uma breve, mas sempre profunda, reflexão é que a mudança desses padrões de comportamento na relação da Política com a Economia, em prejuízo da maioria da população, passa pela educação política e pela escolha de nossos representantes, visto serem deles a reponsabilidade primeira de agir com limpeza e transparência no trato com o dinheiro público, secundada pela nossa responsabilidade cidadão de escolher e cobrar a honradez de sua conduta política.
Edson Gabriel Garcia, 2024, fevereiro, carnavais findos e de esperanças em novas lutas.
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Sociedade da Hipocrisia
Um dos maiores dramaturgos de nossa contemporaneidade, Gerald Thomas, afirmou em entrevista, que ele tenta desvendar, através de seus textos, o que acontece no mundo neste momento, “nessa loucura de viver na atualidade”. Pensei como ele, que muitas vezes, escrevendo, tanto quanto lendo, os textos nos ajudam a entender a “loucura da atualidade”. Talvez por isso, sempre ofereço aos meus\minhas supostos\as leitores\as a máxima que “a leitura e a escrita fazem de cada um de nós uma pessoa melhor”.
É nesse sentido, de entender a atualidade, que passo em revista os “apelidos” dados aos tempos já passados e vividos. A lista é enorme e registro aqui apenas alguns: Anos Antes de Cristo, Idade das Trevas, Renascimento, Era Industrial, Sociedade da Comunicação, Sociedade Líquida, Sociedade Virtual, Era dos Extremos, Sociedade Pós-Moderna, Sociedade Pós-Verdade, Sociedade da Inteligência Artificial...
E, hoje: como apelidar significativamente nossos tempos? Passeio por meus escritos e registros pensados e fico tentado a apelidar nossos tempos de Sociedade da Hipocrisia. Elenco razões a seguir.
A palavra tem origem semelhante nas línguas latina e grega. Etimologicamente, a palavra grega hypokrités designava o indivíduo que vivia atrás de uma máscara, fora da realidade, representação teatral, conforme o papel que lhe cabia. Com o tempo, a palavra passou a designar, de modo pejorativo, aquele cujo discurso não é coerente com sua prática, vivendo, pois, uma vida de simulação, fingimento e falsa teatralidade. Hipocrisia chega até nós, atualmente, como sinônimo de fingimento ou falsidade, de representação de virtudes, sentimentos e pensamentos que não são seus verdadeiramente. São hipócritas aqueles que fingem não fazer o que se critica. Escandalizam-se publicamente com as práticas dos outros, mas as repetem no miúdo do seu cotidiano. A sabedoria popular desde muito decifrou essa conduta e aponta-a como falsidade comportamental no provérbio popular “faça o que eu falo, mas não faça o que eu faço!”.
Essa prática da hipocrisia cultural contemporânea vem se apresentando de muitas formas, todas elas contribuindo para a depreciação política do discurso oficial das governanças, quase sempre sustentada pelo anonimato das redes sociais e pela pouca participação responsável da população na vida política.
Nesse sentido, podemos sugerir ao atual comportamento da sociedade, em toda sua amplitude e não apenas no aspecto político, que vivemos substantivamente sob o domínio da hipocrisia: uma fala para consumo e uma ação incoerente com a fala. Nessa toada do “faça como eu falo e não como eu faço”, elencamos, sem a menor pretensão de esgotar o inventário, alguns exemplos bem próximos do nosso cotidiano: discursos de campanha de candidatos que, depois de vitoriosos, esquecem suas promessas; os pontos aprovados nos grandes congressos internacionais sobre problemas do meio ambiente, assinado pela maioria dos presentes, e depois esquecidos por esta maioria ou pelos grandes responsáveis pelo descuido generalizado com o ambiente; a relação de parentesco, na hipocrisia, da venda das indulgências nos primórdios da história do catolicismo com a venda dos créditos de carbono; as muitas reuniões das “nações unidas” (unidas por quem?) e suas resoluções após longas e longas assembleias, sempre não cumpridas, sobre a estupidez da guerra; as grandes fortunas das igreja – ou de seus representantes – usadas para ostentação ou para uso particular de poucos enquanto a fala de seus titulares da fé pregam humildade e ajuda aos pobres; a preocupação com a educação pública presente nos discursos de campanha e nos programas de governo, como alternativa à equidade social, que se perdem na prática; a pregação da transparência democrática nos gastos públicos e a ausência de instrumentos acessíveis para o acompanhamento e fiscalização dos gastos; a enorme preocupação do mundo civilizado com a fome mundial e a inexistência de programas efetivos que impeçam a morte de milhares de pessoas, mundo a fora, restringindo-se a ação ao voluntariado de organizações; a covardia do mundo empresarial que toma conta da indústria farmacêutica e estabelece preços de remédios inacessíveis à maioria dos que deles precisam; os lucros exorbitantes das instituições bancárias, sob os olhos e benesses governamentais, enquanto esses oferecem migalhas aos mais pobres e explorados em forma de ridículos “cash-backs”; a falta de transparência das contas públicas que escondem sob discursos de “trabalhar para o povo” e o mau uso das verbas públicas em favorecimento espúrio de alguns políticos; o discurso pela paz mundial e a estupidez do armamento privado da população; a riqueza do agronegócio, cheio de benesses governamentais, desfilando sua alta produtividade, e a fome de muita gente batendo continência diariamente; a pregação da liberdade, na política, nos costumes e na religião e o olhar vigilante dos moralistas, quase sempre falsos; a igualdade prenunciada na constituição e as benesses, todas legais e aprovadas em leis e documentos legais, de determinados grupos como os membros do poder judiciário e das forças armadas; a manutenção de gastos homéricos com as tais forças armadas para proteger a nação de duvidosos inimigos; discursar pela igualdade dos direitos humanos e denunciar violações mas tolerar esses abusos na própria casa ou na casa de nações parceiras. E por aí vai...a cantilena do abismo entre o falar (dizer, orar, pregar, anunciar, prometer, etc) e o fazer.
O pensador francês Francis Rochefoucauld, que viveu há séculos, tido como um moralista provocador e criador de muitas e clássicas máximas do pensamento, nos deixou esta: “ A hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude”. Mais recentemente, no início da década de oitenta do século passado, o músico e letrista Lulu Santos apostando numa vida melhor no futuro denunciou o que o incomodava, em sua canção Tempos Modernos “Eu vejo a vida melhor no futuro\eu vejo isso por cima de um muro\da hipocrisia que insiste em me rodear”.
Afinal, concluo perguntando: A Sociedade da Hipocrisia faz presença forte em nossa atualidade? Ou não?
Edson Gabriel Garcia, 2024, fevereiro com suas fortes batidas carnavalescas, em que o uso das máscaras não só é permitido como também é estimulado, nos pede reflexões sobre a realidade.
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Polarização
Nunca se falou tanto em “polarização” como se tem falado de uns tempos para cá. É possível que se fale cada vez mais, não só pelo derretimento das camadas polares, mas também pela presença desse comportamento na vida política de agora adiante. A metáfora da polarização na política cotidiana se deriva evidentemente da noção de “polo”, cujo significado dicionarizado mais conhecido é “extremidade”. Adaptada à Política, polarização, que traz consigo uma conotação pejorativa e negativa, é a posição extremada, em polos opostos, dos cidadãos diante de algum assunto polêmico: dois grupos polarizados, firmes em suas convicções, sem abertura para negociação dialogada dos conteúdos em pauta. Embora seja um fenômeno mais vistoso atualmente, é possível afirmar que a polarização sempre existiu, desde que os humanos começaram a se constituir como grupos, mais ou menos organizados, para sobreviver, e foram construindo seu entendimento do mundo, da natureza, da vida, do comportamento social, certamente transversalizados pela religião, pela economia, pela Política e, possivelmente, na atualidade, radicalizados pelo oportuno distanciamento e anonimato das redes sociais. O fato de se “pertencer” a um grupo força o indivíduo, que se vê pressionado, a tomar um partido, um lado, fazer uma escolha – geralmente, a escolha do grupo ao qual pertence.
Uma tentativa arriscada de caracterizar a polarização dos comportamentos pode apontar algumas das seguintes evidências: a) há sempre dois grandes grupos na disputa pela hegemonia do poder; b) esses grupos ficam firmes em suas convicções; c) não há clima de diálogo entre estes grupos; e d) os argumentos de um lado ou de outro não interessam ao lado oposto.
Sustos comportamentais, irritações sociais e políticas à parte, a crítica que vem sendo feita a este comportamento é que a) a polarização afasta as pessoas e dificulta a pluralidade do pensamento, uma vez que as posições se fixam nos lados opostos, como o sim e o não, o positivo e o negativo, o a favor e o contra; b) dificulta uma conversa mais civilizada e aberta, principalmente porque uma das extremidades envolve pessoas com menor compreensão da realidade política e afastadas socialmente de decisões e\ou desiludidas com os políticos, gente que se torna presa fácil dessa “engenharia do caos” e veem os outros como inimigos – e não como adversários; c) dificulta a representatividade pluripartidária nas casas legislativas; e d) políticos levianos, outsiders, aproveitadores da baixa consistência e consciência política de grande parte da população e de seu desencanto com a Política, já que esta não resolve os seus problemas básicos, aproveitam-se disso e se apresentam como mediadores\salvadores da sociedade radicalizando suas propostas, apostando eleitoralmente em medidas extremas .
Continuando a conversa, é interessante notar que, nesta questão da dificuldade de representatividade pluripartidária nossa situação é atípica: as três dezenas e pouco de partidos políticos registrados, estranhamente, não dificulta a polarização. Pelo contrário: a tibieza ideológica da maioria desses partidos, cujo objetivo maior é abocanhar quinhões dos fundos partidários, sem prestar contas de forma correta, facilita o agrupamento polarizado. Na prática política, o que se vê desse leque imenso de partidos, sem a devida amplitude e profundidade ideológica, é que esses partidecos se agrupam no que chamamos pejorativamente de Centrão e abocanham o poder, o orçamento e sua execução. Se valem desse ambiente de polarização, se colocam no centro, como (falsos) mediadores das extremidades e dão as cartas na condução dos rumos da sociedade
Também é interessante apontar que a existência do segundo turno nas eleições reforça a polarização desde que a condição ofertada pelo instituto do segundo turno começou por aqui. Por outro lado, deve-se observar que, muitas vezes, a polarização já se desenha no primeiro turno, pois raramente a chamada “terceira via”, procurada, desejada e ensejada pela grande mídia, vinga. O chamado “eleitor mediano” é engolido pelas forças polarizadas.
O assunto “polarização” é vasto, atual e provocador. Merece mais atenção de todos nós e de estudiosos da Política e do comportamento dos frequentadores assíduos das redes sociais, a grande facilitadora da polarização. Neste sentido, o que fica para nossa reflexão, agora, entre outras questões, é o seguinte: a) é desejável acabar com a polarização, em nome da pluralidade do pensamento e do vigor do diálogo, da convivência mais respeitosa?; b) a polarização representa risco, dado seu alto grau de intolerância e indisponibilidade para o diálogo, à democracia?; c) é possível acabar com a polarização? e d) qual o grau de relação da polarização com o desencanto com a Política, com o desempenho pífio e voltado para seus interesses (ou de seu grupo) da maioria dos políticos? Por último, e talvez a reflexão mais difícil que tenhamos que fazer, é nos perguntarmos qual a possibilidade de cada um sair de sua bolha, de sua visão de mundo, e poder olhar o outro não como uma caricatura, mas como pessoa também portadora de direitos humanos e que pode estar aberta ao diálogo.
Tudo isso, junto e misturado, enquanto aguardamos pontos em comum, como apontam estudiosos do assunto, mais fortes do que os pontos polarizados, que possam aproximar pessoas, tais como: o clima, a salvação do planeta, a paz mundial, a luta pelo fim da fome, entre outros. Ou como apontou tempos atrás, em entrevista, o pensador francês Edgar Morin que a “salvação do mundo está na solidariedade”. Resta a nós entendermos e ampliarmos a significação desse conceito tão gasto ultimamente.
Edson Gabriel Garcia, 2024, janeiro em que se observa a dualidade da vida: preservar os polos ambientais e derreter os polos comportamentais.
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Conexões
Drummond, nosso poeta maior, sabia das coisas. Sua sensibilidade poética aguçada permitia que ele colocasse no papel pérolas metafóricas, explicações suaves e inteligentes e sensíveis da vida. Afinal, é dele a indagação máxima, que acorda conosco, passeia pelo dia todo e nos acompanha aqui e ali em sonhos e pesadelos: “E, agora, José?” É dele, também, o poema QUADRILHA (João amava Tereza\que amava Raimundo\que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili\que não amava ninguém. João foi pra os Estados Unidos...). Seu olhar perscrutador nos iniciando na roda-viva, na ciranda da vida, no rola-rola das coisas que se encontram, sensibilidade atenta às conexões retomada por Vinícius de Moraes, o poetinha, na afirmação “a vida é a arte do encontro embora haja tanto desencontro” e nos belos, fortes e imponentes versos do poeta-músico Chico Buarque em RODA-VIVA e CONSTRUÇÃO. Ou no ditado popular, este sem data precisa de criação, sabedoria do povo, DOMINGO PEDE CACHIMBO. Aqui e em milhares de outros\as composições, afirmações, versos, estudos, romances, descobertas, análises etc. A trilogia imbricada da “ação\reflexão\ação” das reflexões educacionais do mestre Paulo Freire. Não há ação sem reação. Uma coisa leva à outra, que leva à outra, que leva à outra. Tudo se conecta.
Conexões, termo melhor definido assim no plural, são ligações, junções, nexos, analogias, dependências, afinidades, elos que se encaixam, que se amoldam, que se interdependem, que se autodeterminam. Como as sinapses cerebrais, uma a se conectar com a outra. Na vida, como na Política, tudo está conectado, interligado. O que acontece aqui foi determinado pelo que já aconteceu e determinará o que acontecerá ali, daqui a pouco. Como uma onda no mar, a “vida vem em ondas\como um mar\num indo e vindo infinito”, escreveram e musicaram Lulu Santos e Nelson Motta, no mega sucesso, um dos maiores da música popular brasileira, COMO UMA ONDA.
Conexões são encontros e dependências que se dão em Política, aos punhados e com frequência. Na troca de favores, nos votos casados e vinculados, nas federações que se irmanam, nas conversas de bastidores, nas votações de plenário, na organização do orçamento, nas promessas e nos discursos, nas campanhas eleitorais, nos vetos aos projetos aprovados, na derrubada de vetos, nos acordos da distribuição de cargos, nas coalizões para montagem de governos, na troca-troca de ministros e secretários, na formação de maioria para votações, na alteração de leis e na aprovação de emendas à Constituição, nos olhos abertos ou fechados na prestação de contas de partidos e de governos, nas nomeações para cargos de menor estatura até cargos de ministros da Suprema Corte, no equilíbrio precário dos três poderes da República, na aplicação dos freios e contrapesos entre os poderes, na escolha de quem elogiar e quem atacar, no valor da fé religiosa que define, no púlpito, milhares de votos e que se incomoda com a luta pela existência de todas as formas de amor, na definição de quem perde mais com a promulgação desta ou daquela lei, na audiência pública para ouvir a voz dos representados, nas boiadas que passam, por interesses escusos de negociantes da terra e de sua utilização egoísta, avassalando o ambiente, nas filas intermináveis de atendimento de quem demanda por mais saúde, na massificação da mídia que faz todos acreditarem que o agronegócio é o salvador da pátria, escondendo as ricas benesses desse setor, nos movimentos de luta política de maior ou menor expressão, nos acertos que tiram de uns e dão para outros, nos almoços que nunca são gratuitos, na corrupção que tem destino certo, no destino de emendas de orçamentos, sejam elas abertas ou secretas...
E, por falar em emendas parlamentares, estas também são e estão extremamente conectadas. Emendas parlamentares são adendos, daí o nome pouco sutil de “emenda”, pleno de tantos outros significados, ao orçamento de um ente federativo (municipal, estadual ou federal). Como se fossem, conforme a origem do termo “emenda”, uma correção ao que já está feito. Mas, neste caso, não é. Se fosse bem feito e isento de outras conexões, o orçamento deveria contemplar as demandas, ainda que por prioridades definidas em programas de governo e políticas públicas, sem emendas. Emendas são oferendas, costuradas politicamente, do executivo aos parlamentares. É uma necessidade imperfeita das negociações políticas, prática pouco salutar do toma-lá-dá-cá ou da justificativa torta do franciscano “é dando que se recebe”. No regime presidencialista em que tentamos melhorar nossa democracia, as conexões políticas via emendas parlamentares, são a forma, ainda que democrática, de se estabelecer negociações e se aprovar medidas necessárias conforme as políticas públicas do governo de plantão. Emendas regiamente polpudas, sem controle financeiro de seu uso, o que favorece a picaretagem, em ano de eleição (ou não, pois sempre será uma ação eleitoreira), são explicadas e justificadas nessa perspectiva. Nesse sentido, essas emendas, que saem do orçamento e farão falta em algum item, têm conexões com interesses não necessariamente coletivos. Mas... têm conexões e se explicam e se justificam, mesmo que não concordemos com sua prática. De alguns tempos para cá, oferenda de emendas parlamentares tem sido comum, temperada com segredos de bastidores que protegem as idiossincrasias da prática. Há conexões as mais variadas nessa relação.
Alguém já disse que a Política é como as nuvens do céu: num instante estão de um jeito e no instante seguinte já mudaram. O que permanece são o céu e as nuvens. Na Política das conexões das emendas parlamentares o que permanece são o orçamento e as negociações entre Executivo e Legislativo. Necessidades imperfeitas que podem – e devem – ser melhoradas por olhares atentos e críticos uma vez que as conexões, como elemento fundamental da vida, estas permanecerão.
Edson Gabriel Garcia, 2024, janeiro que nos põe em alerta para todos os eventos políticos, ano de eleição que viveremos.
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Tempo da Política
Há um tempo certo para se fazer e viver a Política?
Recorro ao velho e bom Eclesiastes, roteirista bíblico, que em seu capítulo 3, versículos 1 a 8, responde uma suposta pergunta se há tempos certos para os assuntos da vida. “Para tudo há um tempo determinado, sim, há um tempo para todo assunto debaixo dos céus: tempo para nascer e tempo para morrer; tempo para plantar e tempo para desarraigar o que se plantou; tempo para matar e tempo para curar; tempo para derrocar e tempo para construir; tempo para chorar e tempo para rir; tempo para lamentar e tempo para saltitar; tempo para lançar for pedras e tempo para reunir pedras; tempo para abraçar e tempo para manter-se longe dos abraços; tempo para procurar e tempo para dar por perdido; tempo para guardar e tempo para lançar fora; tempo para rasgar e tempo para costurar; tempo para ficar quieto e tempo para falar; tempo para amar e tempo para odiar; tempo para a guerra e tempo para a paz”.
Se me permitem o leitor e a leitora, uma opinião sobre a Bíblia, tenho cá para mim que o Livro Sagrado (as letras iniciais maiúsculas não são uma ironia) é a maior obra de ficção de todos os tempos, razão pela qual é o mais citado, o mais supostamente lido, o mais impresso e distribuído, o mais interpretado. O conceito de obra aberta, criado pelo intelectual italiano Umberto Eco, bem se aplica à Bíblia, sendo esta uma obra totalmente aberta a toda e qualquer interpretação pós leitura e estudo, muitas vezes uma rota para a vida ditada por hábeis oradores. Dito isto, esperando que estes escritos não sejam confundidos com opções religiosas, aqui inexistentes, suponho que Eclesiastes, se fosse perguntado “há tempo certo para a Política?” teria respondido afirmativamente que também para a Política há um tempo certo. Eclesiastes apenas adendaria que o tempo certo para a Política seria o tempo todo. Ou pediria uma leitura mais atenta do referido capítulo 3 indicando que a resposta está na somatória de todos os tempos citados nos versículos: tempos para se calar, falar, plantar, desarraigar, juntar e atirar pedras, rir e chorar, abraçar e distanciar-se de abraços, guardar e lançar fora, guerrear e pacificar, etc...
Venho argumentando ao longo de outros textos que, querendo ou não, desejando ou não, conscientemente ou não, a Política está presente cotidianamente na vida de qualquer um de nós. O tempo da Política é o tempo todo.
Nesse sentido, as informações, muitas vezes pejorativas, de que as eleições de um ano começam suas campanhas no ano anterior precisam ser lidas de outra forma: faz-se Política o tempo todo. A execução correta e bem planejada do orçamento de um ano projeta resultados políticos nos anos seguintes, por exemplo. Decisões de alterações de arrecadação via promulgação de novo imposto ou revogação de imposto existente, mexe no bolso do contribuinte nos próximos anos. Diminuição de recursos orçamentários para a saúde pública, outro exemplo, altera a qualidade desse serviço público pra milhões de contribuintes. Recuperação do salário mínimo ao longo de anos seguidos determinam maior poder de consumo para aqueles que vivem com esse valor mínimo. A atuação diplomática internacional de um Presidente da República em eventos sobre o clima ambiental repercute anos a fio no cotidiano de todos nós. Para o bem e para o mal. Assim, sucessivamente, milhares de outros exemplos podem ser apontados, todos eles evidenciando como o exercício da Política mexe com o cotidiano de todos nós.
O que precisa ficar mais claro é a diferença entre atos cotidianos da governança política e os atos necessários e pertinentes de uma campanha eleitoral. A antecipação propositada do calendário eleitoral de um ano para o ano imediatamente anterior é que precisa ser objeto do olhar atento de todos nós, embora isso faça parte da cultura política. Candidaturas dos pleitos municipais, muitas vezes mais importantes e decisivas no cotidiano do cidadão, são conversadas na eleição dos dois anos anteriores, na eleição presidencial. Acordos, apoiamentos, formação de blocos de apoio, definição de alianças, escolha dos candidatos\as e seus\suas vices, tudo isso está na pauta o tempo todo. Muitos desses entendimentos, mesmo não fazendo ainda parte do calendário eleitoral, são definidos também com ações dos governantes que estão no poder executivo.
Há entre os políticos uma máxima que diz “a reeleição começa no primeiro dia do mandato”, o que de certa forma está correto pois o trabalho legislativo ou executivo de hoje refletirá no amanhã. Atualmente, esta antecipação do debate e da campanha eleitoral, este “novo normal”, um estado quase permanente de Política pautada, é acelerado pela circulação de informações nas redes sociais, pela própria aceleração dos tempos que essas circunstâncias virtuais trazem. Polarizações, algoritmos, fakes e inteligência artificial, tudo mexe e provoca polêmica. Tudo traz a Política para a tela do celular, para a fila do ônibus, para o palanque religioso e para a mesa de jantar. Não há como fugir dessa conversa. Há que se ficar atento aos movimentos, que farão parte para sempre do nosso cotidiano, sem vê-los pejorativamente, mas como parte do cotidiano, como informações a serem consumidas e construídas antes do voto. O voto, esse sim, com tempo certo para ser cravado, com muitos tempos anteriores e muitos tempos posteriores, todos com intensidade política que só a consciência, a leitura sábia e o conhecimento poderão evitar reclamações, desprezos e desânimo diante da Política de todo santo dia. Tudo vale a pena se a alma não é pequena, já previa Fernando Pessoa, renomado poeta português muito antes de todos os tempos juntos e misturados.
Edson Gabriel Garcia, 2024, inaugurando o quarto destes escritos, apostando em novos sentidos políticos futuros.
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Língua e Política: seria a língua a minha pátria?
Fernando Pessoa, um dos maiores poetas de todos os tempos a compor suas obras em Língua Portuguesa, expressou-se certa vez que “Minha Pátria é a Língua Portuguesa.” Deixou claro, entre tantas interpretações sobre essa declaração, seu amor patriótico pela Língua Portuguesa. É possível, em mais uma interpretação, entender que dizia ser a língua o patrimônio maior, o bem cultural e instrumental de maior valor de uma nação, o amálgama sem o qual nada sobrevive em uma nação. Paulinho da Viola, compositor melódico e letrista maravilhoso, escreveu na sua filosófica canção TIMONEIRO “não sou eu quem me navega\ quem me navega é o mar\é ele quem me carrega\como nem fosse levar”. Junte-se à declaração de Fernando Pessoa, o que Paulinho pode ter dito, em uma livre interpretação, é que não falamos a língua pois é a língua que nos fala. Somos, de certa forma, o que temos para pensar e falar e escrever através da língua. Se o domínio da língua é pequeno, pequena será, também, a possibilidade de viver – e construir – a cidadania política. O domínio dos recursos e repertórios que a língua oferece e disponibiliza condiciona o olhar, o sentido, o sentimento e a ação de cada um de nós. E de certa forma, este domínio do instrumental linguístico determina o tamanho do sentimento de pátria de cada um de nós. Pode parecer um delírio, nas vale a pena refletir sobre isso.
Três fatos recentes, noticiados pela imprensa, ampliam esse desejo de pensar e reverenciar a língua nossa de todo dia.
O primeiro deles foi o fato de terem escolhido a canção ALEGRIA ALEGRIA, de Caetano Veloso, de 1968, como tema de uma questão da prova do ENEM. Entrevistado, Caetano, com sua inteligência primorosa e sensibilidade extremada, disse que todas alternativas oferecidas como possíveis respostas caberiam como resposta certa. Acabou cravando duas alternativas. Se o próprio autor do texto reconhece a dificuldade de identificação objetiva da mensagem, por que não (como ele pergunta incisivamente na música) reconhecermos o potencial de múltiplas significações que a língua nos põe à mão?
O outro, também vindo da literatura brasileira, é a eterna indagação (será que precisamos saber a resposta?) expressa no dilema da dúvida: teria Capitu traído Bentinho? As palavras da narrativa, escolhidas pela personagem principal, Dom Casmurro, dão pistas dessa traição ou são apenas um jogo de esconde-esconde? Quem haverá de concretizar uma resposta definitiva? A eloquente multiplicidade de significações, talhadas pela escolha das palavras e das ideias que estas expressam, presentes em nosso cotidiano...
O terceiro fato, irônico, mas bem interessante, é o acontecimento político jocosamente anunciado na imprensa que a Câmara Municipal de Porto Alegre discutiu e aprovou um projeto de lei, transformando-o em lei, cujo texto foi produzido pela Inteligência Artificial. Será a IA o novo repertório linguístico posto à nossa disposição preguiçosa?
Os três fatos, todos eles tendo a Língua Portuguesa como fundamento de ações e reflexões, revelam o quanto a língua pátria é substantiva, seja para produzir dissonâncias interpretativas, seja para apontar caminhos diferentes vazados em uma mesma frase, seja para atestar o quanto temos a aprender, seja para expressar que ninguém é dono da verdade. É nela e por ela, com seu consentimento, que somos navegados.
A língua de uma nação é a sua vida, é a sua representação simbólica mais exata, mais firme, mais presente. É pela língua que vivemos a pátria, que construímos a pátria e que desejamos, em sonhos muitos, uma outra pátria possível. É a língua que dá repertório para o pensamento e para a ação, e, consequentemente, substancia o movimento do olhar, das mãos, do corpo, da fala. Vive-se enquanto se fala.
A Política e os políticos sabem disso. Por isso são hábeis oradores, no sentido de oratória com discurso sem muita conexão com a realidade, manipulam o repertório, a sintaxe, as figuras, e constroem discursos aparentemente conectados. Por isso, hábeis palavreadores, formulam slogans no todo tempo, mesmo que nada signifiquem, como “Pátria acima de todos e Deus acima de tudo” ou vice-versa. Por isso usam expressões corroídas e ultrapassadas pelo uso vazio como “estamos juntos”, “juntos somos mais fortes”, “a união faz a força”. Por isso escrevem programas de governo que se parecem uns com os outros e por isso criam metáforas que viram memes, tais como “deixar a boiada passar” e por isso se sustentam em construções vazias, algumas hilárias, como o “nada a declarar”, expressão de total negação de diálogo e ytransparência, usada sem limites pelo ex-ministro Armando Falcão, porta-voz da ditadura, como o franciscanamente mal sugerido “é dando que se recebe” ou o prático e econômico “não há almoço grátis”.
Enfim, língua é a voz da Política, em suas narrativas e metáforas. A Política é o que a língua permite que seja, da mesma forma que cada um de nós é a língua que pensa e fala. Um provérbio popular, revelador do bom senso que há no senso comum do povo, diz que “cada um dá o que tem”. O mesmo se aplica à relação com a língua: cada um é a língua que tem e que fala, razão pela qual podemos advogar que o mar linguístico se oferece igualmente a todos os nadadores, em sua imensidão. O diálogo e construção da cidadania política passa certamente pelo nado interminável, profundo, delicado, saboroso, compromissado e cotidiano nas águas desse mar. Quanto mais próximo e intenso for esse diálogo maior será, pelo exercício da língua pátria, o sentimento de amor à Pátria.
Edson Gabriel Garcia, 2023 findante, dezembro trazendo consigo esperançamentos de nova pátria possível no novo ano.
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POLÍTICA: zona de conforto ou ponto morto?
Esta é uma conversa amena. Ou nem tanto. A depender de como o assunto se encaixa no carrossel de possibilidades do pensamento de cada um. É só ligar o cérebro, baixar o arquivo e clicar em um dos muitos assuntos: lazer, sentimentos, família, economia, trabalho, compromissos, cultura ou... política, entre tantos outros. Há três tipos fundamentais de relações com a Política: a) o político full time, que vive, dorme, come, sonha com a Política vinte e quatro horas por dia (nunca desliga); b) o cidadão que sabe da importância da Política na vida cotidiana de cada um de nós e por isso está sempre ligado nas principais questões políticas do país; e c) o cidadão(?)que não se liga nunca, tem nojo da Política e acha que isso é assunto só para corruptos ou que não tem coisas mais importantes para fazer e pensar.
Se você conhece alguém que se encaixe no terceiro perfil, as reflexões abaixo podem chacoalhar o “ponto morto” do seu cérebro e fazê-lo pensar melhor sobre Política e cotidiano. Passe para ele e o convide a pensar.
Se você é daqueles que acham que a Política não serve para nada, só atrapalha, não significa nada em sua vida, que todos os políticos são corruptos e por isso não gosta de Política, vota apenas e tão somente porque é obrigado, principalmente, se você tem certeza de que nada da Politica interfere em sua vida, pense nas situações seguintes, TODAS ELAS DETERMINADAS POR POLITICAS E POLÍTICOS: a comida que você come é aquela plantada e colhida por megaempresários, que determinam o preço que vai custar, que usam agrotóxicos venenosos proibidos em outros países; o tamanho dos juros exorbitantes que você pagará, se buscar dinheiro em créditos bancários ou de financeiras; as alíquotas de recolhimento de imposto de renda de pessoa física, sempre mais vorazes do que as que pagam os grandes empresários; os lucros astronômicos dos bancos; os buracos da rua onde você mora e das ruas onde transita; a má conservação da rede elétrica; a propaganda enganosa que ensina cotidianamente que privatizar é melhor; os inúmeros postos de pedágios nas rodovias, que enriquecem grandes empresas e encarece sua viagem; o preço caríssimo da tarifa de transporte público, apesar da baixa qualidade na maioria dos serviços ofertados; as longas listas de espera para atendimento mínimo de questões de saúde; a burocracia que impera em todos os serviços públicos ou privados, quase sempre impondo dificuldades; a falta de vagas públicas com qualidade em creche, educação infantil, ensino fundamental e médio que atormenta grande parte da população; o fechamento criminoso de vagas no ensino noturno para estudantes que trabalham; a falta constante de professores nas escolas públicas; a qualidade inferior da estrutura de equipamentos e de pessoal na maioria dos serviços públicos ofertados; a dificuldade de ter seus direitos trabalhistas reconhecidos; a precariedade dos vínculos de empregos, apelidada de uberização do trabalho; a insegurança diante de todo tipo de violência; o excesso de impostos criados para tapar diques de vazamento do orçamento público; a dificuldade de se acompanhar e entender a execução do dinheiro público arrecadado a título de orçamento; a farra descontrolada que políticos “pecaminosos” fazem com o dinheiro público nas chamadas emendas secretas do orçamento; o desmatamento irresponsável, das boiadas passantes, que afeta o clima de todo o planeta; a vergonhosa situação de milhares de pessoas sem saneamento básico mínimo e sem acesso a água potável; o preço insustentável dos medicamentos; o barulho infernal de quem não respeita regras mínimas de convivência; as mentiras diárias produzidas pelos arquitetos do caos em fake news; a fé barata que vendem nas igrejas, muitas delas verdadeiras empresas milionárias, a título de salvação; a ameaça constante de golpe contra a democracia; o desrespeito institucional contra minorias; a manipulação de notícias pela mídia; a ausência de áreas verde ou a conservação mal feita das existentes; as regras de trânsito que privilegiam veículos e condutores em prejuízo dos pedestres; os altíssimos salários e ricas benesses neles penduradas dos membros das Forças Armadas e do Judiciário; a falta de médicos e medicamentos nos postos de saúde públicos; as reformas administrativas que enxugam a prestação de serviços públicos, empobrecendo-o cada vez mais; a fala repetida e burra dos negacionistas contra as vacinas; o salve-se quem puder dos planos de saúde privada; a pregação pelo armamento que coloca milhares de armas nas mãos de incautos e de bandidos; a exportação silenciosa da água usada na produção bilionária do agronegócio, entre outras... POIS É... TUDO ISSO, E MUITO MAIS, É DETERMINADO POLITICAMENTE E INTERFERE NA VIDA DE TODO O CIDADÃO.
Desconhecer as implicações das decisões políticas no cotidiano de cada um de nós é assinar atestado de ignorância, é se meter em uma falsa zona de conforto, é deixar um carro desgovernado em ponto morto, é pagar uma conta que custa muito caro. A cidadania política se constrói cotidianamente, com olhos abertos e participação.
Edson Gabriel Garcia, 2023, dezembro quente de avanços e recuos na Política, de perdas e ganhos, em que os ânimos pela aproximação das festas de fim de ano poderiam ser dividido com o envolvimento no cotidiano político.
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Alguns pecados capitais na Política
Nos acostumamos a pensar em “pecados” quando queremos nos referir a erros ou comportamentos diferentes do que preconiza determinada moral. O conceito de pecado está extremamente ligado ao desvio do comportamento religioso aceito como o correto (transgressão ou violação consciente de lei religiosa, moral ou divina), mas é largamente usado por todos nós quando nos referimos a um comportamento condenado por uma moral ou ética. O que mais está presente em nossa memória é a lista dos Sete Pecados Capitais, que transformou definitivamente o número sete em um número místico, gracioso, interessante e sempre bem lembrado, mais até do que os próprios pecados listados. Como nós, lembremos sempre disso, adoramos fazer listas, eis mais uma delas, esta atualizando o termo “pecado” como sinônimo de comportamento errado, equivocado ou condenado.
Vamos, pois, a alguns erros capitais, cometidos por quem está metido em Política institucional, partidária ou ocupa cargos públicos em um dos três poderes.
Ignorância ideológica. A ignorância ideológica é a negação de ideologia no mundo da Política. Isto se dá por duas razões: por desconhecimento e ignorância propriamente dita ou por posição assumida de negação da ideologia como filtro de visão de mundo. Em ambos os casos, é erro grosseiro, pois todo posicionamento de um político passa certamente por uma visão de mundo. Afora os slogans partidários, vazios e ocos, para consumo imediato em programas insípidos, inodoros e incolores de televisão, qualquer posição política é filtrada por uma visão ideológica. O currículo de cada político é a sua assinatura ideológica.
Falta de transparência. Um dos erros, em alguns casos intencional ou proposital, é a falta de transparências nas atitudes políticas ou na prestação de contas, seja financeira, seja de conduta política. Padecemos desse problema em larga escala na Política, principalmente quando se trata de prestação de contas de uso do dinheiro público. Muito provavelmente o que sustenta esta atitude política é a falta de interesse dos eleitores em acompanhar esses cálculos, que mais parecem teoremas pitagorianos, muito diferente das contas que fazemos no cotidiano de nosso orçamento apurando entradas e saídas de receitas. Políticos mal intencionados, no parlamento, no executivo e nos partidos políticos – que também recebem polpudas verbas públicas – se equilibram em esconder prestações de contas limpas, abertas e claras.
Egoísmo. O egoísmo, como a própria palavra diz “ato de voltar para o próprio ego; ego significando o eu de cada um, a consciência e a personalidade individual”, é característica de muitos maus políticos. Estão na Política apenas e tão somente para observar interesses próprios, para rechear sua saúde financeira, para defender interesses de pessoas próximas ou de grupo de base de apoio. Não sem razão, essa atitude recebe o “carinhoso” apelido de picaretagem, em alusão à ferramenta que cava buracos finos em que cabem apenas um objeto. O político picareta cava apenas em seu interesse.
Descompromisso com quem representa. Muito se tem dito que nossos eleitores não têm memória, pois muitos de nós não lembramos em quem votamos, principalmente para ocupar cadeiras no parlamento, na última eleição. Se não lembramos, não temos como cobrar, e, sem ser cobrado, o político egoísta e picareta navega em mar tranquilo, sem preocupação em prestar contas de suas ações aos seus eleitores. Desempenhará seu mandato sem compromisso com quem o elegeu, pois quem o elegeu não se lembra mais e não cobra respostas políticas adequadas às demandas sociais mais urgentes.
Descompromisso com a verdade. O apego à imprecisão de informações, o uso excessivo de slogans generalistas e de discursos ocos são características que compõe o quadro de desrespeito pela verdade (ainda que seja difícil identificar o que seja verdade), sustentado, na outra ponta, pelo baixo nível educacional e pela formação política precária da maioria dos cidadãos. Muito disso passa pela divulgação de fake news. Imagine, por exemplo, num debate sobre privatizações, o governo do estado esconde a informação dos altos lucros das empresas que receberam, em contratos suspeitos, a concessão de linhas do metrô já privatizadas. Descompromisso com a verdade: toda privatização, além de diminuir a responsabilidade do Estado em questões fundamentais, visa a dar lucros estonteantes para empresas privadas.
Negacionismo democrático. Esse negacionismo nunca foi abandonado. Esteve sempre presente, mais amortecido ou mais escancarado, o desrespeito pelo regime democrático e pelas instituições democráticas sempre fez presença na pauta de políticos autoritários, sem nenhum respeito pela convivência, pelo diálogo, pela liberdade. Negam a organização política, negam o equilíbrio entre os três poderes, debocham das leis e pouco se atentam para seus leitores e cidadãos em geral. Mesmo quando pregam a importância da democracia, no discurso, agem de forma para corroer suas instituições. Exemplo recente, o mandatário do país falava o tempo todo em “jogar dentro das quatro linhas constitucionais” e articulava, na surdina dos bastidores tenebrosos e sombrios, golpe contra a democracia.
Imoralidade. O Artigo 37 da Constituição Federal preconiza que a administração pública (num sentido amplo, extensivo aos três poderes da União) obedeça a cinco princípios: legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência. A moralidade, um desses princípios, sugere códigos de comportamentos aos agentes públicos. Uma das vertentes de sustentação da moralidade diz respeito ao uso do dinheiro público, um pé de meia que é de todos nós. No entanto, a falta de cuidado com o dinheiro público é um dos vícios errados mais redundantes dos políticos que ocupam cargos na administração pública. Exemplos como o que se chamou, nos dois últimos anos, de “orçamento secreto”, em que os políticos do parlamento foram “comprados” pelos políticos do executivo com oferecimento de emendas orçamentárias milionárias a serem usadas sem nenhum cuidado ou necessidade de prestação de contas, não são raros.
Encerro esta lista, com estes “pecados”, que poderia ser maior, ou menor, a depender de nós, reforçando o que já foi dito inúmeras vezes: somente o desenvolvimento da consciência política, através da educação, poderá reverter este quadro “pecaminoso”.
Edson Gabriel Garcia, 2023, abrindo dezembro com a sempre presente preocupação com a consciência política, cuja ausência faz de cada um de nós um analfabeto político.
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Direita extremada: os descaminhos do fanatismo
Vira e mexe, mexe e vira, eis que somos assombrados pelo fantasma do avanço da extrema direita, sentindo na pele o gosto amargo do susto ameaçador. Vale a pena, novamente, relembrarmos algumas reflexões sobre o tema, afinal a polarização das grandes plateias aí está. Comecemos pelo básico, com um pouco de História: os conceitos “esquerda e direita” foram criados na época da Revolução Francesa, final do século XVIII, a França, imersa em uma grande crise econômica. O Rei Luiz XVI convocou uma Assembleia Nacional Constituinte, para votar medidas duras e necessárias. Como esperado, o jogo político dos grupos entrou em cena buscando defender seus interesses. Os constituintes eleitos foram se agrupando por interesses que representavam e ocupando lugares próximos no plenário das votações. Do lado direito, ficaram os representantes do funcionalismo real, da nobreza, do clero e dos grandes proprietários de terra. Ou seja: políticos conservadores, que não queriam perder seus privilégios. À esquerda, estavam a baixa burguesia, a massa camponesa e os políticos que queriam reformas, acabar com privilégios de poucos, e atender as demandas das classes menos favorecidas. (No centro, ficavam os conciliadores, que ora apoiavam um grupo, ora apoiavam outro.) Pois bem, é a partir desse contexto que se foram construindo os conceitos de esquerda e direita. Ainda hoje, apesar das discordâncias entre tendências, é possível atribuir um ideário às pessoas que se autodefinem como de esquerda: as que prezam os direitos humanos, o coletivo, a solidariedade, a fraternidade, lutam por reformas mais amplas, como a reforma agrária, distribuição de renda, taxação das grandes fortunas, por mais verbas para a saúde e educação, posicionam-se contra políticas preconceituosas e elitistas, são favoráveis às políticas de compensação aos mais pobres, pela inclusão social, entre outras causas. Olham o mundo por este foco: somos todos iguais, temos os mesmos direitos a toda riqueza produzida ou encontrada na natureza e, sobretudo, sonham com e lutam por um mundo socialmente mais justo, com a consciência de que se pode mudar o mundo pela Política. No ideário dos que se autodefinem como de direita, cabem a defesa da liberdade individual, da meritocracia, da propriedade privada, da privatização de empresas e serviços públicos, da liberdade econômica, com liberdade do fluxo do capital estrangeiro, privatização da educação e da saúde por megaempresas. Pregam um Estado mínimo, de pouco alcance para as questões sociais e coletivas. Olham o mundo por este foco: somos livres, diferentes e cada qual tem que, independente do seu contexto, origem e classe, correr atrás do seu sucesso. São, de modo geral, avessos a mudanças e transformações: o mundo é injusto porque diferenças individuais e de etnias assim determinam. Base de um pensamento ideológico que sustenta vários preconceitos. Pensar e agir pela direita é ser cético quanto às mudanças na estratificação social e ver a Política apenas como um modo de manter a sociedade como é e de se beneficiar em proveito próprio.
E a tal extrema direita ou ultra direita, como podemos definir? Definir mesmo, com rigor é muito difícil, mas, podemos arriscar algumas considerações a partir do comportamento de seus políticos, simpatizantes ou defensores, muitos deles fanáticos. Políticos desse campo extremado comportam-se, pensam e agem, seguindo alguns (ou a maioria) dos elementos seguintes, sua pregação fervorosa:
-são extremamente individuais e negam histórias e acúmulos de conhecimento da humanidade (negacionistas);
-odeiam o conhecimento acumulado e se locomovem com maestria no mundo das fake news;
-buscam apagar a memória (como se tudo começasse com eles) e negam a cultura (como forma viva e crítica do comportamento humano);
-não suportam opiniões diferentes e fogem de discussões porque se julgam superiores ou porque não têm argumentos;
-condenam ao fogo do inferno as minorias (principalmente as que são historicamente injustiçadas pela sociedade);
-são preconceituosos (aqui entendendo-se o preconceito como um conceito prévio, desprovido de sentido social, humano ou científico);
-têm dificuldade de estabelecer uma linha divisória entre a realidade e a fantasia ou o imaginário.
-reproduzem, principalmente quando têm auditório na escuta, gestos simbólicos de governantes autoritários (cumprimento nazista, símbolo da supremacia racial, etc), ou trajes e uso escancarado de símbolos totalitários (aqui incluídos slogans);
-costumam ser eugenistas, pregando a purificação da raça e supremacia de uma etnia sobre outra(s), pela eliminação dos mais fracos, defeituosos e pelo preconceito contra islamitas e africanos, principalmente;
-negam a “velha política” e todas as suas instituições, desprezando jocosamente o Parlamento e o Judiciário (propondo em seu lugar figuras absolutistas: fuher, duce, mito, etc);
-pregam um nacionalismo exacerbado, por isso xenófobos, usurpando os símbolos da nação em favor de seus discursos e ações (pátria acima de tudo);
-alardeiam um falso moralismo e atacam violentamente eventuais avanços comportamentais que postulem direitos sociais (direito ao corpo, direito à liberdade de expressão, direito à livre cultura, etc.);
-defendem a força e a violência como condimentos das relações sociais e políticas;
-odeiam a democracia, como regime político em que os governos se locomovem com respeito aos cidadãos e seus direitos, liberdade de pensamento e manifestação (um direitista extremado que se preze adora regimes totalitários e forças militares, embora muitos deles cheguem ao poder pela via democrática da eleição).
Um pouco maior ou um pouco menor, eis a cartilha que rege o comportamento autocrata dos partidários da extrema direita. Estes rastejamentos de consciência rasa, que beiram a ignorância total, surgem em cenários de crise política, moral ou econômica e arrebatam seguidores que se encontram desiludidos com a atividade política, à margem do desenvolvimento e da justiça social, e que esperam o surgimento de um “messias”, de um “salvador da pátria”. Depois disso, no poder, sustentam-se pela imposição da violência e pela disseminação do medo.
Consciência política, eis o caminho!
Edson Gabriel Garcia, 2023, novembro de consciência de todas as cores, matizes e intensidades.
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A justiça social
A discussão política do que seja “justiça social” é difícil, mas nem por isso deve ser afastada do nosso horizonte. Pelo contrário, deve fazer parte das preocupações políticas diárias. Selecionei alguns verbetes que se misturam na discussão desse conceito desejado.
Desigualdade
Desigualdade é a negação (prefixo “des”) da igualdade. Igualdade é a situação em que todos devam ser orientados pelas mesmas regras e leis e princípios de uma determinada nação e ter os mesmos direitos e deveres. Em tese, trata-se de um princípio universal, a universalidade; a igualdade entre as pessoas. Um analfabeto, que ainda existe, infelizmente, certamente é muito menos “pessoa” do que um letrado, para ficar num exemplo breve mas tão causador de desigualdades.
Equidade
A equidade, conceito que vem sendo trazido à discussão mais recentemente, parte do reconhecimento que não somos todos iguais e que, portanto, há um certo desequilíbrio social no uso desses direitos e no exercício de oportunidades. Um menino ou menina que entra cedo na escola, tem todas as aulas com bons professores, tem oferta qualificada de aprendizagem de duas línguas estrangeiras, tem um currículo farto, diverso e integral, com disponibilidade de equipamentos pedagógicos e espaços de aprendizagem ricos, diversos e boa qualidade, certamente estará melhor preparado para exercer os seus direitos e deveres e buscar oportunidades na vida. A equidade é o desejo necessário de acertar esse desequilíbrio dando às pessoas o que elas necessitam para enfrentar as desigualdades e assim desfrutar das mesmas oportunidades.
Diversidade
Diversidade é a qualidade que evidencia as diferenças, pessoais ou materiais, de um todo. Somos diferentes nos desejos, na aparência, nas crenças, nos costumes, no modo de pensar a vida, a religião e a política, na saúde, na inteligência, etc. Particularmente, em nosso país, pela nossa história de povo conquistado, explorado e civilizado por diversas outras culturas, a diversidade está presente em nossa cotidianidade. E é na diversidade que encontramos a unicidade do universo e, de certa forma, sua beleza.
Então, cá estamos nós: diversos, diferentes, desiguais e condenados (haveria um termo melhor do que este?) a viver em sociedade. O que nos faz melhores e mais inteligentes do que os animais – que satisfazem suas necessidades para viver e os humanos que vivem para criar novas necessidades? Reordenando a questão: o que podemos fazer, nós, humanos, teoricamente mais inteligentes do que os animais irracionais para vivermos em uma sociedade socialmente mais justa?
Justiça social
Aí que entra a justiça social, a partir das considerações sobre desigualdades, diversidades e equidades. A justiça social é o conceito que pressupõe que todos os indivíduos de uma sociedade tenham direitos – e deveres – iguais em todos os sentidos da vida social. O que significa que todos, diversos, diferentes e desiguais, deveriam ter direitos iguais, básicos, como saúde, educação, trabalho, liberdade de expressão e liberdade cultural, entre outros, garantidos.
Uma tela pintada com cores fortes expõe nosso país como um dos mais desiguais do planeta. Colonização predatória, escravidão, demora na instituição da República, interesse privado na veia dos políticos também predatórios e educação pública de baixa qualidade levaram o país a registrar um dos maiores índices de desigualdade. Jean Jacques Rousseau, pensador francês que viveu entre..., observa com pesada pertinência que a origem da maioria dos nossos problemas econômicos (e, em última análise, a determinação das desigualdades passa pela economia sobrepujando a Política) tem origem no instante em que um homem cercou determinada área da terra e declarou “isto é meu”.
Um regime político que se preze, que se queira justo e responsável, deve perseguir o “bem estar social” como objetivo maior, o desenvolvimento sustentável de que se fala tanto, fomentando a justiça entre os indivíduos de uma nação através de leis e instituições, em busca de uma justiça social que visa a atenuar as desigualdades entre os indivíduos, verificando as dificuldades de cada grupo e atuando por meio de ações que mitiguem essas desigualdades. Partindo desse princípio de uma convivência socialmente mais justa, Estados que se preocupam com isso, enquanto não se altera o modelo de economia predatória, que defende sempre os mais ricos, o caminho da compensação e da equidade é uma alternativa. É com base nesse princípio, ademais já estabelecido em nossa Constituição Cidadã, que são articuladas pelo Estado, como política de Estado – e não de governo – ações de compensação para os que começam a vida em desvantagem econômica e social: cotas raciais, bolsa família (e seus derivados e similares), salário mínimo, seguro desemprego, igualdade salarial entre homens e mulheres, combate ao racismo, investimento maior em escolas mais pobres, oferta de verbas para os municípios mais carentes, etc.
Finalizando estas breves considerações, bom reforçar que as desigualdades – triste constatação de que somos um dos ponteiros nesta monstruosidade - se combatem com ações de respeito à diversidade e proposições de ações de equidade e compensação. Caminho árduo, que passa pela disputa com a economia, com a luta diária contra os donos das “propriedades cercadas”, em busca de condições de vida em que nossos corações e mentes tenham um porto mais seguro de igualdades.
Edson Gabriel Garcia, 2023, novembro que caminha em busca de consciências políticas mais definidas no plano do respeito ao princípio básico de que somos todos humanos, iguais e diferentes.
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O Politicamente Correto
A expressão adjetiva “politicamente correto” se inscreve na ordem do dia, dos nossos tempos, como mais um desentendimento polarizador, que coloca a) de um lado, os que defendem a supremacia da liberdade expressão e b) de outro lado, os que defendem o resgate ao respeito pelas minorias oprimidas historicamente, pela via da expressão linguística. O tema é assaz polêmico, divide opiniões, contrapõe esquerda e direita no panorama político, perpassa redes sociais, ganha espaço na mídia e ocupa corações e mentes. Como em outros temas da Política (o voto facultativo, por exemplo), ocupei-me mais em levantar definições, contexto e posições ideológicas sobre o assunto do que me posicionar. Vamos ao que interessa.
A Origem
A expressão “Politicamente Correto” começou a ser gestada nos anos das décadas de setenta e noventa, entre professores universitários norte-americanos, e se estendeu pela academia inglesa, na tentativa de reformas do currículo das universidades. Prolonga-se até nossos dias, hoje, carregada de reclamações contra o que se postula ser um patrulhamento ideológico, censura sobre a liberdade de expressão e desagrado com a cultura “mimizenta”, do mimimi.
O Significado
Qualquer que seja o significado que define a expressão, a base em que se situa esta discussão é a importância da língua na vida de uma sociedade: o poder social que as palavras e as ideias por elas expressadas têm sobre o que pensam e como se comportam as pessoas. Língua, como instrumento maior de expressão do pensamento, e base da formação cultural de um povo ou nação. Não é por outra razão que desde sempre os impérios costumavam dominar os povos conquistados pela imposição de sua língua, torcendo a coluna vertebral da própria cultura dos dominados. Também nesse sentido, filósofos da educação, do calibre de Paulo Freire, por exemplo, sempre apontaram a importância do domínio da língua, seja falada ou escrita, como forma de conquista de espaço mais equilibrado na sociedade.
Mudanças pelo revisionismo da linguagem
No seu surgimento, e ainda hoje, o “Politicamente Correto” visava a provocar mudanças sociais em atitudes sexistas, homofóbicas e racistas, expressas cotidianamente pela linguagem, sem serem censuradas, apesar de serem palavras e ideias humilhantes, depreciativas ou intimidadoras contra as minorias. De certa forma, o surgimento do movimento “Politicamente Correto” responde a uma necessidade social, uma demanda por mais respeito e reconhecimento de igualdades efetivas de todos os humanos, principalmente dando voz às minorias dominadas e escanteadas – que aos poucos, em parte devido ao “Politicamente Correto” , começam a tomar conhecimento de sua identidade e lutar por ela.
O movimento se dá, principalmente, pela vigilância sobre a linguagem, sobre o que falamos e o que escrevemos, com predominância sobre a fala, através da qual nos expressamos em maior quantidade e com mais descuido, deixando os pensamentos ideológicos fluírem, com toda a força da linguagem. As palavras não são neutras e tampouco carregam significados em si mesmas. Tudo o que significa cada palavra e cada ideia é uma construção cultural. As palavras e as ideias carregam significados atribuídos pela sociedade. E neste sentido, mudar o comportamento da sociedade passa pela mudança dos significados das palavras.
A esquerda e a direita no movimento
O movimento nasce atrelado a posturas da esquerda política de propor Políticas Públicas de Igualdade, Equidade e Compensação. É no bojo do “Politicamente Correto” que nascem movimentos fortes contra a discriminação racista, homofóbica e sexista, entre outros. Quase sempre pela voz da esquerda política. Esquerda e direita se posicionam em polos opostos: a esquerda, endossando a necessidade de um debate público sobre políticas de compensação, de respeito aos direitos da minoria, é propositiva (não sem razão, a esquerda lidera a maioria dos movimentos sociais dessa natureza, bem como a produção de documentos escritos, artigos, livros, cartilhas, etc sobre posturas que considera progressistas); a direita é reativa ao reclamar que o movimento “Politicamente Correto” ataca fundamentalmente a liberdade de expressão (não sem razão, a direita usa, como ninguém, as redes sociais para expressar suas meia-verdades pelas fake news e assemelhados, por seu direito de dizer o que pensa, como pensa, sem crivo de eventuais telas de censura).
Caça às bruxas, censura, patrulhamento, reclamam de um lado; desrespeito, desigualdades, exploração, genocídios, apontam de outro lado. Respeitar o pensamento de cada um como ele é, dizem uns; buscar uma forma de convivência mais solidária e respeitosa, dizem outros. Preconceito reverso, dizem uns; ditadura da cultura masculina e branca e ocidental, dizem outros.
O fato é que esses posicionamentos cabem num balaio de gato se entendermos que tudo isso aponta para a falta de cidadania e a ausência do Estado. E a pergunta que não pode ficar calada, anterior a todos esses movimentos é: poderemos viver juntos, respeitando-se todas as formas de se pensar, com um mínimo de respeito à dignidade humana?
Edson Gabriel Garcia, 2023, novembro avançando e espalhando reflexões sobre repúblicas democráticas, liberdades de expressão e consciência do dever histórico e social.
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Política, Economia e Ambiente
As relações entre Economia, Política e Ambiente (Planeta Terra) são viscerais, quase impossível separar uma coisa da outra. O assunto é da alçada de nossos governantes, de todos os pontos do planeta, tema urgentíssimo para se colocar na mesa, antes que seja tarde demais. De verdade, com compromissos reais e verdadeiros, pactos assinados e assumidos e postos em prática – o que não tem ocorrido até o momento visto que as grandes potênciais econômicas “assinam mas não cumprem”. Ou como falamos nas esquinas e nos botecos “para inglês ver”. Clima caótico, visível nos maremotos, terremotos, chuvas avassaladoras e secas insuportáveis, queimadas e degelos, e a ameaça constante do aumento da temperatura, para além – ou aquém – da constante ameaça de vírus letais, alienígenas fugitivos de seu habitat natural, em busca de novos hospedeiros, aí estão assinando o rodapé da página do apocalipse.
Nesse sentido, de retardar o “fim do mundo” como o conhecemos, desengavetamos nossas preocupações ecológicas e acionamos painéis climáticos internacionais, cúpulas, conferências, tratos, acordos, congressos e afins. De quantas e quantos já tivemos notícias e quantos e quantas movimentos e atitudes propostas já escaparam dos trilhos no meio do caminho. A novidade mais recente e próxima, ainda pouco entendida pela maioria de nós é a netzero, o compromisso de reduzir emissões de gases de efeito estufa na atmosfera, cujo nome pomposo martela nossa precária sabedoria: net zero carbon emissions. Do que podemos entender, nós simples mortais, distantes das decisões políticas que nos afetam a todos, esta proposta se parece um pouco com um tardio acerto de contas da humanidade, seus detratores, com o planeta em que vivemos, sem pagar aluguel, royalties, juros, ou qualquer outro aceno pelo uso. A conta chegou. Ou pagamos ou...pagamos. Basicamente, sem querer nem poder abarcar toda a significação desse aporte comportamental na questão do respeito ao ambiente, isto significa reduzir a zero (????) a emissão desses gases que, dada a produção estratosférica da indústria, principalmente dela, que é força determinante na Economia, vem aumentando descontroladamente nas últimas décadas. Essa pretensão se esbarra na Economia e na Política. De um lado, as grandes potências econômicas responsáveis por emissões desses gases que apontam sempre para o futuro suas intenções e decisões sobre a mudança de matrizes produtoras já que não suportam perdas econômicas. De outro lado, embora quase sempre participando de todos os movimentos nessa direção, a maioria dessas potências não se engajam verdadeiramente nos movimentos de redução de gases de efeito estufa, principalmente do pior deles, o tal dióxido de carbono (CO2). O que se vê é uma parceria covarde, sorrateira e nunca declarada às claras, entre a Economia e a Política, se autodeterminando e se impondo, pelas grandes potências, econômicas aos países periféricos. Afinal, como quase sempre vivemos, a dúvida permanece: é a Economia que dita regras para a Política ou a Política que deveria traçar os caminhos da Economia?
Recentemente vem sendo colocada em prática a ação de compra e venda dos créditos de carbono, uma ação de difícil concretização, mas com efeitos positivos contra a emissão dos gases de efeito estufa. Devidamente certificados, com aferição feita por empresas credenciadas, é possível a empresas e governos – de qualquer localização geográfica – possam receber créditos de carbono, por sua mitigação na produção dos referidos gases, e vendê-los no mercado para interessados agressores e emissores desses gases nocivos na atmosfera. Faz lembrar um pouco as “indulgências” religiosas, nos idos da Idade Média, no registro das atrocidades da humana religiosidade, criaram-se essas tais “indulgências” que, num brevíssimo e pouco cuidado resumo, significava à época, comprar da Igreja o perdão pelas faltas cometidas (o assunto é interessantíssimo e vale um aprofundamento por conta de interesses pessoais na matéria). Ou seja: o pecador compra o perdão, paga por ele e pode continuar pecando. Haja paciência para tanta hipocrisia!
Em meio a essas tentativas de mitigar a pegada ecológica, vale lembrar que é bem-vinda uma (nova) leitura, por todos nós, da sempre bem citada e didática CARTA DA TERRA, documento internacional, escrito na ONU em 1987, já apontando preocupações ambientais e propondo desenvolvimento sustentável e respeito acentuado pelo planeta.
O que temos para hoje, e que fica como reflexão, é relação intrínseca entre a Política para o Ambiente Sustentável e a Economia, como um cabo de guerra, envolvendo decisão lá e cá, que custará bilhões em investimentos para que tenhamos energia renovável, que tenhamos um sólido desenvolvimento dos veículos elétricos e soluções baratas para a produção do hidrogênio verde, além de descarbonização do clima de modo geral. Tudo isso passa pela relação tensa entre Economia e Política (na discussão sobre o planeta que queremos e precisamos para viver bem) pois envolve receitas (com alteração na arrecadação) e altos investimentos. E a questão que se apresenta é: essas ações poderão acontecer sem aumento de tributação. Chegaremos lá?
Edson Gabriel Garcia, 2023, outubro passando apressado a bola para um novembro republicano.
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A PAZ
Corro riscos ao querer escrever sobre a Paz. Riscos de caminhar no limite entre a seriedade e a abrangência que o assunto pede e a possibilidade de escorregões rumo às ligeirices conceituais. Não consigo calcular os riscos teóricos pois a força da vontade de escrever é maior e embaça minha decisão. Vamos lá (e que me perdoem os leitores e leitores caso afronte sua inteligência).
Afinal, o que é a Paz?
A palavra “pacem” tem origem na língua latina, cujo significado é a ausência de violência ou de guerra. Simples, assim. Ou, complexo, assim. Nessa singela definição cabem outros tantos significados: a paz interior individual, a paz serena de um agrupamento familiar, a paz social de um grupo ou nação, a paz espiritual buscada, vendida ou prometida pelas religiões, a paz política mundial. É possível instalar um conforto egoísta em cada pedaço dessa significação ampla e ali se estabelecer. Mas... e o contexto social mais amplo, em que cada um de nós se insere, na dependência atávica uns dos outros, pela sobrevivência, não importa? É possível ter ou estar em paz sozinho? As demais pessoas da humanidade não importam?
A história da humanidade não nos gabarita a apostar que a Paz é um estado possível de ser estabelecido em todo o mundo, por períodos maiores do que quase nada. Desde que a sobrevivência grupal passou a ser a norma da história das civilizações, a violência, a disputa e a guerra passaram a dominar. Primeiro por instinto e depois por necessidade e prazeres. Na sequência, com a complexidade social imposta pelo crescimento das tribos e grupos e civilizações, a política e a economia de sustentação desses agrupamentos passaram a ditar as normas, regras e tópicos de eventuais momentos de Paz. A conquista da terra, da água, da energia solar e as descobertas (ou invenções) respaldaram historicamente os movimentos de desassossegos. Das tribos e dos grupos maiores aos impérios e dinastias, a luta pela sobrevivência, pelo domínio, pela imposição e pela hegemonia sempre estiveram presentes. Os humanos crescendo o olho no planeta, no trabalho e nas relações. A luta de classes, divididos que fomos e assim caminhamos, presente em muitas batalhas ideológicas ou fisicamente violentas. Uma sucessão de batalhas, de revoluções e de guerras nos acompanha. A história das guerras não caberia em milhares de páginas de registro escrito. A roda, a pólvora, o avião, o átomo e a tecnologia de informação que o digam. A desigualdade, as chacinas raciais, holocausto, as mortes por fome e doenças, a exploração da mão de obra, escravidão, o terrorismo, a ignorância fundamentalista de religiões e suas estúpidas guerras santas, o real interesse da indústria pela venda de armas de guerra, o pouco investimento em educação, negacionismo etc. que também o digam.
A Paz talvez seja hoje a commodity de mais valor no mercado internacional. Embora não caiba dentro da definição do que seja uma commodity (mercadoria originária do setor primário, de baixo valor agregado, comercializada em grande volume no mercado internacional), vale a metáfora ao inverso: a Paz como commodity de altíssimo valor, como produto base e matéria prima para tantos outros na economia do diálogo e do entendimento. Quem possui-la e dominar a tecnologia de sua construção ou extração terá um produto de altíssimo valor nas “bolsas de valores” do belicoso mercado internacional. A questão é: haverá compradores interessados? Shakespeare já desafiava nossa sanidade ao refletir sobre a humanidade e dizer, via personagens marcantes, que “os idiotas (loucos) conduzem os cegos”. Mais atual do que isso, nosso mundo povoado por Putins, Orbans, Kim Jong-uns, Netanyahus, Trumps, Bozos, Maduros, Erdogans,.... , tomando decisões em nome de milhares de alienados políticos, transformando o mundo em um barril de pólvora prestes a explodir!?
Em contrapartida, ao longo dos séculos de existência da humanidade, diversos apelos e ações foram – e ainda são – feitos\as em busca da Paz: manifestos, movimentos, objetivos de desenvolvimento sustentável, criação de organismos internacionais agrupados em torno dos pilares da cultura da paz, quais sejam, o respeito pela vida, rejeição a qualquer tipo de violência, a prática da generosidade e da solidariedade, a prática da mediação dialogada e de comportamentos de preservação do planeta. Nesse sentido, a Paz não deve ser apenas um enfeite em discursos políticos, mas, sobretudo, uma necessidade de sobrevivência da humanidade, com uma forte demanda por engajamento de todos em diversas frentes: em casa, no trabalho, na escola, nas redes sociais, na igreja, em movimentos, em organismos, em partido políticos, tendo como sustentação dessa participação a mediação dialogada pelo fim dos conflitos (de toda natureza). Como poetizaram na letra da música FELICIDADE, Vinícius de Moraes e Tom Jobim, “a felicidade é como a pluma\que o vento vai levando pelo ar\voa tão leve\mas tem a vida breve\precisa que haja vento sem parar”.
Também a Paz precisa de bons ventos que soprem a delicadeza de sua sustentação contra as tempestades de intolerância e ignorância. Sob pena de continuarmos mantendo uma sociedade de hipocrisias ululantes.
Edson Gabriel Garcia, 2023, outubro que nos permite recarregar energias em meio a tantos desassossegos.
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A Política dos pequenos gestos
Sabemos de longa data, por experiência própria ou por ouvir dizer, que uma grande caminhada começa sempre com o primeiro passo. E, a filosofia popular, a do bom senso no senso comum, nos faz refletir sobre mudanças quando expressa “grandes mudanças começam com a mudança individual”. Recolhi alguns lemas populares, ouvidos aqui, lá e acolá, os quais resumo neste texto, com a intenção de provocar repostas pensantes. Vamos lá!
1.NÃO TERCEIRIZE
Simples: não passe para terceiros a responsabilidade que é sua. É sempre mais fácil e cômodo passar para outros a responsabilidade que cabe a cada um de nós. Um jeito fácil de lavar as mãos, como pontificou Pilatos. Reponsabilidade dá trabalho, exige reflexão, estudo, posicionamento, manifestação e defesa de posição. Implica também assumir as consequências. Eis porque muitos de nós preferem a comodidade do silêncio do que o diálogo, nem sempre fácil, do posicionamento, da defesa de uma ideia, de uma prática, de uma teoria ou posição ideológica. Não terceirize: assuma o calor, as borbulhas, os riscos concêntricos, as divergências e se posicione.
2.NA DÚVIDA, PERGUNTE
Não há mal nenhum na dúvida. Pelo contrário, a dúvida é o princípio da motivação da aprendizagem. Não ter dúvidas é viver pelos sentidos da quietude, do enclausuramento do medo, no falso conforto da sabedoria. Dúvidas fazem parte da vida de todos nós. E esta é uma das poucas e raras certezas: duvidar é viver, é locomover-se entre muitos sentidos, é sentir o pulsar do conhecimento batendo à porta. Ter dúvidas, não importa a natureza delas, é o primeiro passo para a busca da resposta. Na dúvida, abra a caixa de perguntas e pergunte. Pergunte, ouça, balance e se refaça. Dúvidas incomodam, mas nunca superam o prazer de ter respostas, ainda que provisórias, vindas como fruto da perguntação. Podemos aprender com as crianças o exercício saudável dos “porquês”.
3.NÃO SE FAÇA DE MORTO
Com todo respeito pelos mortos, até porque também os mortos falam (estamos sempre a dialogar com nossos antepassados), diz o provérbio popular que é certamente uma crítica aos que optam pelo silêncio, pela boca fechada, pela ausência de participação. Partidários do “alguém tem que fazer alguma coisa” ficam “na moita”, esperando desfechos dados por outros, mesmo que não sejam favoráveis ao próprio interesse. A caravana passa, os cães não ladram e levam de roldão oportunidades de se fazer vivo e atuante, pensante e participativo na história de seu tempo.
4.NÃO SE ESCONDA NO ANONIMATO
O mundo contemporâneo permite e, muitas vezes, leva ao anonimato como forma de postura defensiva ou covarde. Com raras exceções, salvo quando a vida ou o trabalho corre perigo, manter-se anônimo pode ser entendido como covardia ou medo do enfrentamento necessário. Ou, no caso de fake news e provocações falsas dessa natureza, revelam um sentimento de desprezo pela humanidade. Nomine-se, mostre sua cara e faça parte da história visível.
5.NÃO ESPALHE FAKE NEWS
Uma das pragas de nossos tempos, um dos males do século, fake news encontram terreno fértil no desconhecimento, no mau caratismo, na ignorância e na aposta no caos. Aliadas à falta de consciência social e política, fake news se espalham com incrível rapidez a tal ponto que mesmo quando denunciada ou corrigida o estrago já foi feito. Não faça parte dessa corrente de tolices mal intencionadas: interrompa e denuncie. Se o assunto interessa, busque fontes confiáveis. Antes de divulgar “coisinhas tão bonitinhas, com carinha de verdade”, reflita, pense sobre o assunto e busque mais informações. Fake news se derretem frente ao conhecimento.
6.PARTICIPE, SEMPRE QUE A SITUAÇÃO ENSEJAR E VOCÊ PUDER
Há inúmeras formas de participação, muitas, que vão desde a formulação de uma opinião sobre determinado assunto à filiação partidária e participação em um pleito eleitoral. Entre essas cabem: debates, clubes de leitura, palestras, participar de grêmios estudantis, de associações de bairros, de conselhos os mais diversos, lives, votar, etc. Das mais simples às mais complexas, das que demandam pouco tempo às que pedem maior tempo, das que solicitam menos envolvimento às que exigem maior preparo. Participar será sempre um ato político, não necessariamente partidário, de construção da própria cidadania.
7.TENHA CONFIANÇA NO CONHECIMENTO
Ter conhecimento, saber das coisas, entender um pouco mais, gostar de saber e aprender, ter prática em consultar fontes diversas... enfim, todas essas práticas pertencem ao conjunto do universo do saber. Não se pode saber tudo nem tampouco dominar todo o conhecimento universal acumulado (eis aí um grande desafio para a inteligência artificial). Talvez esteja nessa limitação a dor contemporânea de nunca saber tudo. Correr atrás desses saberes acumulados, não para acumulá-los feito estrato bancário, mas permitir ao conhecedor situar-se melhor no mundo, complexo, atual e se locomover como sujeito pensante, atuante, comprometido, defensor da ciência, da arte, da cultura e da educação como pilares de uma sociedade mais justa e mais equilibrada. Com menos conflitos desnecessários.
Para suas reflexões, comentários, anotações.
Edson Gabriel Garcia, 2023, outubrando a alegria das crianças e de seus mestres, cultores do saber, por novas cidadanias.
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A Carta Magna ainda continua magna
Comemoramos (a palavra exata é esta mesmo: comemoramos), neste outubro de 2023, gloriosos, turbulentos, ameaçadores e balizadores trinta e cinco anos de promulgação da nossa Carta Magna. Merecemos a justa comemoração. Argumento por este ponto, a seguir com pequenas lembranças políticas que envolvem este poderoso documento legal.
1.MAIOR TEMPO DE CONSTITUCIONALIDADE PÓS REPÚBLICA
Embora ainda na flor de sua juventude, nos seus trinta e cinco anos de existência, temos que comemorar ser esta a Carta Magna mais longeva da história, plena de instabilidade, após a proclamação da República. Nesses cento e alguns anos de República, em que passamos por diversos dissabores políticos, entre os quais dois longos períodos ditatoriais, esta, de 1988, certamente, tem sido a mais duradoura. Bom lembrar que neste período pós republicano tivemos sete constituições, embora aqui haja desacordo entre os historiadores e estudiosos da matéria, muitas delas “outorgadas” e não “promulgadas”.
Há, no campo político, uma diferença enorme entre as palavras “outorgada” e “promulgada”. Ambas se referem à forma como uma Constituição vem a público: “outorgada” exemplifica o processo autoritário, de imposição, tipo goela abaixo; “promulgada” revela um processo mais democrático de aprovação de uma Constituição dentro das regras democráticas.
2.COMO SE ESCREVE UMA CONSTITUIÇÃO
Uma Constituição sempre deverá emanar do desejo e das necessidades de uma sociedade, do povo, de uma nação. Não sendo assim, não representará democraticamente o desejo da maioria. A escrita de uma Constituição ou uma revisão geral, democraticamente, tem que ser feita por uma Assembleia Nacional Constituinte, eleita para essa finalidade. Os parlamentares, eleitos para esta nobre finalidade, deverão ter a paciência histórica de ouvir grupos, de todas as naturezas e matizes, anotar interesses, dificuldades, demandas, com o objetivo de redigir uma Carta, cujo rol de artigos seja o desenho mais próximo da melhor organização e funcionamento da sociedade. Muito difícil, há de se registrar, até porque muitos interesses e demandas são conflitantes (tomemos, como exemplo, a questão da ocupação da terra pelos povos originários e a discussão do marco temporal). É pela via da negociação democrática que se chegará a um texto final, que será submetido à votação e posterior promulgação. Assim como ocorreu com nossa Carta atualmente em vigor.
3.CONSTITUIÇÃO CIDADÃ
Louve-se o esforço dos parlamentares da Assembleia Nacional Constituinte para nela se incluírem os direitos humanos (sociais, civis e políticos), estes absurdamente usurpados, tripudiados, vilipendiados, jogados na lata de lixo pela crueldade dos governos militares da ditadura que nos antecedeu, basicamente sustentados pelos inúmeros Atos Institucionais que garantiram, pela força e violência, a ditadura. O apelido carinhoso e oportuníssimo de Constituição Cidadã é justo e acertado, ainda que estejamos, até agora, lutando pela implantação de muitos desses direitos, em sua plenitude. Faz parte do jogo democrático.
4.ALGUNS PONTOS QUE SE SOBRESSAEM NESTA CARTA MAGNA
Os freios e os contrapesos. Ao estabelecer que os três poderes são independentes e harmônicos, a Constituição Federal criou mecanismos em que um poder depende do outro, criando freios naturais para que o excesso de poder não prevaleça em nenhum dos três. Certamente, os traços autoritários do Poder Executivo, algo que ainda temos que discutir e “re-emendar”, muitas vezes são contidos pela atuação do outro Poder (Legislativo ou Judiciário). Talvez valesse a troca dos adjetivos “independentes e harmônicos” por “autônomos, mas interdependentes e obrigados ao diálogo e respeito mútuo”, mas isto é conversa para outra ocasião. Freios e contrapesos deveriam ser o caminho natural do relacionamento entre os três poderes, favorecendo e convidando ao diálogo permanente.
Cláusulas Pétreas. Cláusulas Pétreas são pontos da Constituição que não podem ser modificados (nem mesmo por emenda constitucional), salvo se for para ampliar o seu alcance de significação. Pensou-se assim para dar maior estabilidade ao Estado brasileiro, principalmente em sua organização federativa e forma de regime de governo. Estas cláusulas estão dispostas na Constituição de 1988 no Parágrafo 4º do Artigo 60: a forma federativa do governo; o voto secreto, direto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e os direito e garantias individuais. Há uma discussão teórica se a mudança de cláusulas pétreas pode ser feita mantendo-se a mesma Constituição ou se essa mudança viria em forma de nova Constituição.
PECs. Uma PEC é um projeto de emenda à Constituição. Uma PEC, se aprovada, se transforma em uma Emenda Constitucional, alterando o texto original, pode ser proposta e discutida no Parlamento Federal. Aprovada, é incorporada ao texto da Carta como Emenda Constitucional.
5.A ETERNA VIGILÂNCIA CONTRA OS ANTIDEMOCRÁTICOS E AUTOCRATAS
Não basta termos um texto constitucional, como o de 1988, uma das raras constituições legitimadas pela participação da sociedade civil organizada: é fundamental a vigilância contínua e atenta contra os movimentos autoritários e policialescos, mascarados pela falsa moralidade, empunhando bandeiras do atraso, do conservadorismo e do negacionismo. Vale reafirmar a luta constante, na defesa da Constituição Federal, pela preservação dos direitos conquistados, pela soberania do povo, pelo respeito à classe política, pela diminuição do poder autoritário do Estado e pela defesa do STF como guardião da Carta.
Edson Gabriel Garcia, 2023, outubro na parada, um brinde aos direitos conquistados e à eterna vigilância das garantias da liberdade política.
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FORÇAS ARMADAS: por uma biópsia de sua estrutura, funcionamento e pertinência
O tema, como outros tratados aqui, é espinhoso, caloso, espinhento e cascudo! E poucos gostam de falar disso, seja por medo, ainda resquícios da ditadura militar, seja por desconhecimento. É exatamente em nome do conhecimento -e, em Política, conhecimento é tudo- que proponho nestas breves considerações algumas reflexões sobre a tão poderosa e tão insuspeita e tão temida FORÇAS ARMADAS do Brasil. Retomarei alguns escritos, de esclarecimentos, e em seguida, levanto algumas questões que me parecem ser necessárias na atual conjuntura.
O QUE SÃO AS FORÇAS ARMADAS
As Forças Armadas são constituídas pela Aeronáutica, Marinha e Exército, de bonitos uniformes costurados em tecidos de alta qualidade e bordados não menos simbólicos e carregados de energia visual intensa. Vivemos, sabemos, também, de muita informação simbólica, de muitos rituais, demonstrações de força e ritos pouco úteis ao cotidiano da apertada vida da maioria de todos nós. No geral, as armas (que embutem a força da violência) e a simbologia dos rituais (que encantam mas de rara serventia) servem para quê?
Historicamente a definição do papel que cabe às Forças Armadas é definido pela Constituição e por outros documentos legais infraconstitucionais (leis/decretos), com base em um corpo estável, disciplina e hierarquia. Na atual Constituição o assunto é também tratado, no artigo 142, institui para além da defesa da Pátria, dos poderes constituídos, a garantia da lei e da ordem. Para alguns analistas, este pequeno artigo, ensejador de clima pré-golpe, foi pensado como um suposto quarto poder, poder moderador, que em tese não existe constitucionalmente (são três os poderes do nosso Estado Democrático de Direito, como sabemos). Este lusco-fusco de poder a maior não melhora o desempenho das Forças Armadas e desenquadra sua existência constitucionalmente ou, no mínimo, tira o foco de sua função precípua, a defesa – não o olho belicoso de ataque. Esta interpretação de que a garantia da lei e da ordem, pelo artigo 142, estendido aos chefes dos três poderes, é equivocada e serve apenas para reforçar ideias de golpistas, de políticos incapazes de lidar com os conflitos próprios da democracia, que preferem politizar a desejada isenção das Forças Armadas incitando-as à inobservância de suas obrigações constitucionais e levando-as a sonhar com um poder que é civil e não militar.
O QUE PRECISAMOS SABER SOBRE AS FORÇAS ARMADAS
Há uma caixa escura, opaca, sem nenhuma transparência sobre as Forças Armadas: Quantos são? Como estão distribuídos? Qual o custo salarial desses servidores? Quais são as unidades estabelecidas fisicamente? Qual o custo desses estabelecimentos? Qual o custo total da manutenção desses efetivos e suas despesas? Quais benesses salariais os beneficiam, diferentemente dos demais servidores? Quais tratamentos diferenciados são dados aos membros dessas forças? Efetivamente, quais serviços de proteção aos cidadãos e à nação são realmente essenciais? Há alguma análise, como se diz em economês do “custo-benefício” da manutenção desses efetivos e suas bases e equipamentos?
O QUE PRECISAMOS DISCUTIR SOBRE AS FORÇAS ARMADAS
Algumas questões básicas chamam a discussão:
1.Qual o papel de Forçadas Armadas no mundo contemporâneo, do ponto de vista bélico, uma vez que as grandes potências têm armas de potencial destrutivo imediato?
2.Qual o papel de Forças Armadas na sociedade atual no sentido de defender a nação internamente? Contra quem?
3.De quantos homens e mulheres precisamos as Forças Armadas, no novo contexto contemporâneo em que a inteligência é mais necessária do que o volume e quantidade de soldados e graduados?
4.Membros das Forças Armadas podem participar da Política, metendo-se em governos, em cargos e assessorias?
5.Que tratamento dar aos membros das Forças Armadas metidos em situações de corrupção?
6.Qual a formação básica que deve ser proposta para esses cidadãos da defesa?
Relembrando que os membros dessa força são servidores públicos e, como tal, devem servir ao povo e à nação, sem privilégios e sem a tutela do medo imposto pela força. O mundo atual pede revisão de muitos aspectos da constituição de uma nação, do Estado, da relação entre os poderes, dos poderes, simbólicos ou não, das prioridades, enfim. Reler e reencontrar caminhos para as Forças Armadas é uma dessas revisões necessárias.
Edson Gabriel Garcia, 2023, de cara nova com novo mês, bem chegando outubro, mês tradicional de eleições, estas sempre a renovar esperanças.
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A supremacia do Supremo Tribunal Federal
Fôssemos todos nós crentes da existência de Deus, estaríamos a exclamar: só por Deus! Mas, como nem tudo faz parte do pensamento único e tantos de nós não terceirizam os seus problemas para a divina providência, eis que temos que conhecer um pouco mais do STF, entender o que se passa na indicação de novos ministros e...rezar pela competência socialmente ajustada com os progressismos dos futuros ministros na hora de sua escolha, argumentação e voto. Segue uma breve radiografia (ou um ultrassom, se preferirem) do “esseteefe”:
UM DEDO DE HISTÓRIA: o STF está entre nós desde a proclamação da Independência (1822), com o nome de Supremo Tribunal de Justiça, derivado similar português Casa de Suplicação, trazido por D. João VI quando da fuga da família real de Portugal para o Brasil. Foi renomeado, como Supremo Tribunal Federal após a instituição da República (1889).
DEFINIÇÃO CONSTITUCIONAL: ficou mantido pela Constituição Federal de 1988, definido por uma cláusula pétrea (que só pode ser mudada por uma Assembleia Nacional Constituinte), no artigo 60, referendando o que já está estabelecido no “Artigo 2:- São poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Ou seja: é um poder político que divide com os outros dois a manutenção do sistema político democrático.
PODER JUDICIÁRIO: o “esseteefe” é a corte maior do Poder Judiciário, ao qual cabe a função típica de garantir direitos coletivos, individuais e sociais, mediar e solucionar conflitos entre cidadãos, grupos, organizações civis e instâncias políticas do Estado. Questões que a política cotidiana não consegue resolver ou se posicionar, por ausência de fundamentação constitucional ou, com frequência, por interpretações polarizadas, são resolvidas pelo STF. Em suas atribuições, a mais importante delas, definida pela Constituição Federal vigente, é ser o guardião da Carta Magna. Não por outra razão, o Supremo se vê constantemente às voltas com as chamadas “ações diretas de inconstitucionalidades”, conhecidas como ADINs, em que ações, atos, decisões, propostas, omissões, etc são questionados. Nesse sentido, o STF não legisla, invadindo competência de outro poder, como alegam alguns, mas esclarece dúvidas sobre as supostas inconstitucionalidades, devolvendo interpretações sobre essas supostas arbitrariedades e irregularidade ao entendimento de normas constitucionais. Por esta responsabilidade, é reconhecidamente a casa mais alta do Poder Judiciário, uma vez que lida com as tensões constitucionais e com questões de amplitude nacional e de relevância para toda a sociedade.
FREIOS E CONTRAPESOS: ao estabelecer que os três poderes são independentes e harmônicos, a Constituição Federal criou mecanismos em que um poder depende do outro, criando freios naturais para que o excesso de poder não prevaleça em nenhum dos três. Certamente, os traços autoritários do Poder Executivo, algo que ainda temos que discutir e “re-emendar”, muitas vezes são contidos pela atuação do outro Poder (Legislativo ou Judiciário). Talvez valesse a troca dos adjetivos “independentes e harmônicos” por “autônomos, mas interdependentes e obrigados ao diálogo e respeito mútuo”, mas isto é conversa para outra ocasião. Freios e contrapesos deveriam ser o caminho natural do relacionamento entre os três poderes, favorecendo e convidando ao diálogo permanente.
SEDE E COMPOSIÇÃO: A sede do STF é Brasília, capital da República, onde estão estabelecidos os demais poderes da União. O STF é composto por onze ministros, número ímpar para que, havendo empate, o voto de minerva seja dado pelo/a presidente. O ministro, indicado, com idade entre 35 e 70 anos, quando da vacância de um dos cargos, pelo Presidente da República, deve ser escolhido por sua reputação ilibada, seu amplo conhecimento das leis e do funcionamento do Poder Judiciário (notório saber), por sua experiência diversificada (entre outras, a docente e a de estudioso da matéria jurídica). Após sua indicação, o candidato à vaga é sabatinado pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, com duração longa, próxima de uma dezena de horas. Se aprovado, é encaminhado para o Senado, onde passa por nova votação. Nesta sabatina o indicado é inquirido sobre diversos assuntos/temas pertinentes, não só do ponto de vista jurídico, mas também sobre o que pensa de assuntos/temas de relevância. É composto por onze ministros(as) cuja escolha é feita pela Presidente da República e aprovada pelo Congresso Nacional. A indicação feita pelo Presidente deve se pautar pela competência, experiência e comportamento cidadão ilibado do(a) indicado(a). A duração do mandato é até o momento em que o(a) ministro (a) completa setenta e cinco anos. Aposenta-se automaticamente e abre vaga para nova indicação.
DOIS DEDOS DE PROSA SOBRE OS BASTIDORES DO STF: o STF é objeto de muitas conversas “paralelas”, entre as quais: a) de ideologias de extrema direita e de governantes autoritários que não querem ver suas decisões questionadas pela suprema corte e insinuam o fim dessa corte; b) de propostas de diminuição do tempo do mandato (e não como é hoje até os 75 anos); c)ampliar a escolha dos novos ministros envolvendo mais setores da sociedade civil (e não como é hoje, com indicação feita pelo Presidente da República, sobre quem cai a responsabilidade da indicação e toda a pressão da sociedade por indicação pareada com representantes de determinadas classes ou categoria ou gênero ou etnia ou...); d) estabelecer voto secreto dos (as) ministros (as) ( e não voto aberto, como é hoje).
OUTROS DOIS DEDOS DE PROSA SOBRE A ATUAÇÃO DO SUPREMO: as modernas democracias, muitas delas polarizadas, têm mantido relações tensas com a Suprema Corte seja pela natureza dos impasses políticos, sociais e morais que chegam ao Supremo, travados no cotidiano da Política, com as correntes políticas e ideológicas sem força para decidir, seja pela desarmonia entre os poderes da República. Muitas decisões políticas, polarizadas entre esquerda e direita, progressistas e conservadores, democratas e autocratas, são decididas pelo voto dos (as) ministros(as). Ao mesmo tempo em que a Política perde um pouco o espaço de respeito da população, o Supremo acaba se tornando (nestes momentos atuais, é bom que assim seja) uma casa legislativa, ainda que provisória, mais ativa, aberta a todas as discussões, resguardando a democracia e as conquistas progressistas.
Bem ou mal, com os(as) ministros (as) que temos, conseguimos ainda respirar ares democráticos em meio ao atoleiro político em que vivemos.
Edson Gabriel Garcia, 2023, setembro trazendo sensações de que o inverno não é tão feio assim e a primavera sempre chega.
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Reformas eleitorais e preocupações no varejo?
Reformas vêm e vão. Reformas acontecem, pois, são necessárias. Na maioria das vezes, embora outras tantas, nem tanto. Ou como diz um adágio popular, irônico: mudar para não mudar. A palavra reforma, da qual temos muitas lembranças nos relatos históricos da humanidade, como diz a própria palavra é dar novo formato, uma nova forma, com o prefixo “re” significando, neste caso, “de novo”. Assim, “re-forma” significa dar uma nova forma, um novo formato, um novo jeito, trazendo embutido o sentido de novidade. Ainda que, contraditoriamente, também traga o sentido de que nem sempre a “forma” é totalmente nova. Às vezes as novidades trazidas pela mudança são feitas apenas de aparência e na essência as coisas continuam como antes. Pintar as paredes de uma casa, refazer o telhado, trocar as janelas de alumínio por madeira, trocar a fechadura, o chuveiro, etc, não mudam necessariamente o modo de se transitar dentro da moradia.
Reformas, quando beneficiam os interessados, são sempre bem-vindas, para além de necessárias. Em Política, reformas eleitorais são bem-vindas e necessárias, principalmente quando tratam de ajustar a tramitação política aos novos reclames da sociedade. E quando estamos falando em reformas eleitorais, estamos nos referindo ao processo eleitoral que se dá, por aqui, de dois em dois anos, como previsto em uma das reformas eleitorais. Estamos falando de cotas, de federações, de coligações, de fundos eleitorais, entre tantas outras coisas. Como já afirmei, reformas são bem-vindas e necessárias: o mundo muda, gira, roda, se complexifica e é preciso ajustar as regras eleitorais às mudanças da sociedade. No entanto, um olho no gato e outro no peixe, é preciso estar atento às propostas de reformas eleitorais (estas devendo ser discutidas e aprovadas até um ano antes da eleição seguinte). Do ponto de vista formal, vale atentar para um dos piores defeitos da Política nacional: legislação em causa própria (os políticos legislando a seu favor). Do ponto de vista do mérito das reformas, vale lembrar: a) o que está sendo proposto e b)o que é emergente e não está sendo discutido. Falemos um pouco de cada um desses pontos.
Há, hoje, tramitando na casa legislativa federal, foro dessas reformas, alguns projetos de lei direta ou indiretamente ligados a essas possíveis mudanças. Nesse sentido, tramitam três proposituras, em processo apressado de votação, entre as quais uma emenda constitucional, que alteram a prestação de contas dos gastos eleitorais, que perdoam multas de partidos que não cumpriram as regras eleitorais vigentes na última eleição e alteram o sistema de cotas, evidenciando prejuízos a candidaturas de mulheres e negros. São alterações, algumas vergonhosas do ponto de vista da ética política e outras tendenciosas contra minorias, que deveriam ser alvo do mais amplo debate – e não ficar circunscrito à esfera legislativa estrito senso. Concordaríamos com o perdão a partidos que não cumpriram regras da eleição anterior? É como se explicássemos para o aluno que a sua aprovação está diretamente ligada a sua frequência às aulas, mas... mesmo que ele seja faltoso e não cumpra seu dever de assiduidade, é aprovado. Concordaríamos em diminuir o espaço de mulheres e negros, seja no financiamento, seja na cota de candidaturas? Do que se tem medo: da ética feminina na política e do compromisso com o social dos negros? O triste cenário é que essas alterações não estão sendo discutidas com a sociedade, pelo contrário, à boca pequena se conversa alcoviteiramente sobre elas na ótica do interesse exclusivo dos políticos. Infelizmente, da esquerda à direita, parece haver acordo sobre esses temas, sobretudo sobre o comportamento mesquinho de não abrir a discussão em tempo suficiente para que a população se expresse.
De outro lado, o ponto b citado acima, não há uma discussão, com os olhos voltados para a próxima eleição, sobre a regulamentação das plataformas digitais, as tais big techs, no que diz respeito a seu comportamento, principalmente na questão da circulação das fake news, agora potencializadas pela entrada triunfal da Inteligência Artificial e sua possibilidade exponencial de produção de deep fakes. Se já na eleição anterior, a produção de fakes foi abundante, com uma legislação que sequer deu conta de apagar incêndios, imagine-se na próxima eleição, sem o controle das plataformas e com a liberdade escondida e covarde das deep fakes, o que poderá acontecer. Será que daremos conta de controlar o universo (incontrolável?) das redes sociais? Como ficarão as plataformas e sua responsabilidade? Continuarão deixando rolar para depois correrem atrás e só se retratarem mediante ameaça de punição? O tratamento dado às informações que circulam e circularão nas redes sociais é bastante complexo pois a matéria está cercada por vieses do tipo “predisposição em aceitar uma forma de pensar semelhante, velocidade da transmissão dos multiplicadores prontos”, entre outros. Mas se faz necessário, não só pela questão política eleitoral, mas também e principalmente pelo “caráter da sociedade em que queremos viver”, que a discussão sobre as redes sociais, sobre a responsabilidade das plataformas que as sustentam e discussão profunda sobre a qualidade da educação formal que oferecemos aos cidadãos brasileiros estejam presentes em nossas vidas cotidianamente.
O descontrole da reponsabilidade das plataformas, de suas redes e fakes, trazem o vírus do negacionismo, do descrédito com a ciência, dos ataques à democracia, entre outros, o verdadeiro vetor da destruição da sociedade como a conhecemos.
E a discussão política tem essa responsabilidade de apontar para um mundo mais equilibrado, mais justo, mais inteligente a ponto de saber lidar com as inconstâncias que as fakes news nos impõem.
Edson Gabriel Garcia, 2023, setembrando cores fortes e ancorando suportes de equilíbrios sociais. |
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De que têm medo os que temem a Democracia?
Escrevemos, todos nós, muito sobre Democracia. E nunca será demais retomar o tema. Como uma planta, a Democracia requer cuidado permanente, demanda militância por sua saúde política. Na origem, o termo grego é formado pelo radical “demo”, que significa povo, e por “kratia”, que significa “poder”: “o poder do povo”. Como está sacramentado em nossa Carta Magna, promulgada em 1988, no Artigo 1º, parágrafo único “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. Historicamente os registros nos dizem que na Grécia antiga, formada por cidades-estados, em 510 a.c., um político de nome Clístenes inovou na governança de Atenas levando o povo a participar das assembleias e a tomar decisões coletivas. Estudos mais aprofundados dão conta de que nem todos podiam participar dessas assembleias, restringindo-as a alguns cidadãos (homem, maior de 18 anos, livre e com tempo para participar). Mas tudo começou lá, nesse contexto precursor das modernas Democracias, numa época bastante diferente da que vivemos hoje. Melhor do que condenar suas restrições, coerentes com os valores da época, é abonar os avanços, reverenciando aquela forma embrionária da Democracia direta. Chegamos hoje, dois milênios e meio depois, no ano da tomada de assento triunfal da Inteligência Artificial, a uma Democracia Representativa, já quase esgotada, mas ainda democrática e muito necessária, por assim dizer com pleonasmo, constantemente ameaçada pelos que temem seus ideais.
O que temem os que têm medo da Democracia?
Temem, sobretudo e principalmente, a liberdade. Ainda que seja difícil para qualquer um de nós definir com precisão, objetividade e acerto o que seja liberdade, poder pensar e falar, poder se expressar em diversos formatos, suportes e artes, poder sonhar e amar quem e o que couber nessas emoções, poder ser o que se quiser ser e desejar querer uma sociedade mais justa, eis alguns pedaços da soma total da liberdade. Os que temem a liberdade democrática querem homens e mulheres partidos ao meio, dobrados e dobradas. Pregam um limite próximo pois temem o horizonte amplo.
Temem também a crítica. Não suportam (seria isso um defeito de fabricação?) um olhar diferente, uma visão de mundo ou das cores do arco-íris que não seja a sua. Temem ser desarticulados em suas poucas certezas. Temem que o futuro escape de suas mãos, como se o futuro pudesse ser dominável, e ande por outros caminhos ainda a serem feitos. Temem críticas porque estas tiram o caminho eternamente assentado, sob a promessa da vida eterna. Críticas desacomoda o sono no falso travesseiro das coisas perenemente construídas. Críticas incomodam o pensamento e a ação já previamente estabelecidos. Críticas mexem com a certeza falsa de um mundo organizado por um ente absoluto e superior. Temem, acima de tudo, pois as críticas obrigam a um novo pensar.
Os que temem a Democracia têm medo da pluralidade. A pluralidade, irmã siamesa da diversidade, obriga o alargamento do pensamento, leva à certeza de que não há unicidade no universo e à percepção de que a riqueza e a beleza, de tudo e em tudo, esteja realmente na diversidade plural. Pluralidade e diversidade mostram que são muitos os caminhos possíveis e chamam a escolhas, incomodando os adoradores do deus do caminho único, certo e conhecido. Devem se perguntar, os que têm medo da Democracia, “porque haveria de me perder em tantos e plurais e diversos caminhos quando o meu já está definido, pronto, acabado e deitado em berço esplêndido¿”. Para quê buscar outras verdades, se a minha é absoluta, desconsiderando-se o alerta filosófico de que a verdade absoluta é a soma de todas as verdades relativas. E estas são muitas, plurais e diversas.
Temem, com a força de que podem dispor, a distribuição do poder em coletivos que não sejam os autoritários de plantão. Preferem o poder autoritário que a Democracia refuta e refaz, pois este permite e aceita e se nutre de uma terceirização de responsabilidades. Um poder autoritário que decide por todos, sem precisar se remeter a ninguém, e facilita o prazer dos que não querem saber de Política nem de discussões, nem de outras verdades relativas. Temem a Democracia porque esta, seja como postura de vida ou como regime de governo, chama à decisão, faz consultas, abre possibilidades, pede a participação cidadã. Faz as pessoas saírem de sua bolha e acordarem de seu sossego. Temem a Democracia porque preferem um deus político, mesmo assentado em pés de barro, que tome decisões, não importando o teor dessas decisões, e arrote café e pão com manteiga de boteco de segunda categoria.
O que mais temem os que têm medo da democracia? Temem o diálogo. Não o diálogo monologado, burocrático e gramatical. Temem o diálogo, no seu sentido de transitoriedade dos significados, que ora está aqui e ora está ali, que em um momento está com um interlocutor e adiante estará com o outro. Temem o diálogo como o veiculador de sentidos diversos, de ocupação provisória da fala e do significado. Temem que um diálogo, aberto, como convém a todo diálogo e cujo final será sempre provisório, leve a pensamentos e emoções e sentidos diferentes.
Temem mais coisas. Estas, ditas acima, parecem mais urgentes de serem denunciadas (ou sopradas ao vento) para que saibamos com quem estamos lutando pela manutenção da Democracia. Conhecer os adversários e o terreno em que pisam e os ares que respiram certamente nos ajuda a fortalecer a luta diária pela Democracia.
Edson Gabriel Garcia, 2023, setembro chegando e renovando esperançamentos de lutas vitoriosas.
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CALABOQUISMO
Abrevio o seu caminho: essa palavra não está dicionarizada. Não precisa usar seu precioso tempo para buscar o seu significado. Tomei para mim o direito de criá-la, diga-se de passagem, sem muita criatividade, pois derivada da expressão “cala-a-boca”, ordem imperativa, interjeição, talvez, vício do autoritarismo, é de fácil entendimento. Aqui, para nosso entendimento e prosseguimento da leitura, calaboquismo (como o sufixo ismo, particularidade de nossa língua, cujo significado é dar o sentido de agrupamento de pessoas em torno de uma ideia, de uma proposta, de um modo de se ver coisas da vida) designa um movimento, uma ação coletiva ou uma ideia de muitos com o intuito de se impor limites de fala. Em Política o sufixo é largamente usado principalmente para dar nomes a movimentos de defesa ou participação na divulgação de determinada forma de pensar e agir, seguidores de movimentos políticos: parlamentarismo, autoritarismo, continuísmo, fisiologismo, negacionismo, racismo, sexismo. A lista é quase infinita e de grande poder renovável. Vale lembrar que nem sempre se presta a designar movimentos de tristes memórias. A escolha dos exemplos foi acidental.
O “ismo” de agora é o calaboquismo, do qual se pode entender facilmente que estamos a falar de um movimento em torno do “cala-a-boca”. Um movimento contra liberdades, como direitos da diversidade e pluralidade e, sobretudo, contra manifestações críticas. Quero chamar a atenção para o fato de que, mesmo em regimes democráticos, sob as asas hipotéticas da liberdade, esse movimento pode dar as caras e prosperar. Vivemos isto recentemente, na Política brasileira, e se nosso sinal de alerta não estiver ligado diuturnamente, o avanço do calaboquismo vem com tudo. Digo vem e não virá. Quero dizer que a ameaça é presente e não futura. Neste sentido, conhecer as caras desse calaboquismo se faz interessante para que possamos identificar o monstro e combatê-lo com as armas do conhecimento, da razão, da coragem e da ação política.
Quais seriam as caras do calaboquismo?
Ouso apontar algumas delas.
A primeira delas é o disfarcionismo. Pregar que vivemos em uma democracia, que a democracia se autossustenta e se auto regulamenta e, por isso está protegida, nos deixa desarmados e desligados das falas autoritárias e ideologicamente comprometidas que vão se espalhando e dominando mentes menos avisadas e precavidas. O preço da manutenção das liberdades democráticas está na vigilância frequente, na mente ligada, na atenção redobrada. Militância democrática contra o engodo de que na democracia pode-se falar e fazer o que bem se entende.
Outra característica do calaboquismo é o negacionismo. Não a negação cotidiana de escolhas pessoais, mas o movimento ritmado de se negar a verdade, embaralhando-a com mentiras, de se negar a ciência, apostando em bobagens sem suporte científico.
A desqualificação generalizada da Política é outra característica do calaboquismo. Se negamos a Política, estamos negando a essência da vida comunitária, estamos entregando o comando da vida política de todos a qualquer um que chega e se apresenta “contra tudo isto que aí está”. Desqualificar a Política é pregar morrer de sede num deserto ao lado do oásis. É tirar da discussão cotidiana e necessária a conversa sobre o que fazem os políticos eleitos por nós (ninguém chega ao Executivo ou ao Legislativo sem passar por eleições) quando nos representam. Negamos e entregamos de bandeja no silêncio o nosso engasgamento crítico.
A omissão de informações é outra forma de calaboquismo. A omissão ou dificultamento de acesso a informações, muitas vezes pelo malabarismo que se precisa fazer para ter acesso a informações ou compreendê-las, apesar das leis de transparência e de acesso a informações, é um jeito disfarçado de impedir ou dificultar o saber para poder agir. Você consegue acompanhar as despesas orçamentárias do seu Município ou Estado ou da União¿ Estão e são claras¿ Você é como aquele que fica boquiaberto quando descobre que o prefeito de sua cidade gastou, disfarçadamente, milhões em propaganda¿
Democracia pressupõe participação, militância significativa na defesa das liberdades e das consequentes responsabilidades. Muitas vezes a Política posta em ação no comando de nossos entes federativos nega canais de participação e não os cria nem os estimula. Negar a participação nas decisões próprias da democracia é uma forma de calaboquismo. Gente falando, perguntando, criticando, querendo outros caminhos... incomoda muito e os canais dessas manifestações costumam ficar atulhados de desvios, de trânsito proibido, de barreiras impedientes.
Um último aviso aos navegantes, um alerta contra mares revoltos na institucionalização do calaboquismo. Mesmo dentro de regimes democráticos, o viés autoritário do calaboquismo pode estar presente e ir se instalando, em meio ao desânimo político e na tímida participação, aos poucos, de modo oficial, institucionalizado pela própria legislação. Aos poucos, os canais, alto-falantes, palcos e lugares de fala vão sendo fechados, diminuídos, desinstalados e quando se vê não há mais “flores no jardim”. Um exemplo significante dessa prática vem sendo feita pelas duas últimas administrações da educação paulista substituindo, pelo cabedal institucional da legislação, a fala, a crítica e a participação nas decisões pelo medo, pela insegurança pelo autoritarismo ameaçador da gestão. Um perfeito sistema de amordaçamento da voz dos educadores paulistas, com reflexos na educação crítica dos alunos.
Encerro estas poucas e rápidas observações lembrando que também os costumes cotidianos são plenos de calaboquismo: nas relações afetivas, familiares, escolares, convívio social, etc. Estas, apesar das leis vigentes, são fortes ainda, furam barreiras e tentam se impor no cotidiano de todos nós.
Boca no trombone. O cala-a-boca já morreu!
Edson Gabriel Garcia, 2023, agosto calorento entregando o bastão para um setembro chegante...A Pátria espera de nós um civismo militante pelas liberdades, todas.
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O inferno é aqui: escolha o seu!
Ainda resvalando no espinhoso assunto “Religião” (mas nem por isso menos interessante, relevante e charmoso), falemos um pouco do conceito, de origens mescladas, mas muito bem aproveitado pelos credos religiosos: o inferno. Sem pretensões de incomodar os fiéis, já que falar do céu seria mais palatável, e sem ilusões de tirar os infernos de nossa vida.
O termo tem origens também fora da religião. A origem do termo “inferno” vem da língua latina, “infernum”, que significa “as profundezas ou o mundo inferior”, com base no termo “inferus”, que significa lugares baixos. Está presente em inúmeras religiões, em mitologias e filosofias, além de obras literárias, como na poderosa e clássica Divina Comédia de Dante. E chega até nós com o significado portentoso e plural de “lugar de sofrimento ou de condenação das pessoas más”. Para delícia dos que pretendem controlar o comportamento humano, nada mais prático do que a ameaça do inferno pairando sobre as cabeças dos mortais. Nesse sentido, foram as religiões que mais souberam se aproveitar das metáforas contidas no termo: o inferno como a distopia da qual temos que fugir a qualquer preço (literalmente, a qualquer preço), cobrando caro pelo passe que dará acesso à salvação da alma, longe do mundo cavernoso do sofrimento.
Inferno chega até os dias de hoje como uma metáfora que esbanja multiplicidade de significações: inferno astral, cósmico, ambiental, político, social e -por que não¿- virtual. Um termo linguístico com vasto repertório de significações que pode ser usado a qualquer momento, com pronta-entrega, em domicílio, ao portador... Seguimos, em nossa santa e vã filosofia de boteco, fazendo vistas grossas, ou nada refinadas na análise dos fatos, consumindo diariamente infernos portáteis, virtuais, nervosos, atraentes, indignos. Isso, de certa forma, nos ajuda a aliviar um pouco as dores de se viver no mundo de hoje, compensando com os infernos alheios os buracos de nossa insignificância existencial. Os magistrais Caetano Veloso e Gilberto Gil, em parceria, criaram uma das metáforas musicais mais incisivas, nos versos de sua HAITI, nos alertando de que “o Haiti é aqui”. Parafraseando, sem licença dos autores musicais, penso, me distanciando dos credos religiosos, que “o inferno é aqui”. Não é preciso ir longe; sem sair do lugar, você tem acesso a uma galeria de “infernos” para escolher o seu e recebê-lo em casa. Longe de ser definitiva e exaustiva, a lista abaixo sugere alguns, com ou sem grife, para quem quiser se habilitar.
Há os infernos mais palatáveis, gourmetizados, prontos para consumo em rodas de conversas amenas, com ares de discussões profundas e preocupações maiores com os destinos da sociedade: a guerra russa contra ucranianos; o que fazer com o caráter belicoso do Putin; onde acomodar o conflito quase eterno entre árabes e judeus nas terras santas; onde esconder -ou ajudar- a fome que assola o mundo, principalmente os países africanos; de que lado se posicionar no conflito frio, mais quente impossível, entre os norte-americanos e os chineses, em sua disputa visível pelo controle do mundo...
Há o inferno charmoso: discutir o analfabetismo funcional brasileiro e a eterna crise da educação que teima em formar, em escolas públicas bastante precárias, jovens com pouca competência para a leitura e para o entendimento do mundo em que vive...
Há o inferno concreto, mas que não gostamos de trazê-lo à mesa de jantar -me refiro a quem tem mesa de jantar e jantar- de uma possível guerra mundial, repleta de tecnologia cedida pelos avanços da ciência, fatal e definitiva...
Há os infernos virtuais, a proliferação de fakes, a superficialidade bestial da maioria das mensagens que circulam nas redes sociais e o medo avassalador dos cancelamentos...
Há o inferno quente do aquecimento global que nos põe em luta contra negacionistas que pensam que a terra é plana e a natureza se recuperará sozinha de nossa pegada pecaminosa ecológica e por esta razão abrem a porteira da destruição ambiental, das queimadas, da poluição...
Há o inferno do desassistencialismo da saúde, delineado na precariedade da rede pública e na carestia dos planos privados, entre a cruz e a caldeira...
Há, enfim, os infernos religiosos, poderosos mercadores da fé, que manobram os que precisam de crenças para sobreviver às durezas do cotidiano...
Há ainda o pavoroso inferno do analfabetismo político, este talvez o pior de todos, pois nos coloca em uma situação de inércia contra o que de ruim a Política tem (corrupção, desinformação, mentiras, autoritarismo, preconceitos, falta de conhecimento, genuflexão diante de populistas enganadores, entre outras barbaridades), na esteira da ascensão da extrema direita mundial...
Tem muito mais. A lista é longa, quase interminável.
Escolha o seu inferno do momento e vá à luta. Mexa-se. O céu está logo ali...
Edson Gabriel Garcia, 2023, agosto quente que avança trazendo muitos e tantos outros olhares para a Política do nosso cotidiano.
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O livro didático e a Política cotidiana
A recente polêmica sobre a decisão da cúpula da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo de não participar do Programa Nacional de Livros Didáticos- PNLD (programa longevo do MEC que compra e distribui, sem custos para os estudantes, livros didáticos a alunos do ensino fundamental e médio de todo o pais) em favor de usar apenas conteúdos produzidos e veiculados digitalmente continua causando inúmeras discussões, a maioria crítica em relação à açodada medida.
Há dois aspectos interessantes para se abordar nesta questão, na direção do argumento de que “querendo ou não, gostando ou não, consciente ou não, a Política está sempre presente em nosso cotidiano”. O primeiro aspecto é apontar o que está, supostamente, por trás dessa decisão; o segundo é apontar as consequências dessa postura no cotidiano de milhares de famílias paulistas. Vamos a eles.
O que pode estar por trás dessa medida?
Sem dúvida nenhuma, a decisão, tomada sem se chamar uma pessoa sequer da comunidade escolar interessada (educadores, entidades representativas, comunidades educacionais, universidade, etc) para discuti-la indica um autoritarismo sem tamanho, que não combina com o diálogo democrático que se faz necessário na antecedência da implantação de medidas de impacto. Sem dúvida, a decisão, foi tomada no gabinete e, como se sabe por entrevistas concedidas à mídia por técnicos da secretaria, nem mesmo estes foram consultados. Um autoritarismo irresponsável.
De outra forma, como vem fazendo em outras medidas, a cúpula da secretaria vem alijando os educadores de participação em decisões que afetam o seu cotidiano pedagógico, limitando-os a meros cumpridores de regras e conteúdos impostos pelos órgãos da burocracia. Apontam, equivocadamente, para a constituição de um exército de docentes meramente executores de ordens, regras e procedimentos. Aliado a este procedimento de “big brother”, a cúpula da secretaria vem tomando medidas administrativas de vigilância e controle da ação docente, sufocando os educadores em exaustivos (e inúteis) preenchimento de registros do trabalho docente em aplicativos produzidos para esse fim. Alguns docentes chegam a afirmar, entre pressão e vigilância de seus gestores, que passam quase tanto tempo preenchendo relatórios quanto o tempo gasto para pensar a qualidade de seu processo pedagógico. Essa postura aponta, se mantida nessa toada, para uma irreversível perda da autonomia, da criatividade e da liberdade de cátedra dos educadores, resumindo-os a meros mediadores de conteúdos.
O segundo aspecto nos sugere levantar os seguintes questionamentos, todos imbricados com a Política executada por políticos no cotidiano da população.
É possível afirmar, sem erro de raciocínio, que esta medida se traduz em irresponsabilidade e improbidade administrativa com o uso do dinheiro público, uma vez que, novamente de forma não planejada, a administração propõe apressadamente imprimir os seus conteúdos digitais (quando se sabe que o custo dessa empreitada será altíssimo, de baixa qualidade, se comparado ao livro didático distribuído, e sem nenhuma garantia de prazos e entrega do material). Gasto dobrado, sem necessidade, não planejado. Afirma-se que esta decisão, de abrir mãos dos livros do PNLD, tem base nos interesses do chefe da secretaria, ele mesmo um empresário do ramo da tecnologia, cuja empresa, sem pudores éticos, vende milhares de equipamentos para a pasta da qual é dirigente. Parece piada, e se assim for, de mau gosto, mas não é. E, de novo, a população é alijada de discussões importantes sobre o que fazer com o dinheiro do orçamento público.
Tal postura seguirá, como muitas medidas de políticos que estiveram recentemente no poder executivo, na linha de aprofundar desigualdades. É sabido – e largamente apontado por educadores – que há muita dificuldade em um número enorme de famílias paulistas em receber sinais de internet, em ter equipamentos de qualidade e na disponibilidade de acompanhar, na tela, a vida escolar do estudante. Mais uma vez, medidas insensatas aprofundam o que já é sabido por nós: quem mais precisa é, novamente, o mais prejudicado.
A medida, tresloucada e insensata, vai na direção contrária do que fazem alguns países mais adiantados do que nós na solução de problemas com a educação. Enquanto alguns voltam ao uso de materiais impressos, tendo os livros didáticos como referência, limitando sabiamente o tempo de tela dos estudantes, a administração da secretaria da educação paulista faz o caminho inverso. É, no mínimo, burrice administrativa. Ou esperteza comercial.
Ocorrerá, sem dúvida, um prejuízo para todos os envolvidos, maior para o alunado, em receber um material impresso apressadamente, sem ter tido essa previsão anteriormente, em detrimento de receber livros didáticos do programa do MEC, que são conhecidos por sua qualidade de impressão, riqueza de detalhamento, por serem avaliados criticamente por dezenas de técnicos e compostos por manuais bastante qualificados.
Resumindo, eis alguns aspectos fundamentais presentes nesta polêmica em que quem perde é a comunidade escolar, o eleitor, o cidadão. E perde:
a)pela inoportuna falta de diálogo de quem, ao ocupar um cargo público, se acha no direito de tomar decisões próprias sem diálogo, como se o sol iluminasse apenas as suas opiniões e atitudes,
b)também pela visão reduzida do que seja educação, e
c)pela opção clara de instituir um calaboquismo institucionalizado.
Saudades pedagógicas do mestre Paulo Freire que nos provocava sabiamente lembrando que ninguém educa ninguém pois a educação é um ato de comunhão.
Edson Gabriel Garcia, 2023, agosto, que nos leva a novas lutas, nos mostra caminhos e nos incentiva à comunhão educativa.
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Política e Religião: pontos para reflexão
Voltemos a este espinhoso e escorregadio assunto (Política e Religião), desta feita, após apontamentos sobre o imbricamento desses temas nos dois textos anteriores, para deixar alguns sinais que aceitam e pedem livre reflexões. Os pontos alinhados a seguir não têm nenhuma pretensão de colocar um ponto final na questão, mas levam a reflexões que poderão, em tese, abrir outras discussões e encaminhar o olhar para novas direções. Assim sendo, vamos continuar a conversa sobre as relações entre a Política e a Religião propondo a direção do olhar para pontos seguintes candentes.
1.Custo zero do produto chamado Fé. O custo da lida com a fé é zero e o lucro é volumoso. A fé, por seu aspecto não racional, está disponível para todos, inclusive para charlatões midiáticos, sem que se pague nenhum direito autoral, sem que se pague impostos, direito de imagens, etc. Custo zero e está disponível a quem queira se apropriar dela, para explorar ou praticar, em nome de Deus, em nome da salvação da alma nesta vida para a outra. Uma commodity com possibilidade de adaptação perfeita que cabe na mão e no bolso de todos os reinos, de todas as salvações, de todas as ideologias. Adaptável para quem explora e para quem é explorado. Aqui, nem sempre o barato sai caro.
2.Prgmatismo. Há um ponto de inflexão de grande parte dos credos religiosos, principalmente dos evangélicos neopentecostais, que vêm adotando uma postura pragmática, desvinculando-se de ideologias mais elaboradas. Neste sentido, os comportamentos, as promessas e as ações só têm sentido se e quando comprovadas, com resultados, na prática. Estas posturas pragmáticas, localizadas e próximas do cotidiano imediato, dão sentido de maior pertencimento ao credo religioso e podem levar ao extremo do voto encurralado, com “colinha” dos candidatos de Deus. Praticidade: o que se pode ter e fazer aqui e agora, distantes das reflexões mais abstratas que as ideologias de esquerda trazem para a roda da conversa.
3.A miséria humana, provocada pelo próprio homem, aqui e ali, sempre será o cenário ideal para a implantação de promessas insondáveis, nunca concretizadas no aqui agora, mas centradas no futuro desconhecido do “além”. Junte-se à miséria geográfica, física e social, uma natural incompletude de entendimento da vida no planeta, eis o cenário fértil para a venda e comercialização desta commodity.
4.Os credos religiosos, organizados em simbologias, rituais e estrutura de poder (inclusive com disputas internas acirradas pelo poder), são empresas e se comportam como tal: vendem um produto de custo muito barato e cobram preços exorbitantes. A entrega do produto vendido nem sempre é efetivada à luz das leis do consumo, embora o lucro seja contabilizado conforme as regras da boa economia. Diferentemente de outras empresas, não recolhem impostos. IPTU, Imposto de Renda, Imposto sobre Operações Financeiras... isso são coisas para os outros. Tudo em nome de Deus, aqui na terra como no céu.
5. Não é por outra razão que as fortunas pessoais e das empresas religiosas se acumulam e se proliferam. A compra de canais de comunicação é uma consequência imediata desse poderio econômico que, de modo direto, faz aumentar o comércio eletrônico e a arrecadação. No sentido empresarial, precisam da parceria do Estado e dos Governos, estes com interesse no voto, que se apresenta em forma de isenções, doações, concessão de canais de comunicação e, sobretudo, na omissão da discussão de temas de interesse do avanço comportamental de toda a sociedade.
6.A hipocrisia. No seu sentido original, de certa forma preservado até nossos dias, a hipocrisia, palavra de origem grega, significa encenação, representação. Daí o uso corrente da palavra no sentido de que a hipocrisia é um fingimento, uma encenação. Para além das disputas internas e externas, os credos religiosos se valem da encenação nos dois sentidos possíveis: na atuação midiática e espetaculosa encenada nos palcos – ou púlpitos; e venda do seu produto, a fé, com a promessa de entrega em forma de prosperidade e salvação. Só pela fé, com muita fé, seja lá o que isto for, se consegue entender estas encenações.
De resto, algumas considerações finais.
A ambiguidade repousada no binômio deus X diabo. Pela fé chega-se ao “só Jesus é fiel” e pela fé empunham-se armas para expulsar o demônio. Mas quem é mesmo o demônio? Em nome de deus, são praticadas tantas ações de natureza demoníaca. Para pensar!
É possível ter fé sem ter religião? É possível não ter fé? Para pensar!
Há um perigo no ar. De modo geral, os credos religiosos se fecham em seus fundamentos (ou princípios ou valores ou máximas ou leis ou mandamentos...) e não admitem formas diferentes de se crer. Credos religiosos que assumem o controle político de um povo se fecham em suas crenças, não se abrem para outras formas de pensar e empurram para longe desta vida, com diferentes métodos satânicos, em nome do seu Deus, quem pensa ou crê de modo diferente. Credos religiosos, nesse sentido, não são o “ópio do povo” e nem a “distração do povo”, mas uma forma política de controlar, explorar o povo e de alguns acumularem riquezas. Em benefício de poucos. Para pensar.
Tudo, em nome de Deus...
Edson Gabriel Garcia, 2023, agosto dando as caras e convidando, ao gosto de cada um, para novos sonhos.
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Política e Religião: onde as águas se turvam
Voltamos ao tema, Política e Religião, espinhoso como se pode perceber, sentir e dizer. Há muitas arestas, muitas zonas desconhecidas, muitíssimas histórias, muitas suposições e muitos (des)encantamentos. No entanto, sempre muito interessante e pertinente, pois é quase impossível viver estes tempos de atualidades fragmentadas cotidianamente sem sermos tocados por estes assuntos e suas rebarbas, ambiguidades e polivalências. Política e Religião são processadores de conteúdo cultural, de consumo e comportamento que se tocam, se entrelaçam e se turvam. Arriscarei, como no texto anterior, fazer algumas considerações, sujeitas a todo tipo de comentários, críticas, composições e observações nervosas, belicosas ou sentimentais.
Nos bancos políticos, as bancadas se constituem. Não é novidade para ninguém que candidatos que representam setores de igreja, principalmente das igrejas evangélicas (protestantes, pentecostais e neopentecostais) são eleitos para o parlamento, cada vez em número maior. No parlamento (Câmaras Municipais, Assembleis Legislativas, Câmara Federal e Senado), mesmo eleitos por partidos diferentes, cuja ideologia é quase sempre a mesma, se organizam em torno do que chamamos a bancada evangélica. Distribuem-se pela direita ideológica, extremada ou não, e pelo centro. Defendem pautas reacionárias e conservadoras de uma moral que não acompanha a mudança dos tempos (de modo geral, negam a união homoafetiva, o aborto, a luta pelas minorias e defendem, de modo difuso, a família, a tradição e a pátria) e defendem exaustivamente interesses corporativos de sua igreja, ocupando postos no Poder Executivo e no Judiciário. Historicamente, os relatos de envolvimentos de religiões em guerras santas ou profanas, na defesa de seu poderio do domínio da fé ou dos conchavos com governantes, é recheado de episódios e capítulos. Isto sem falar nos movimentos menos lembrados, mas nem por isso menos fortes, como foi o caso da Liga Eleitoral Católica, com forte presença política em meados do século passado. Mortes e controle ideológico em nome da paz religiosa.
A definição dos votos. De uns tempos para cá, o eleitorado evangélico, principalmente, tem se constituído em peso forte na definição da balança eleitoral. Pesquisas mostram que nas duas últimas eleições, o peso do eleitorado evangélico foi decisivo. Nesse sentido, os dois lados, de quem busca o voto e de quem vota, se misturam numa rede de narrativas em que vale quase tudo, de conversas e acordos prévios com pastores até o uso descarado de fake news, passando pelo caminho das mídias disponíveis e nas pregações in loco, na tentativa de ocupar o poder e estar com ele ao lado. Dessa forma, as igrejas entram nas disputas eleitorais, não só escolhendo entre seus fiéis os seus candidatos como também tentando influenciar os fiéis ao voto tutelado. E assim formar as tais bancadas. Quase uma reedição do voto de cabresto.
As vantagens religiosas. Não há de negar o quanto as igrejas, todas elas, estão ligadas no poder e na força do dinheiro. Entrar na Política é um tiro certeiro para encher o cofre e mantê-lo sempre cheio. E isso se dá de várias formas, todas elas passando pelo apoiamento político dos parlamentares eleitos: isenção de pagamento de vários tributos, que cidadãos e empresas pagam; isenção de tributação das imensas quantias arrecadas junto aos fiéis, nos bancos dos templos ou nos apelos melodramáticos, alguns beirando a tragicomédia, feitos pela mídia própria; recebimento de concessão de canais de televisão, fonte inesgotável de crescimento e enriquecimento. Sem controle do Estado arrecadador que morde nos cidadãos e fecha os olhos para as fortunas religiosas.
As mídias. Um dos assuntos mais vistosos – e não menos comentados – é o uso das mídias por algumas religiões que têm acesso ao poder da comunicação massiva. Sem entrar no mérito de como se comporta a audiência religiosa (os fieis, filiados ou seguidores), a voz e a imagem estudadas postas em cenas, algumas que beiram o ridículo, vendem – e bem – ideias, costumes, posturas e candidatos. Umas de forma sutil; outras de modo declarado, sem constrangimentos. Seus comunicadores (oficiais de deus na terra) chamam atenção para os princípios cristãos dos candidatos; outros, de modo nada convencional, declaram-se partidários de candidatos, geralmente daqueles que pensam de modo semelhante e se comprometem, prioritariamente, não com a salvação da alma, mas com a prosperidade econômica na terra. Nas últimas eleições para presidente da república, o voto evangélico, por exemplo, foi decisivo no resultado final da eleição. A palavra do púlpito eletrônico está com a palavra.
As fake news. O uso de informações pouco qualificadas ou falsas, sem nenhuma comprovação pelos “missionários de deus”, seja no púlpito seja diante de câmeras ou de teclados, cresce de modo preocupante. E estas fake news, por sua agressividade e belicosidade e pelo conteúdo desprovido de confirmação, mas que agrada aos menos informados, são prontamente aceitas e velozmente difundidas. Isto tem sido característica forte de alguns grupos religiosos partidários dos shows midiáticos, da exploração da crença dos fieis e da gana por arrecadação financeira, de algumas décadas a esta. Uma dessas informações absolutamente desprovida de confirmação ou de base de sustentação verídica é aquela que foi divulgada na última eleição presidencial: um dos candidatos, se eleito, fecharia templos religiosos. Nada mais imbecil e fake, extremamente atentatório para a inteligência de quem quer que seja.
Nesse sentido, o que fica para a discussão é: será justo e pertinente, já que tudo, na vida, é movimento político, que as igrejas participem da Política; e se isto for considerado justo e pertinente, em que medida as igrejas deverão declarar sua ideologia e sua fome pelo poder... Uma conversa para sempre, em todos nossos dias na história da humanidade.
Edson Gabriel Garcia, 2023, julho findante, descansos aqui e ali permitindo reflexões e novas tomadas de decisões para o agosto que se avizinha.
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Política e Religião: onde as águas se encontram
Assunto dos mais espinhosos, polêmicos, intermináveis e perenes... talvez por isso mesmo deva ser sempre objeto de nossas reflexões. Sem o pendor de querer dar a última (ou penúltima) palavra sobre o tema, sobre relações entre Política e Religião, arriscarei algumas palavras.
Parto do entendimento da Política como a arte, ciência ou ramo da filosofia que através do diálogo busca propor o bem estar comum à maioria das pessoas de uma comunidade; e, da Religião, como a arte, a ciência ou prática filosófica que busca explicar a transcendência humana, dando sentido a esta vida fora dela. De pronto, acuso esses conceitos de limitados e porosos, mas tenho que partir de algum lugar para o que considerarei a seguir. Política, etimologicamente derivada do grego “polis”, cidade (o que nos impõe a contingência de saber que vivemos juntos) e Religião, derivada do latim “religio”, religar, entre outros significados, (o que nos faz limitados e necessariamente transcendentes e nos põe em busca de explicações metafísicas principalmente sobre a vida e a morte). À Política perguntamos: o que queremos para nossa sociedade; à Religião perguntamos: como salvar nossa alma pecadora, aqui e agora, para a eternidade.
De posse dessa introdução, que já permite inúmeros comentários, tento apontar eventuais intersecções desses dois temas tão presentes na incompletude de nossa vida.
Sustentação na fé e na razão: a Religião se sustenta na fé, profundo sentimento de crença de difícil sustentação racional, embora muitas vezes se tentem explicar a fé pela razão; a Política se sustenta pela razão, pela lógica do pensamento racional, ainda que muitas vezes seja completamente dominada pela paixão.
Pertencimento: ambas se sustentam na filiação de seus membros ou seguidores (quanto mais seguidores, fiéis ou correligionários, mais fortes se tornam, mais poderosas ficam). São instituições que também se nutrem de seu poder amealhado na contagem dos filiados ou fiéis, se organizam em regras, rituais e comportamentos. Diferem entre si, mas todas as “correntes”, religiosas ou políticas, têm seus mecanismos de iniciação, aprendizagem, doutrinação, participação nos eventos e rituais, defesa da ideologia e da ampliação dos membros e extrema burocracia no funcionamento e na distribuição dos cargos.
Na ocupação dos corações e mentes: ambas, Política e Religião, se ocupam, em tese, predominantemente com o bem estar comum dos seus membros e da sociedade em geral. Traçam planos e caminhos diferentes, mas se encontram nessa disputa pela ocupação dos corações e mentes de seus seguidores. E, para isso, não medem esforços ou “investimentos”, seja pelo convencimento pacífico seja pela coerção forçada, na paz ou na guerra. A história da humanidade mostra, para quem se aprofunda um pouco mais acima da rasteirice das informações da história oficial que nos é contada nos bancos escolares, que exércitos religiosos e exércitos políticos não se fazem de rogados quando precisam defender os seus domínios. Na guerra e na paz, muitas vezes, também a Política se encontra com a Religião – ou a Religião se encontra com a Política – fazem acordos e lutam juntas, não importa se a morte é o resultado dessas ações, para manter os seus domínios.
A luta pelo poder: a ocupação dos corações e mentes tem um objetivo seco, direto e contundente, qual seja, a ocupação do poder. Pode-se discutir como cada uma lidará com o poder conquistado, mas a busca pelo poder, pelo domínio e pela possibilidade de mandar no destino da humanidade é base de sustentação das agremiações políticas e religiosas. Ambas se armam com exércitos poderosos (na Política, as forças armadas, organizadas e sustentadas pelo poderio bélico, tendo a ameaça e o medo a seu favor; na Religião, exércitos de fieis, armados com armas ou com a Bíblia debaixo do braço conquistando seguidores pelo argumento do poder da palavra de Deus, seja este quem for). Na Política e na Religião, as agremiações vão se ajustando aos tempos de sua atualidade, alterando sua organização, seus rituais, seus discursos e suas promessas de bem estar e prosperidade aqui ou no além. Partidos políticos, a cara mais visível da Política, andam perdendo credibilidade e precisam se reinventar, sob pena de perderem eleitores; igrejas ou seitas ou credos, a cara mais visível da Religião, apresentam-se com uma capacidade incrível de se reinventar em busca de novos e muitos fiéis. A sociedade atual, líquida ou sólida, fragmentada ou polarizada, quase que na mesma proporção que rechaça a organização política busca apoio nas organizações religiosas. No fundo, ambas lutam pelo poder sobre o destino dos fiéis e filiados, com discursos regados a promessas nem sempre factíveis e possíveis de serem viabilizadas.
A luta pelo poder econômico: o poder institucional, o comando político e o poder econômico são irmãos siameses ou trigêmeos idênticos umbilicalmente ligados. Política e Religião se nutrem do poder econômico e correm atrás dele como o faminto atrás da comida. Seja acumulando fortunas pessoais ou institucionais, vendendo ilusões e promessas de toda a natureza, o dinheiro e a fortuna têm lugar de honra na Política e na Religião. Cada uma do seu jeito (corrupção, pilhagens, avanço no dinheiro público, venda de indulgências – das mais variadas formas – e convencimento por falsas alegações) expõe sua ganância pelo poder econômico, com exemplos bem formatados no Museu do Vaticano e nas fortunas pessoais de líderes midiáticos religiosos evangélicos).
Como proteção ou armadura de defesa dessa forma de organização, algum espertalhão criou para nós o provérbio popular “Futebol, Política e Religião não se discutem!” Futebol e Política são exaustivamente discutidos, sem que se chegue a um consenso. Religião tem se mantido fora desse circuito. Já passou da hora de começarmos a discutir Religião e abrir sua caixa de Pandora. Voltaremos ao tema.
Edson Gabriel Garcia, 2023, julho, com seus filmes de clima malucado, sobras de nossas intervenções irresponsáveis nas linhas da natureza, caminha para o fim.
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Pequeno manual da “manha” política
O vocabulário é particularmente rico e cheio de palavras que dizem respeito à vida cotidiana política: recesso parlamentar, bancada, fidelidade partidária, voto, eleições, filiação, movimento, curral eleitoral, acordo, negociação, legenda... e vai por aí. Muitas dessas palavras são retiradas do cotidiano de todos nós e outras são específicas da ação política e nós as usamos cotidianamente com outros significados. Legenda, por exemplo, que em Política é sinônimo de partido político, em nosso dia-a-dia significa as informações linguísticas disponíveis para leituras auxiliares de diversas imagens. Esta é uma das riquezas estruturais da língua: a plurissignificação das palavras, isoladamente ou em contextos diferentes. Em Política, há frases ou expressões idiomáticas que se consagraram na ação e que muitas vezes usamos também em nosso cotidiano. Nelas, há uma certa mescla de deboche, ironia, crítica e esperteza ladina. Quase nunca seu significado é literal pois são construções figuradas. Vejamos algumas delas.
Empurrar com a barriga
Trata-se de expressão que significa enrolar, adiar o enfrentamento de um problema, deixar para depois buscar a solução de uma situação complicada. Mais do que preguiça, esta atitude significa uma certa má vontade na lida com determinado problema, tendo a convicção de que as coisas vão se resolver por si próprias. Em Política, certas demandas são literalmente empurradas com a barriga por desinteresse de quem recebe a demanda, por não dar a ela o valor demandado, atribuindo prioridade baixa ou por achar que o tempo apagará o problema ou mesmo forçará os solicitantes a buscarem outras soluções. Postergar ou procrastinar são verbos com significados bem próximos da expressão.
Deixa como está para ver como fica
Esta expressão é bem próxima da anterior pois advoga uma certa indolência, uma certa falta de vontade para resolver determinado problema. Líderes partidários costumam cozinhar em “banho maria”, outra expressão da mesma natureza, problemas de definição de candidaturas, por exemplo, certos de que “no balanço da carroça, as abóboras se ajeitam” e algumas soluções dormem, morrem ou encontram caminhos próprios sem intervenções. Dizem biógrafos de Getúlio Vargas que ele era craque nessa postura.
É dando que se recebe
A expressão é retirada da famosa oração de São Francisco, do trecho “é dando que se recebe; é perdoando que se é perdoado; é morrendo que se vive a vida eterna”. Basicamente se trata de uma reciprocidade. Sustenta ações no marketing (as amostras grátis que o digam), nas relações pessoais, na Política. Na Política, a expressão, retirada da oração franciscana, vem carregada de interesse mesquinho, oportunista: quem dá alguma coisa, espera outra em troca. Políticos bancados, em suas campanhas eleitorais, por contribuições financeiras, ficam na obrigação de devolver em troca, muitas vezes com juros e correção monetária, o que foi investido em sua campanha, votando a favor dos investidores ou indicando obras ou compra de produtos. Entre nós, a expressão ficou pejorativamente conhecida no meio político, quando citada com argumentação pelo falecido ex-ministro Roberto Cardoso Alves.
Não há almoço grátis
Atenção redobrada quando se deparar com esta oferta. Originária de ofertas milagrosas do tipo “coma à vontade e só pague a bebida”, em que a comida salgadíssima levava o cliente a consumir mais bebidas do que o comum, a preços muito caros. Seu significado corriqueiro e certeiro é que nada é gratuito, tudo tem um custo por trás. Na década de 70, do século passado, foi popularizada como título de um livro do economista Milton Friedman. De fato, desconfie dessa oferta. Desconfie de políticos que oferecem, em troca do seu voto, vantagens, doações, isenções, etc. Por trás disso pode estar aumento de impostos
Criar dificuldades para vender facilidades
Esta expressão é bem típica da ação política. De fácil entendimento, quase literal, significa colocar todo tipo de dificuldade, valorizando uma suposta complexidade de uma ação ou fato ou assunto para poder negociar, em troca, com vantagens, a sua solução ou encaminhamento. Geralmente quem está no domínio da situação pode se dar ao luxo de dificultar o diálogo ou a negociação, supervalorizando-a, para, em troca, receber mais, obter vantagens.
Colocar um bode na sala
E quem há de querer um bode na sua sala¿ Por suposto, ninguém. O bode tem sua figura associada ao mau cheiro, à tresloucada movimentação do corpo e à impetuosidade de seus avanços sobre outros animais, com sua cabeça e seus chifres duros. Um problemão! Ter um bode na sala é coisa que ninguém quer e que, salvo engano, todos querem tirar imediatamente o bicho do citado cômodo. Em Política, a estratégia, largamente usada, de colocar um bode na sala significa alguma coisa que não deveria estar no lugar em que está. Um problemão colocado na hora e no lugar errados. Esperteza política de quem consegue colocar um bode na sala para depois negociar sua retirada. Exemplo de bode na sala (ou jaboti em árvore!): um governo envia um projeto de lei com aumento exagerado no imposto predial e territorial para ser discutido e aprovado pelo parlamento. No meio do texto do projeto tem um item sobre a criação de uma pesada taxa de recolhimento de lixo. A discussão mais importante (do aumento do iptu) fica ofuscada pela criação exagerada da taxa de recolhimento do lixo. O bode na sala ofusca os demais problemas.
O mais interessante dessa conversa mole, embora seja sempre bom lembrar que a língua oferece a possibilidade de se criar decalques ideológicos que brincam com coisas sérias e nos fazem acostumar com e banalizar as manhas dos políticos ladinos, que “é preciso estar atento e forte” com as aparentes levezas construídas no repertório linguístico. Também nesse pedaço há bodes na sala.
Edson Gabriel Garcia, 2023, meados de um julho esperançoso.
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Constitucionalismo: algumas histórias
Constituições são, de longe, o documento legal mais importante de uma nação. Mesmo regimes fechados, ditatoriais, têm a sua Constituição para seguir (ou aparentar seguir). Uma definição breve do que seja constituição pode ser assim apresentada: é a lei suprema de uma nação, por isso fundamental, que serve de parâmetro para todos os demais documentos legais e normativos. Por ser a “carta magna” está acima de todas as outras espécies de normatização. Não tem limite de tamanho e nem prazo de validade, salvo necessidades apontadas por novas demandas sociais. A nossa Constituição Federal é uma das maiores do mundo conhecido e uma das mais duradouras, neste curto prazo histórico da independência até nossos dias, nascida de uma Assembleia Nacional Constituinte, eleita para essa finalidade, cujo texto final foi aprovado em 1988, tendo sido cognominada de “Constituição Cidadã” por sua preocupação com os direitos do cidadão brasileiro.
No entanto, a história da humanidade está repleta de regimes, movimentos, slogans e até mesmo um certo “faz de conta que a constituição existe” através dos/as quais grupos se empoderam no comando de um povo e atropelam ou ignoram estas ditas cartas magnas. Essa postura política é pontificada pela conhecida frase de Frederico Guilherme 4º., Rei da Prússia, entre 1840 a 1863, dita em 1848, num contexto de lutas contra monarquias, que declarou com toda a pompa e solenidade: “...nem no presente, nem para o futuro, permitirei que entre Deus do céu e o meu país se interponha uma folha de papel escrita, como se fosse a Providência”. Bobagem antidemocrática, mas que deve ser levada a sério e combatida, parecida na sua essência com slogans recentes do tipo “Deus acima de tudo” ou “Deus, pátria e família”. Desde sempre, as constituições enfrentaram movimentos de desrespeito, de sabotagem e rupturas de níveis e consequências diferentes. E muitas vezes, mesmo vigente, uma constituição pode ser desrespeitada – o que leva, no nosso caso, a demandas de intervenção da Corte Suprema, o STF, garantindo-a ou esclarecendo eventuais pontos de forçosa ruptura. Ainda sobre constituições, vale lembrar que a) muitas vezes, regimes de exceção, se usam de artifícios legais “anti-constitucionais”ou “para-constitucionais”, criando outros tipos de documentos legais com força de mando superior e que fazem o papel de cartas magnas, como foi o caso, no Brasil, dos Atos Institucionais editados pela ditadura, com força constitucional; b) nem somente regimes autoritários se valem de poderes paralelos, desrespeitosos a uma eventual constituição vigente; e c)o caminho mais democrático para se alterar artigos de uma constituição é a discussão aberta pelo parlamento através dos projetos de emendas constitucional (PEC) que, se aprovados, tornam-se Emendas Constitucionais. Entre as muitas histórias carreadas na tramitação de nossas cartas magnas, duas podem ser lembradas, ambas nos governos do ditador/populista Getúlio Vargas: a Revolução Constitucionalista de 1932 e a Constituição Polaca, de 1937.
A Revolução Constitucionalista de 32. Corria o governo Getúlio Vargas, que tomou o governo em um golpe, em 1930, depondo o presidente anterior, instalando na capital federal, na época situada no Rio de Janeiro, o chamado Governo Provisório. Getúlio, naquele início de sua longa passagem pelo governo, de 1930 a 1945, sempre com sua marca de ditador, centralizando e acumulando poderes e anulando as instâncias parlamentares democráticas, direta ou indiretamente, teve que lidar, em 1932, com a resistência de alguns estados que pleiteavam vida democrática sustentada por uma constituição também democrática, que trouxesse de volta a eleição para presidente da república, entre outras demandas. A conspiração foi capitaneada pelo Estado de São Paulo, já, à época, o estado mais rico da nação, com o apoio do Mato Grosso e do Rio Grande do Sul. A revolta, chamada de Revolução Constitucionalista ou Revolução de 32 ou ainda Revolução Paulista, teve início em 9 de julho, data em que as tropas fieis ao governo federal assassinaram quatro jovens paulistas, os quais tornaram-se mártires e símbolos da chamada revolução (os restos mortais dos jovens MMDC –Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo- estão depositados no Obelisco, em frente ao Parque Ibirapuera, com a inscrição: Viveram pouco para morrer bem; morreram jovens para viver sempre). Quatro meses depois, em outubro, abandonados pelos estados antes parceiros, os paulistas, isolados, tiveram que se render e entregar armas. Mais do que uma revolução, foi uma intenção constitucional que só não deu em nada porque no ano seguinte foi eleita uma Assembleia Nacional Constituinte e dois anos depois da fracassada revolução foi promulgada uma nova Constituição. Mesmo assim, Getúlio continuou seu governo autocrático, com mil malabarismos políticos, sempre se distanciando de pendores democráticos exigidos aqui e ali, e a Revolução de 32 passou a ser um tópico da História Constitucional Brasileira, rememorada quase que exclusivamente pelos paulistas.
Ainda no governo prolongado de Getúlio, tivemos uma nova Carta Magna em 1934, que, por falta de amparo dos homens do governo e próximos a ele, pelo distanciamento democrático, acabou sendo substituída pela Carta de 1937, esta de clara inspiração fascista, que crescia em muitos Estados/nações da Europa sob a égide de Hitler, Mussolini, Franco e outros. Com esta Carta, Getúlio, a bordo de seu Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (depois, em 39, substituído pelo Departamento de Imprensa e Propaganda, instituição de caráter controlador e censurador, bem como formatador de ideologias) inaugurou o que se chamou de Estado Novo e ditou regras – ou fê-las sumir sob o controle do ditador – até o fim desse período, em 1947. Paradoxalmente, Getúlio vinha se constituindo no que chamavam de “um ditador com fortes preocupações com seu povo e que, em sua defesa, não tinha escrúpulos quanto aos meios empregados”. Curiosamente, ou ironicamente, esta Carta foi apelidada de Polaca, em referência às ideias nazifascistas da Carta da Polônia, editada alguns meses antes. Pejorativamente, alguns atribuem este apelido em referência às prostitutas europeias, embora de diversas nacionalidades, foram aqui chamadas de polonesas ou polacas. Mais que um desrespeito à democracia, foi um desrespeito às mulheres profissionais do sexo. A Constituição Polaca sucumbiu junto com o Estado Novo, quando Getúlio, em 1946, diante de suas fraquezas políticas e de forças dos movimentos democráticos teve que chamar novas eleições para a Presidência da República.
Estas duas brevíssimas histórias apontam um pouco da fragilidade dos documentos magnos de nossa também frágil democracia. O que nos impõem, hoje e agora, manter acesa a chama e a luta pelo respeito à Carta Magna, como expressão maior do regime democrático.
Edson Gabriel Garcia, 2023, julho que avança entre sois mais amenos e esperanças mais calorosas.
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A Suprema Corte
Nas voltas que o mundo dá, na Política, vira-e-mexe estamos com o Supremo Tribunal Federal, popularmente conhecido entre nós, como STF, fruto desta permissão aligeirada que a língua nos dá de nominar órgãos, cortes, instâncias, partidos, fundações, ongs, etc, pelas siglas. Em tempos de regime democrático, o bom mesmo seria ouvir dizer do STF raras vezes, deixando com que seus ministros-magistrados toquem sua vida decisória em calma, tranquilidade e acertos. Em tempos de regimes autoritários (ou que pregam sua ideologia e a ela querem submeter o povo), o “esseteefe” é frequentemente citado, de forma crítica ou irônica. Nos regimes declaradamente ditatoriais, sequer são lembrados visto que as decisões jurídicas, e as demais, também, estão nas mãos do dono exclusivo do poder ou passam despercebidos pois o controle dos juízes, nomeados monocraticamente pelo ditador, está centrado em suas mãos.
O STF tem sede no Distrito Federal, faz parte do desenho do regime democrático republicano conhecido entre nós por Três Poderes. Desenho político de governança democrática com os três poderes autônomos e interdependentes, num sistema de relações em que cada um, com suas prerrogativas específicas, “vigia” o outro, com base nas definições constitucionais, principalmente nos “freios e contrapesos”, dos quais já falamos em outras anotações. Não se tratam de relações simples nem ligeiras mas de desatamento de nós tensos que a vida democrática, na plenitude da liberdade de expressão, impõe aos três poderes: ao Executivo executar programas de governo e seguir as leis aprovadas e existentes; ao Legislativo fiscalizar o executivo e propor novas leis ou alterações das existentes, conforme demanda social; e ao Judiciário, de que faz parte o STF, fiscalizar e garantir o cumprimento das leis e, eventualmente, trabalhar para o claro entendimento de leis . Essas relações são mais ou menos tensas com a mesma intensidade que o regime democrático está estabelecido.
O STF está entre nós desde a proclamação da Independência (1822), com o nome de Supremo Tribunal de Justiça, derivado similar português Casa de Suplicação, trazido por D. João VI quando da fuga da família real de Portugal para o Brasil. Foi renomeado, como Supremo Tribunal Federal após a instituição da República (1889). Nos dias de hoje, o STF tem uma série de atribuições, a mais importante delas, definida pela Constituição Federal vigente, como o seu guardião. Não por outra razão, o Supremo se vê constantemente às voltas com as chamadas “ações diretas de inconstitucionalidades”, conhecidas como ADINs, em que ações, atos, decisões, propostas, omissões, etc são questionados. Nesse sentido, o STF não legisla, invadindo competência de outro poder, como alegam alguns, mas esclarece dúvidas sobre as supostas inconstitucionalidades, devolvendo interpretações sobre essas supostas arbitrariedades e irregularidade ao entendimento de normas constitucionais. Por esta responsabilidade, é reconhecidamente a casa mais alta do Poder Judiciário, uma vez que lida com as tensões constitucionais e com questões de amplitude nacional e de relevância para toda a sociedade, como, por exemplo, nestes últimos tempos, a lida com a questão da demarcação das terras indígenas e a regulamentação mais objetiva da atuação responsável das grandes plataformas.
O STF é composto por onze ministros, número ímpar para que, havendo empate, o voto de minerva seja dado pelo/a presidente. Os ministros, indicados, com idade entre 35 e 70 anos, quando da vacância de um dos cargos, pelo Presidente da República, devem ser escolhidos por sua reputação ilibada, seu amplo conhecimento das leis e do funcionamento do Poder Judiciário (notório saber), por sua experiência diversificada (entre outras, a docente e a de estudioso da matéria jurídica). Após sua indicação, o candidato à vaga é sabatinado pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, com duração longa, próxima de uma dezena de horas. Se aprovado, é encaminhado para o Senado, onde passa por nova votação. Nesta sabatina o indicado é inquirido sobre diversos assuntos/temas pertinentes, não só do ponto de vista jurídico, mas também sobre o que pensa sobre assuntos/temas de relevância. Desde que este sistema foi implantado, a última reprovação de que se tem notícia aconteceu em 1894, nos primórdios da República, em que a casa parlamentar votou contra cinco indicações do então presidente Floriano Peixoto. O mandato do novo ministro é vitalício, salvo desistência ou pedido de aposentadoria precoce, encerrando-se compulsoriamente aos 75 anos de idade.
As críticas recentes feitas a este desenho são, basicamente, contra a) o peso ideológico da indicação (a ligação pessoal, profissional e/ou política do indicado com o/a Presidente), e b) o tamanho do mandato. A questão da ligação do indicado com o/a presidente aponta e alega a necessidade de que o futuro ministro não tenha pendências dessa natureza e possa voltar isento dessas influências, sem o peso ou o viés do compromisso ideológico. Por esta razão, propostas de alteração desse método de indicação/escolha do futuro ministro propõem divisão da responsabilidade da indicação/escolha entre o/a Presidente da República e o Parlamento (Senado). Alguns críticos vão mais longe e sugerem que outras instituições, da sociedade civil, fora do governo, também participem da indicação/escolha. O tempo de duração do mandato é considerado muito longo e, como em outras situações da democracia, a troca poderia resultar em mais diversidade. As alterações reclamadas somente podem acontecer se encaminhadas em forma de projetos de emenda constitucional (PEC)e votados no parlamento. Há cerca de seis dezenas de projetos de lei dessa natureza parados no parlamento aguardando análise e votação.
Eis aí uma panorâmica do desenho (e os rabiscos fora do quadro) da Suprema Corte, o Supremo Tribunal Federal. Se nos últimos tempos, por razões que a razão conhece bem, os arroubos contra a atuação desta casa ocuparam espaços na mídia e nas redes sociais, isto nos leva e nos chama a uma postura de defesa das casas institucionais do regime democrático. Ruim com a atuação desta casa de leis, neste desenho, o bom é saber que a democracia permite a correção de rumos, de novos desenhos e a vigilância participativa cotidiana. Pior seria, como se dá nos regimes autoritários, sem essas casas de entendimento e pacificação do que pode estar pouco claro. No autoritarismo, a palavra está com o mandatário autocrata do Poder Executivo e os demais que se calem ou suas cabeças serão cortadas, como queria a Rainha de Copas do País das Maravilhas de Alice.
Que a Suprema Corte possa se desviar e se proteger dos ataques e desvarios autoritários, tão diferentes das críticas democráticas, livres e construtivas.
Edson Gabriel Garcia, 2023, inaugurando julho com novas lutas.
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Política e Liberdade de Expressão
Nada é tão visceralmente ligado à Política quanto a liberdade. Tema tratado em verso e prosa desde sempre, tão caro à democracia, cantado em hinos (“abra as asas sobre nós”) e declamado em discursos de toda natureza. Não sem razão, a Constituição Federal, a constituição cidadã, promulgada em 1988, tratou do tema sem avareza, principalmente no artigo quinto, inciso IX. Nos inspiramos ao ler: “Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.” Deveras inspirador.
Particularmente, é a liberdade de expressão, aqui entendida como o direito de se expressar livremente, emitir opiniões, pronunciar-se sobre qualquer assunto, observadas as condutas de responsabilidade pelo teor da expressão, que salta primeiro aos olhos e ouvidos e mentes quando este assunto é pautado – ou vivido. Como afirmou, sabiamente, o professor Paulo Freire, “Não é no silêncio que os homens se fazem, mas nas palavras (...) O silêncio é uma forma de proibir o homem de ser”. É no domínio e com o domínio da língua (escrita e falada) que os homens se fazem, marcam presença e se constituem como pessoas históricas, registrando sua história. Vem daí a preocupação com o ensino da língua, poderoso instrumento de expressão e intervenção, de um lado na aprendizagem escolar e, de outro lado, no exercício consciente da fala e da escrita. Um humano que fala (registre-se também a importância da oralidade em nossa vida) marca sua presença, registra sua história. Um humano que se cala, se esconde, deixa de registrar sua passagem pela história. Tendo sempre a leitura como parceira da escrita e da fala. Cada um de nós é o que lê, o que pensa, o que expressa.
Por ser, talvez, o patrimônio, mesmo imaterial, mais rico e mais próprio de uma nação, é no exercício da língua que se exercita a liberdade de expressão, e em que se dá a relação mais intensa da liberdade com a Política. A liberdade de expressão, veiculada e vivida pelo exercício do repertório linguístico, é um componente essencial na constituição do regime democrático. Uma democracia não sobrevive sem a liberdade de expressão, pois é dela e nela que a democracia se sustenta, se faz e se refaz. Regimes autoritários, ditatoriais, atuam em sentido contrário e tentam, de muitas formas e com tantos instrumentos calar a voz discordante: pela censura aberta ou dissimulada, principalmente à imprensa, pelo controle do aparelho do estado, pelo calaboquismo imposto a áreas vitais de circulação da liberdade de expressão, tais como a educação e a cultura, por instrumentos legais limitadores (leis de censura, decretos-lei, atos institucionais, etc), pelo esvaziamento da atividade política institucional e, entre outras mais, pela cerceamento dos canais de fala. O recente período da ditadura civil/militar brasileira (1964/1985) deve sempre ser lembrado para que nunca esqueçamos do silenciamento imposto às vozes dissonantes seja por estes instrumentos, seja pela perseguição ou, tragicamente covarde, pela tortura e assassinatos. O controle, cerceamento e proibição da liberdade de expressão é o fim da vida pública, em sua dimensão social, uma vez que é a circulação livre de ideias que
a)permite o cotejamento e a comparação dessas ideias;
b)enseja ao conhecimento da diversidade e pluralidade do universo do conhecimento;
c)leva à seleção das melhores ideias; e
d)chuta para longe a censura (certamente um processo inferior à livre discussão).
O controle, cerceamento e proibição da liberdade de expressão afeta grandemente a livre circulação de ideias e pensamento na imprensa, encolhe as manifestações culturais, comprime os pensamentos filosóficos e breca o desenvolvimento científico, visto que estas manifestações se alimentam da liberdade de expressão e circulação das vozes e pensamentos (ainda que, mormente nas redes sociais, a circulação de mentiras e fake news, como difundir mentiras sobre vacinas, propalar falsas ideias sobre grupos minoritários, servir-se de raciocínios ideológicos rasteiros para perpetuar preconceitos ou ainda mentir descaradamente sobre fechamento de templos religiosos, venha contribuindo acentuadamente contra a liberdade de expressão).
Vale também registrar a importância da liberdade de expressão na constituição da personalidade autônoma e crítica de cada pessoa levando-a a uma maturidade política que, entre outras coisas, permita exercer sua cidadania com soberania e não precisar tanto da tutela do Estado. Essa formação se dá na comunhão de vivências com os outras pessoas, na interlocução com os diferentes, em que cada um/uma, através do cotejamento das ideias, desejos, ambições, sentimentos e pensamentos, vai compondo sua visão de mundo. Quem não pode ou não tem como exercer sua liberdade de expressão não chegará à maioridade intelectual e à maturidade política. Será apenas uma rês, uma cabeça de gado, presa fácil dos donos de rebanho, seja este de natureza política-ideológica, religiosa ou social.
Estas são algumas, poucas, considerações sobre a liberdade de expressão e que nos permite afirmar que o que há de fundamental nessa discussão é garantir que liberdade de expressão seja texto de base constitucional. Por outro lado, e por último, resta, nestas breves anotações sobre tema tão complexo, deixar para outras reflexões a pergunta: deve a liberdade de expressão ser absoluta ou estamos certos em demandar a presença do Estado nesta disputa política. Defendemos a liberdade de expressão total ou precisamos do Estado para impor limites?
Edson Gabriel Garcia, 2023, junho inaugurando um inverno que vem mais aquecido por vitórias políticas sobre o atraso, retrocesso e outros desmandos sociais.
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Estadistas e populistas: a liderança política em pauta
A liderança política será sempre um conceito a ser apreciado, em suas várias dimensões, desde sua significação, seus tipos e a discussão mais difícil que é a determinação se é um dom ou uma atitude. A palavra liderança surge em nossa língua, como outras tantas, derivada da língua inglesa, da palavra “leader”, cujo significado é “guia”. De origem celta, líder significa “o que vai na frente”, cuja personalidade traz determinados traços que o diferenciam dos demais e o gabaritam a “estar na frente, a levar o grupo de liderados a algum lugar/objetivo. Daí surgem outros derivados, de significados tangenciais como “guia, mentor, guru, fazedor de cabeça”, etc. Desde sempre, quando começamos a nos entender como pertencentes e participantes de grupos, haverá uma liderança à frente. Na família, no grupo de amigos, na sala de aula, na escola, no trabalho, na Política. Em algumas instituições (grupos oficializados), a liderança é institucional, por força do cargo ocupado ou do papel exercido, e pode ser aprendida. Um diretor de escola, por exemplo, os líderes religiosos (padres, pastores, reverendos, pais de santo, etc) ou os pais. Nem sempre estes líderes comungam em si as virtudes todas da liderança: a atitude, a energia, o carisma, a sabedoria e a iniciativa, entre outras.
Em Política, a liderança é um mix de atitude com carisma pessoal e se apresenta de várias formas, em vários políticos, sobretudo como a capacidade/habilidade de influenciar grupo de pessoas, motivando-as ou influenciando-as, comandando-as na direção de um (ou mais) objetivo. A liderança é exercida de modos diferentes, conforme traços da personalidade do líder, de forma mais democrática ou mais autoritária. Caudilhos, populistas e estadistas são alguns exemplos desse movimento na Política. O que são estes políticos?
Caudilho: a palavra tem origem na língua latina, capitellium, cujo significado é cabeça. Em espanhol, caudillo, também com a mesma significação. Caudilho, termo quase esquecido entre nós, fez parte da história da colonização espanhola na América (América Espanhola), significa o político que é forte, que tem um grupo militar ou ideológico forte, grupo fiel, de fidelidade mútua. Hoje, praticamente tirado de nosso cenário político, o termo é mais usado pejorativamente, quando se quer ironizar ou criticar ironicamente algum político ou governante. É possível estabelecer-se uma certa relação de sinonímia entre os termos caudilho (de origem espanhola), fuhrer (designação caudilhista para o ditador alemão) e duce (designação semelhante usada na língua italiana).
Populista: o político populista é um franco partidário do “pão e circo”, expressão surgida na época do Império Romano, quando o povo era cooptado por espetáculos e comida. O populista se vale de sua liderança para estabelecer “vínculos emocionais” com o povo, coloca-se acima dos partidos políticos, acima de programas de governo coletivos e estabelece uma ligação direta com as grandes massas, sem a intermediação de partidos ou de outras corporações. Consegue criar uma ilusão de participação desses grupos, quase sempre historicamente marginalizados dos cenários das decisões políticas, manipulando-os nessa trajetória de participação ilusória, na maioria das vezes apenas um espetáculo que esconde uma dominação e um autoritarismo imperceptíveis. O povo, o “povão”, é visto pelo populista como vítimas, como gente bondosa, nunca beneficiada por decisões políticas. Opõe o povo à elite (esta criticada por sempre estar no poder e tomar as decisões a seu favor). Em cima desse entendimento, assenta sua base de atuação – que quase nunca leva a mudanças reais, perceptíveis e benéficas para esse povo – usando uma linguagem simples, popular, de fácil conexão com a massa, massificando a propaganda pessoal e simplificando os grandes problemas da sociedade, embrulhando-os em linguagem simples, recursos retóricos e demagogia. Geralmente, essa postura, bem próxima do autoritarismo, faz com que o populista perdure no poder, em troca de alguns favores sociais e desestruturação da economia. Populistas grassam em ambientes de pouco consciência política.
Estadista: o estadista, na definição do dicionário Houaiss é “a pessoa versada na arte de governar, ativamente envolvida em conduzir os negócios de um governo e em moldar a sua política, ou ainda a pessoa que exerce liderança política com sabedoria e sem limitações partidárias. Os traços de liderança estão presentes na composição da figura política do estadista, principalmente sua capacidade de estar à frente, de comandar sem distinções e sem limitar a participação. Seu olhar se volta para o Estado, para o bem comum da maioria da população. Nesse sentido, é possível falar de exercício de virtudes, aqui entendida como o exercício da excelência. Um estadista será sempre um virtuoso, um político que busca a excelência em sua atuação. Maquiavel, estudioso italiano das questões políticas de seu tempo, assinala ser o estadista um artista, versado na arte de se adaptar às circunstâncias de seu tempo e na arte de se flexibilizar para levar adiante a grandeza do Estado (mesmo quando as ações necessárias são duras e difíceis para se conseguir bons resultados). Também são apontados traços de manipulação na conduta do Estadista, mas há concordância entre muitos dos estudiosos de que o que predomina no comportamento do estadista é o exercício das virtudes políticas (entre as quais podemos citar a justiça, a sabedoria, a inteligência, a humanidade, a ética, etc).
A Política nos tempos atuais, na maioria das vezes transversalizada pela religião e pelas redes sociais e por um sentimento de aversão à atividade política, polarizada, parece-me, facilita o surgimento de lideranças populistas, messias sem programas de governo, construídos na oportunidade e no devaneio das grandes massas marginalizadas pelas tomadas de decisão e de conhecimento raso sobre fatos, atos, decisões e consequências dessas atividades. Sobra pouco espaço para o surgimento de estadistas em um cenário como o que vivemos no momento. Mais uma vez, afirmo, o caminho é a alfabetização política.
Edson Gabriel Garcia, 2023, junho que enseja namorados e namoradas ao amor pelo conhecimento político.
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A Alma Política
Confesso para mim mesmo e para os eventuais leitores destas breves reflexões que é muita pretensão escrever em curtas e poucas linhas sobre a “alma política”, tentando desvendá-la. Acompanham-me nesse exercício de prospecções a curiosidade, as anotações e observações que tenho sobre o tema e, por que não, um arriscado e curto exercício de cartografia da alma humana.
Começo por dizer que “alma”, aqui pra estas anotações tem um significado mais próximo de “mente” ou “psiquê”, o que vai pela cabeça e pensamento, escorregando pelas emoções, e completamente distante do que possa significar este termo em religião.
O que faz uma pessoa agir – ou não – politicamente? O que enseja alguém a se aproximar da Política?
Emílio Mira y López, médico cubano grande estudioso e conhecedor da “alma humana”, que viveu parte de sua vida entre nós, vindo a falecer em 1964, no Rio de Janeiro, escreveu sobre “Os Quatro Gigantes da Alma: o amor, o medo, o ódio e o dever”, sucesso de leitura entre nós na década de sessenta. Inspirado pela indagação (mais por ela do que pelas respostas), pergunto quais seriam os gigantes da alma política? Mais uma vez, com liberdade de expressão, sem perder de vista a responsabilidade pela expressão, arrisco pensar um pouco sobre o assunto: paixão, confiança, traição e....correndo por fora, o medo.
Sinto que a paixão é o grande ensejador da ação política. Grandes políticos (e pequenos também) são tomados por uma paixão enorme pela ação política. São políticos full time, workaholics da vida política. Seus dias parecem ter mais do que as vinte e quatro horas dos dias normais de todos nós. Comem, bebem, sonham, respiram e pensam Política o tempo todo. São tomados por essa paixão, que muitas vezes os cegam e outras tantas os levam a atitudes ousadas, delicadas, profundas e (ir)responsáveis que afetam sua vida e a vida de muita gente. Agem apaixonadamente, como agem os amantes apaixonados, para o bem e para o mal, apesar de discursarem para todos o adágio popular que não se faz Política com o fígado. Há muitas histórias, anônimas ou públicas, de homens que dedicaram sua vida toda à Política, sacrificando por isso sua vida familiar, pessoal e, nãos raras vezes, econômica. Desde lá atrás, homens como Getúlio Vargas, Carlos Lacerda, Jânio Quadros e, mais recentemente, Lula exemplificam vidas dedicadas apaixonadamente à Política. Isto não significa que seus atos políticos possam, pelo exercício da paixão, serem bons ou maus do ponto de vista do bem estar coletivo. A paixão, como a exacerbação do amor, sentimento sublime e complexo, não credencia homens e mulheres, a priori, ao bom exercício da cidadania política.
Se a paixão é o grande estimulador, a confiança é um dos sustentáculos dessa paixão. Confiança aqui entendida como a atitude de crer, acreditar e estar seguro sobre algo ou sobre o comportamento de outra pessoa. Confiança vem do termo latino “confidere” que significa “acreditar plenamente, com firmeza, com fé” (o sufixo “fidere” significa fé). A confiança é uma atitude, embora sempre colocada em prova, fundamental na Política, entre os parceiros, entre os que comungam os mesmos ideais. É base de sustentação de projetos comuns, um olhar de apoio projetado no futuro. Políticos apaixonados tem uma confiança forte em si mesmo, autoconfiança plena, o que não os impede de exercer a confiança depositada em outras pessoas, próximas. Paradoxalmente, políticos apaixonados podem ser desconfiados ou excessivamente autoconfiantes. Getúlio Vargas, político reconhecido por sua enorme capacidade política, hábil negociador, de quem se dizia que conseguia tirar as meias dos pés sem descalçar os sapatos, afirmou, certa vez a um jornalista, em resposta à pergunta se tinha inimigos que “devo ter; mas não tão fortes que não possa torna-los amigos” e, diante da pergunta sobre ter amigos “claro que os tenho; mas não tão firmes que não venham a se tornar inimigos”. Confiança é artigo raro nos dias de hoje, razão pela qual é extremamente valorizada.
A traição é a negação da confiança, que antes havia, e aponta para a falta de lealdade de fidelidade (fé). A palavra tem a mesma origem do termo latino “traditione”, cujo significado é próximo de “entregar alguma coisa que possa prejudicar outro”. Nessa perspectiva, a traição acontece apenas com pessoas que têm um certo relacionamento, seja afetivo ou cognitivo. A entrega de algo que é pertencente a estas pessoas relacionadas ou unidas por este vínculo de confiança para outros, essa quebra de confiança, é que caracteriza a traição. Extremamente comum em relacionamentos amorosos, cantada em verso e prosa desde o princípio da história grupal da humanidade, a “traição” em Política também é muito presente. O traço de “traidor” está presente em muitas almas políticas, ainda que algumas tantas vezes disfarçado de negociação, de mudança de rumo, fruto de nova ideologia, etc. Tanto que precisamos dispor na regulamentação dos partidos políticos um tal “regra de fidelidade “que impede políticos de trocarem de partidos a cada ano. A história política da humanidade tem casos icônicos de traição: Judas entregando Jesus; Brutus, que traiu o imperador romano César; Joaquim Silvério dos Reis traindo Tiradentes. Via de regra, o traidor sempre recebe algum pagamento pela “entrega”; da mesma forma que o preço que paga em troca costuma ser maior.
Por último, correndo por fora, o medo é componente presente na alma política em graus variados. Genericamente, o medo pode ser definido com a perturbação, incômoda, diante da exposição suposta ou real a algum perigo. O organismo de quem sente esta sensação fica em estado de alerta, de apreensão, diante da possibilidade que algo ruim possa acontecer. O medo, para além da alma política, se faz presente em todas as almas vivas, faz parte da vida de todos nós, em graus maiores ou menores, do simples receio ao pavor. Pode paralisar ou impulsionar à ação. Alguém medroso demais pode ficar sem ação diante de qualquer suposto perigo e o que não tem medo nenhum pode, eventualmente, se expor a perigos reais. Na ação política, geralmente os políticos são destemidos, embora muitas vezes arquem com consequências pesadas sobre seus atos. Quantos brasileiros, destemidos, movidos pela paixão política, não pagaram com sua vida ou com sofrimento por tortura física e mental durante o período do regime militar, da ditadura (1964-1985). Em regimes ditatoriais, o medo é uma arma dos ditadores, autocratas: ameaçam e punem, sem limites ou constrangimentos, quem ousa criticar, tentar romper censuras e limites, manifestar-se...Na alma política, a tensão entre o medo e a coragem sempre estará presente. Nos demais cidadãos, fora da Política institucional, o medo, muitas vezes infundado ou exagerado, pode levar à omissão política, ao inativismo, à acomodação anônima.
Retratos minimamente definitivos da alma política para reflexão.
Edson Gabriel Garcia, 2023, junho festivo em início de carreira, que traga anotações de boas lutas e vitórias políticas na direção do bem estar da maioria.
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Participação, anonimato e liberdade de expressão
Um verso da letra do nosso Hino Nacional, com música criada em 1931 por Francisco M. da Silva e letra, vencedora de concurso, em 1909 por Joaquim Osório Duque Estrada, oficializado nesta data, é deveras inspirador, hoje e sempre: “verás que um filho teu não foge à luta”. Evidentemente é uma metáfora, poderosa, que nos chama à participação (e tudo o que pode estar embutido neste chamamento). Pensando nisso, juntei reflexões sobre o anonimato e a liberdade de expressão, movimentos políticos que nos rodeiam. E deu nisso.
Participação, como já escrevi anteriormente, é o ato de tomar partido, de fazer parte de alguma atividade, de algum grupo, de alguma instituição. Desde que nascemos vivemos em grupo e participamos de um grupo. Há dois significados diferentes na ideia de participação. Uma é a ideia de pertencer a um grupo. Quase todos os seres humanos pertencem a grupo, fazem parte de um grupo. O outro significado é viver no grupo, discutir a vida do grupo, dar opiniões, responsabilizar-se por sua parte no grupo. Há grupos mais organizados dos quais só podemos participar se fizermos inscrição ou filiação, como é o caso dos partidos políticos ou um curso. Atualmente, pelas redes sociais podemos participar de vários grupos e discutir virtualmente diversas coisas. Enfim, participação é um diálogo que você estabelece com as pessoas com as quais vive em um grupo. Bom lembrar que há níveis de participação que vão desde ser simplesmente consultado para dar uma opinião até fazer parte do grupo coordenador responsável pela execução das decisões tomadas. Como o diálogo, a participação dá trabalho. Exige respeito, disposição, atenção, boa vontade, exercício do pensamento. No mundo de hoje, tudo tão corrido, rápido e superficial, tão líquido e escorregadio, quase nunca temos tempo para dialogar ou participar, ficando embrenhados na solidão, na preguiça, no desânimo, no individualismo, na superficialidade e no anonimato.
E o que é o anonimato? Anonimato é a condição de não ter ou não dar o nome (popularmente é o “não dar a cara pra bater”). Entre as muitas razões que explicam o anonimato podemos elencar: a) medo; b) covardia; c) irresponsabilidade; d) segredo de fonte de informação. Todas essas razões, e outras tantas que possam ajudar a entender esse fenômeno, estão diretamente ligadas com a (omissão) da liberdade de expressão. Todas elas negam o direito da liberdade de expressão, tão caro a todos nós – e por isso mesmo foi tema sedimentado na Constituição Federal vigente. O anonimato causado pelo medo, por exemplo, é justificado por este sentimento forte. Medo de ser punido, de ser preso ou processado, medo de perder emprego, medo de assumir uma determinada postura que implique em defende-la...Muitas vezes, por trás desse medo está uma postura acomodada, de terceirizar problemas para os outros, algo muito comum no cotidiano da Política. O anonimato causado pela covardia vai além do medo, evidenciando um caráter mais acentuado de não querer se envolver com absolutamente nada. Muitas denúncias anônimas se sustentam nessa vertente. Regimes autoritários facilitam e impõem estas duas condições: medo e covardia. O anonimato por irresponsabilidade, caracterizado pelo uso da liberdade de expressão sem nenhuma responsabilidade, tem por objetivo causar confusão, desentendimentos e divulgar mentiras virtuais, próprio também dos partidários de regimes autoritários – que se aproveitam da liberdade dos regimes democráticos para espalhar, muitas vezes anonimamente, seus discursos mentirosos, de ódio, tendenciosos e desinformativos. Por fim, nestas breves considerações que não têm a intenção de serem exaustivas, o anonimato sustentado pela necessidade de manter a fonte das informações longe de dissabores, é tática do jornalismo, principalmente. É também tática dos regimes autoritários que contam com denúncias anônimas, fundadas ou não, para manter todos com medo e punir, com ou sem razão, os denunciados anonimamente. Há uma outra forma de anonimato, aquela que fazemos referência às pessoas comuns, nomes na multidão, a imensa maioria do povo, que nada tem a ver com essas considerações do anonimato na perspectiva do exercício da cidadania política.
De qualquer forma, fica-se com a impressão que toda forma de anonimato evidencia a falta de coragem participativa aberta e democrática, aquela desejada e ensejada pelo citado verso do Hino Nacional. E quando relacionamos essas formas de anonimato com a liberdade de expressão o que vem à reflexão é que a liberdade de expressão, tema constituinte da Constituição Federal e elemento fundamental na construção da democracia, é que essas coisas não combinam, não casam entre si. O exercício da cidadania democrática passa pelo direito de participação e liberdade de expressão, com coragem, sem medo, sem covardia e com responsabilidade.
O homem é um animal político, com forte tendência natural a viver em grupo (pólis), dada sua dependência de outros humanos para sobreviver, viver e construir-se como cidadão. É, pois, também pelo exercício da participação e da liberdade de expressão, que os humanos reafirmam sua natureza política, de construção de histórias coletivas e de histórias individuais nas quais, cada um com a sua, registramos o nome pessoal e fugimos dos apagamentos do anonimato.
Edson Gabriel Garcia, 2023, maio passando o bastão para junho, aquecendo nosso direito de praticar a liberdade de expressão, sem medo de ser feliz.
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A verdade vos libertará: qual verdade, vinda de onde?
Está lá, na Bíblia, o livro dos livros, que a verdade libertará a todos (João, 8-32) e esta palavra tem guiado inúmeras interpretações do que seja a verdade. Religião, Política, Filosofia... o que é a verdade? Abro estas reflexões com a citação bíblica por ser ela a mais presente, a mais plena de marketing e a campeã de entendimentos e significações. O que é a verdade? Quem ou o que é o depositário da verdade? Pra que serve a verdade? Mil e uma utilidades? Longe de mim buscar respostas para estas questões com as quais a humanidade vem se debatendo, ao longo da história, em meio a tantas propostas de significações. Se fosse pra responder, eu ficaria, para meu consumo pessoal, apenas com o conceito de transitoriedade entre a ficção e a realidade, com seus limites frouxos, indefinidos e fáceis de serem ultrapassados. Cito a discussão sobre a verdade e sua onipresença entre nós, para começar a tecer reflexões sobre este assunto a discussão longeva do que fazer com a verdade, transcrita no PL 2630/20, que tramita nas instâncias do Congresso Nacional, desde 2020, retornando nestes tempos, com mais vigor e mais assuntos, à luz das ocorrências políticas cujo palco público tem sido ocupado pelo conteúdo das redes sociais. Que estas discussões sejam feitas e decisões tomadas, antes que tenhamos que trocar os adesivos dos carros por uma mensagem pasteurizada: Acompanhe as redes sociais: ela vos dirá a verdade a ser seguida.
Um pouco de brevíssima história. O Projeto de Lei 2630 foi protocolado em 2020, e desde então tramita, talvez com a ligeira intenção de se ordenar um pouco mais a presença das redes sociais – em suas tantas plataformas (as big techs, gigantes do mundo da comunicação, tais como Google, Meta,Twitter, Tik Tok, entre outras, de agora e do futuro) – tendo evoluído para abarcar outros temas mais, principalmente a partir de 2023, devido, sobretudo, a ocorrências políticas intensas, ficando muito mais claro que há um novo desenho do espaço público, agora deslocado, em parte substantiva, para estas plataformas. Consomem-se conteúdos de redes sociais com a fome que se consomem alimentos para a vida biológica. O que está em foco, portanto, talvez seja, mais do que discutir o que seja a verdade, discutir quem é o responsável pelos conteúdos de verdade propostos nas plataformas digitais e se é possível estabelecer-se mecanismos de regulação/controle. ( M. McLuhan, um dos maiores teóricos da comunicação, canadense que viveu entre 1911 e 1980, já dizia em seus precavidos e antecipatórios visionários sobre a comunicação que o meio é a mensagem e o preocupante é o que a mensagem faz com as pessoas). Um pouco antes desse projeto, nos idos de 2014, tivemos a aprovação do Marco Civil da Internet, aprovado e transformado na Lei 12 965/14, com o objetivo de colocar as diretrizes e bases do uso da tecnologia da informação entre nós. Os tempos eram outros e o famoso Artigo 19 desse marco sugere que as plataformas não possam ser responsabilizadas pelos conteúdos postados por terceiros. E esse, hoje, na esteira do PL 2630/20, ele próprio já defasado na origem, parece ser o ponto nevrálgico dessa discussão. De um lado, os que defendem a responsabilização das plataformas pelas postagens (o que implicaria em auto regulação, como as empresas de comunicação fazem através do CONAR, ou regras externas) e, de outro lado, os que defendem a liberdade de expressão e a desresponsabilização das plataformas, mesmo com o avanço incontrolável dos fóruns de comunidades tóxicas e das camadas mais profundas da internet marginal. Estas plataformas, com sede em qualquer lugar planetário, sem nenhuma vontade de responder às propostas de regulações, fazendo do seu espaço o espaço público, ganhando fortunas incalculáveis com esse trânsito de conteúdos, ficam na espreita sem se pronunciar – ou quando se pronunciam alegam que isto fere a liberdade de expressão, sua e de todos nós. Alegar o cerceamento da liberdade de expressão, sem a devida responsabilidade, como argumento para fugir da regulação é, no mínimo, descuido intencional. Mas este não é o único ponto que merece ser discutido. O manejo competente das plataformas/redes sociais vem sendo fator de empoderamento de uma parcela da população mundial, que se apoia nos partidos e políticos de extrema-direita, aproveitando-se desse descontrole da liberdade de expressão, postando seus conteúdos de destruição, de ódio, de mentiras. Fazem disso, plainando sobre a superficialidade das leituras e compreensões das coisas do mundo, sua plataforma para assumir o poder e instalar suas veias ditatoriais em regime. Nesse sentido, nada mais correto fazer a discussão dessa questão que envolve toda a sociedade. no campo político, nas instâncias políticas representativas. Não só nessas instâncias, mas em todo espaço público possível, da igreja à escola, do trabalho à família, da imprensa à tribuna dos parlamentos. O que está em jogo, portanto, além da discussão sobre liberdade de expressão e regulação dessa liberdade, com responsabilidade, é o futuro dos regimes democráticos.
Ficam estas considerações para reflexão, reforçando mais uma vez o quanto o acompanhamento do cotidiano da Política é necessário, pois o que for aprovado na instância política afetará a vida futura de todos nós. Os conteúdos livres e desresponsabilizados postados com frequência e alta competência, agasalhando radicais que arquitetam a arregimentação de pessoas incautas e desprovidas de noção de coletividade, entre os quais, conteúdos de violência e pedofilia, vivem hoje em um território livre e sentem-se confortavelmente escancarados.
Governo, instâncias políticas e sociedade civil organizada têm obrigação de trazer para si a responsabilidade de ordenar, à luz dos novos tempos, a liberdade de expressão, a responsabilidade social e a transparência. Ou seremos engolidos pela fragmentação política e social dos novos tempos, arquitetados em uma nova aldeia global, volátil, ágil, escorregadia, destruidora e incontrolável.
Edson Gabriel Garcia, 2023, maio preocupado, com espaços para discussões políticas que afetam nosso cotidiano.
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A atitude antipolítica: possíveis causas e consequências
O tema não é novo e insisto em abordá-lo novamente. A insistência vale mais porque suas consequências são danosas ao espírito democrático do que por teimosia. É possível alinhavarmos algumas causas dessa atitude e suas consequências para que cada um tire suas próprias conclusões.
A primeira causa, seguida por outras, sem ordem de importância, é o entendimento que Política é coisa suja, só de corruptos, todos os partidos, políticos e governos são corruptos e colocam os seus interesses pessoais acima de tudo, acima do coletivo. Com essa percepção, apoiados num visão que, em parte, é verdadeira, generalizam a picaretagem em toda a ação política. Adotam, sem olhar crítico, a posição sustentada pelo provérbio espanhol “se há governo, sou contra”. Ou então, relembram Ruy Barbosa “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto”. De certa forma, é mais fácil se agasalhar nessa posição niilista do que ir à luta pela qualificação da ação política.
Outra causa é a descrença nas instituições públicas democráticas, as mesmas que, bem ou mal, sustentam um regime democrático. Desse modo sustentam fake news ou ataques sistemáticos contra essas instituições. Não são críticas à atuação dessas instituições, mas ataques físicos, ideológicos e políticos. Vale lembrar, e registrar, que mesmo em uma democracia, esses ataques, muitas vezes vindos de membros do Poder Executivo, têm claramente a intenção de desmontar o regime democrático e instalar regime autocrático, ditatorial. São ataques pesados, mas desprovidos de base de fundamentação, como o que vimos recentemente, contra as urnas eletrônicas e contra a suprema corte federal.
A maioria dessas posições, que levam a uma atitude antipolítica, é fruto de falta de informações mais aprofundadas, falta de conhecimento, de estudos, de leituras críticas, de discussões. Uma coisa leva à outra: o desconhecimento permite a formação do preconceito e o preconceito estabelecido leva à recusa do conhecimento. Exemplo muito claro disso é a chamada “despolitização” da escola, oportunizada através de projetos de lei que tramitam (e alguns já foram aprovados em Câmaras Municipais, apesar de declarados inconstitucionais pelo STF) da chamada “Escola sem Partido”, como se isso fosse possível. Como já defendi em outros escritos, escola deve ser, por excelência, até pelo cuidado que tem com a verdade do conhecimento, o local da alfabetização política, da construção da cidadania.
Por último, mas sem esgotar o assunto, registre-se que a abundância de fake news que circulam entre nós – o que faz meritório e necessário e urgente a discussão do controle e responsabilidade das plataformas digitais – contribui para esse descrédito da ação política.
Assim sendo, com essas possíveis causas, apontamos algumas consequências imediatas:
-aversão à Política, deixando-a para os políticos profissionais, que fazem uso dela de forma a priorizar os interesses particulares seus ou do grupo que representam, distante de olhares críticos, de cobranças e responsabilidades sociais, para os políticos ocasionais e outsiders e para poucos que realmente tenham interesses no bem estar coletivo;
-ignorância, por falta de conhecimento, da real importância da Política na vida de todos nós, presente direta ou indiretamente em nosso cotidiano, com interferência em todo o modo de viver e pensar e sentir;
-diminuição da mobilização e participação nos eventos da vida política cotidiana, o que é trágico para uma sociedade que se queira mais justa; e
-relega à Política papel secundário de figura central no humor ácido.
Reverter este quadro de analfabetismo político, retrógado e conservador, e aversão à Política não é fácil, mas rigorosamente necessário. Descrença, insulto e ignorância não são virtudes. Tarefa diária de contar os grãos de areia do mar, eis o que nos espera.
Edson Gabriel Garcia, 2023, maio pelo meio, trazendo consigo um esperançoso novo dias mães e esperanças outras renovadas.
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Políticas de desigualdades
George Orwell, em seu clássico livro A Revolução dos Bichos, publicado em 1945, escreveu pela voz de uma das personagens que “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros”. Um pérola sarcástica sobre a luta pela manutenção dos privilégios, dentro de uma crítica maior aos regimes totalitaristas. Esta fala, registrada em livro, para sempre estará presente em nossas reflexões sobre a questão da desigualdade entre os humanos de uma sociedade. Seria utopia (no seu sentido original de lugar mais adiante) pensar em uma sociedade menos desigual? Pode ser, mas vale a pena refletir sobre o tema, à luz do que temos no cotidiano político: por que não uma sociedade menos desigual?
Primeiramente, cabe um apontamento básico sobre igualdade, aqui entendida como o tratamento universal de que somos todos regidos pelas mesmas regras (Constituição Federal) e temos todos os mesmos direitos e deveres. Se temos, por que não usufruímos dessa igualdade? Por que o desenho social não apresenta este equilíbrio? O provérbio popular “é no balanço da carroça que as abóboras se ajeitam” traduz na linguagem do povo este movimento político em que o desenho social vai sendo construído. Se ao longo da história (o balanço da carroça) é mantida uma escola de pouca qualidade e baixo alcance de aprendizagem, por exemplo, a força de luta, de conquistas e de ação dos menos iguais (o tal ajeitamento das abóboras) vai determinando a primazia da desigualdade.
Dito isto, estabelecido o patamar de nossa reflexão (por uma sociedade menos desigual), arriscaremos algumas anotações críticas ao desenho e à engrenagem da sociedade que, em vez de nos aproximarmos, ao contrário, nos distancia mais, abrindo brechas entre os cidadãos. O desenho e a engrenagem de nossa sociedade vem de longe e trazem consigo a marca da exploração e da exclusão: colonialismo, massacre da população indígena, escravidão, analfabetismo, negação do direito ao voto. São inúmeras as marcas impostas pela elite dominante (políticos/nobreza/clero/banqueiros/industriais/donos de grandes fortunas) aos menos favorecidos: escola de baixa qualidade e seletiva, legislação aprovada por representantes da classe dominante/elite em seu próprio benefício, modelo econômico que beneficia o capital, em prejuízo do trabalhador, aversão dissimulada à política como atitude de vida, baixa qualidade dos serviços públicos, em razão do pouco investimento, entre outros pontos. Sob a falsa aparência de que temos todos as mesmas oportunidades, o que não é nunca foi verdade, até hoje – a vida segue entre esperneios, sustos, pobreza e desigualdades acentuadas, na direção de pontuar o nosso pais como um dos maiores índices de desigualdades, em que pesem toda a pujança e riqueza natural do território brasileiro.
Reforçada por ideologia (implícitas ou claras) que ouvimos no transporte público, na escola, na igreja, no trabalho, na mídia, seguimos desiguais mas pensando que aqui é um país livre, de oportunidades, de igualdades plenas diante da lei (e de tudo o que a lei representa). A inculcação ideológica da desigualdade leva os pobres a não questionarem sua pobreza, atribuindo-a aos desígnios divinos, legítimando que assim seja. Sob a égide da frase cunhada por Pero Vaz de Caminha, em carta escrito ao imperador, de que “aqui, em se plantando, tudo dá”. A função da ideologia, sutil e camuflada, é forte e segue firme. Continuamos reféns do desenho e da engrenagens que apostam na desigualdade e se encolhem quando há, aqui e ali, movimentos por mais direitos (os quais devem expressar a mudança na direção da igualdade): basta ir a um banco tomar dinheiro emprestado (paga-se aos banqueiros, em curto prazo, várias mais o montante emprestado); basta começar a trabalhar e sentir na pele a precarização das relações trabalhistas (veja, por exemplo, a última reforma trabalhista, 2017, que acentuou a perda direitos e a precarização do vínculo); basta procurar o sistema de saúde público, que resistiu bravamente na recente pandemia, apesar do esforço contrário do governo autoritário (2019-2022), em que a fila e a falta de médicos e medicamentos dita a tônica; basta pertencer a algum grupo minoritário, que vive o preconceito estrutural cotidianamente, e sentir as inverdades do slogan ideológico “não somos um país preconceituoso”; basta procurar o judiciário, mesmo com o avanço do Ministério e da Defensoria Públicos, para sentir que a lei é para todos, no papel, e para perceber que “alguns animais são mais iguais”; bastar olhar ao lado para descobrir que a maior parte dos muitos impostos recolhidos é paga pelos trabalhadores (o capital, os donos de grandes fortunas, a Igreja – todas elas empresas arrecadadora de tributos, travestidos de dízimos, ou de sua versão mais atual e menos envergonhada, a contribuição direta por pix – quando não são isentos ou refinanciados, pagam pouco, quase nada). Basta olhar, quem consegue ver, para a mídia, que dá destaque predominante aos economistas pró mercado em críticas pesadas a eventuais propostas de novos modelos de taxação, de distribuição de renda, buscando um Estado Social (ou cidadão) com menos desigualdades. Bom olhar também para os privilégios acentuados e renovados com frequência para certas castas superiores dos servidores públicos, como militares e parte do judiciário.
E tudo isso sob os olhos do regime, mesmo democrático, sob os olhos dos parlamentares, não vigiados nem cobrados, que aprovam legislação de pouco eficiência no sentido de diminuir desigualdades, desigualdades estas que se apresentam com diversas caras: aumento da população de rua, maior distanciamento entre os mais ricos e os mais pobres, perda de renda, precariedade dos vínculos trabalhistas, diminuição dos investimentos em áreas sociais mais urgentes, aumento da busca pelos serviços públicos, aumento expressivo do lucro de bancos e de exploradores do agronegócio. Estas condições só podem ser mudadas na manutenção de um regime democrático mais aberto à participação, mais formativo no sentido de que só o conhecimento pode trazer à luz este desenho social e permitir que se lute contra ele.
Alfabetização política contra a desinformação e contra os apagões de qualquer regime autoritário que se insinue, pois neste estão as condições perfeitas para que as desigualdades se instalem e se mantenham. A beleza do universo está exatamente na sua diversidade, como afirmou Umberto Eco, mas isto não pode nem deve significar fossos enormes de desigualdades entre nós. Sejamos todos iguais não só perante as leis, mas também na distribuição, com mais equidade, de recursos coletados de todos nós no pé-de-meia chamado orçamento público.
Edson Gabriel Garcia, 2023, abril chegando ao fim, passando a faixa para um maio mais esperançoso.
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A militância pela Democracia da Resistência
Há um ditado popular que diz que é “o olhar do dono que engorda os porcos”. Na prática, o que a sabedoria popular quer dizer com este dito é que a presença do dono da manada, seu cuidado, sua vigilância e olhar atento, seu movimento de participação, enfim, na vida do que lhe é precioso, garantem o sucesso. Quem planta, rega, aduba e cuida, colhe bons frutos. Mesmo sabendo que nem tudo que diz a sabedoria popular reflete bom senso, é possível puxar uma discussão boa sobre participação e envolvimento na democracia.
Em Política tudo é movimento. E, no entanto, se move, prezava Galileu. O surgimento de movimentos em defesa da Democracia, contra seus detratores, é contínuo, veio junto com sua criação. Quem ama cuida! Quem preza protege!
A cerca de um século, começou-se a falar de uma certa democracia militante. Conceito gerado no momento em que o ditador A. Hitler dava as cartas falava de instrumentos de autodefesa da democracia com a finalidade de defendê-la dos ataques dos seus inimigos autocratas, o ditador alemão, certamente um dos mais ferozes. Nesse sentido, o conceito de democracia militante nasceu com um viés ideológico, gerado em um momento muito específico. Aos poucos, este conceito se mistura (ou evolui) para o conceito de democracia da resistência, mais amplo que o anterior, sem o viés exclusivamente político (no sentido ideológico-partidário), incluindo todas as formas de defesa da democracia, o que é caro à maioria da população. Trata-se de um movimento bem amplo de defesa (autodefesa) dos princípios que embasam a democracia, criando mecanismos e instituições que possam representar estes anseios e lutar e se manifestar por eles. Para além dos partidos políticos, supera-os e abarcam todas as matizes políticas de proteção das bases da democracia. Movimentos como DIRETAS JÀ (cujo início histórico é marcado em 1983, quando, em meio à ditadura, foi protocolada pelo Senador Dante de Oliveira, uma emenda constitucional que previa a realização de eleições diretas para presidente – o resto é história), JUÍZES PELA DEMOCRACIA, CAMAPNHA NACIONAL PELO DIREITO À EDUCAÇÃO, entre outros, são exemplos desse movimento que não param de crescer, sempre amparados pela Constituição Federal, o marco iluminador de nossa mais recente história democrática. É a Carta Magna que, no artigo 17, de criação de partidos políticos (ou em sua cassação), já deixa claro que a criação de partidos políticos fica condicionada ao respeito destes pela soberania nacional, pelo regime democrático, pelo pluralismo, pela liberdade de expressão dentro da legalidade e pelo respeito aos direitos dos cidadãos. Esta mesma Constituição prevê em seu texto o equilíbrio entre os três poderes da República, através do mecanismo dos freios e contrapesos, sendo estes mecanismos um dos pilares de sustentação da democracia.
Um dos aspectos que vale a pena ser comentado é o chamado “paradoxo da tolerância”, pertinente ao preceito democrático da liberdade de expressão, apresentado objetivamente como ideia a ser discutida pelo filósofo austríaco Karl Popper (1902/1994). Coloca na mesa a discussão sobre qual deva ser o limite da tolerância, contra a intolerância, para que esta não destrua a democracia. O que é uma das virtudes da democracia, a liberdade de expressão, pode vir a ser um dos vetores de corrosão: a liberdade de exposição de pensamentos e atos, mesmo quando estes são contra quem e o que lhes garantem a liberdade. A ponto de Joseph Goebbels, poderoso ministro de Hitler e mentor de inúmeros pensamentos e grupos totalitários e partidários do discurso do ódio, diz que “Sempre será uma das melhores piadas da Democracia o fato de que ela dá aos seus inimigos mortais os meios para destruir a si própria”. Ele próprio nos dá o caminho para coibir as manifestações de grupos de extrema intolerância, em momentos de fragilidade institucional, contra os parâmetros da tolerância: intolerância contra a intolerância! Vigiar, acompanhar de perto e cercear, dentro dos limites da liberdade de expressão respeitosa, essas manifestações e ações, atribuindo a seus autores a responsabilização punitiva e cerceativa que couber.
A democracia brasileira tem histórico de fragilidade, principalmente causado pela tibieza dos poderes constituídos e pela tutela, na maioria das vezes inoportuna, das Forças Armadas (armadas contra quem? – eis a pergunta que nunca se cala), exemplificada por inúmeros golpes de estado, civis ou militares, de força bruta ou branda, algumas das vezes com o apoio de parte da população pouco esclarecida, manipulada e sem consciência política dos fatos. O recente período democrático que teve início com a redemocratização, ainda que esta possa ser considerada muito incipiente, está em movimento de afirmação. A baixa alfabetização política, acompanhada pelo baixo interesse em Política, entre outras causas, dificultam a consolidação do regime democrático. Nesse vácuo do “não suporto Política” ou “Todos os políticos são corruptos”, os maus políticos, muitos deles portadores de discurso do ódio e valores totalitários, se aproveitam e se instalam com sua intolerância e pregação contra a democracia.
Contra esses detratores da democracia nossa militância defensiva: pelo respeito ao equilíbrio dos três poderes da República, pela participação nos movimentos e instituições de defesa da democracia e, sobretudo, pela alfabetização política dos brasileiros.
Salve, salve, a Democracia. Sempre.
Edson Gabriel Garcia, 2023, por um abril de consciência defensiva.
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A Escola como local de alfabetização política
Ainda sob os efeitos da comoção nacional causada pelos violentos ataques ocorridos no país e que colocaram a Escola no centro das atenções, retomo a necessidade já postada em outros textos de fazer desta instituição o local por excelência da alfabetização política cidadã. Vale a retomada, já que os “sonhos não envelhecem”, como imortalizou Milton Nascimento, na canção Clube da Esquina n 2, sua e de Marcio Borges, com letra de Lô Borges.
No trajeto da discussão sobre violência nas escolas correm soltas inúmeras opiniões, desejos, atalhos, propostas, comissões, etc. Mais uma vez corremos o risco de, passada a tempestade emocional, quase sempre superficial e midiática, substituída por outra tragédia, ficarmos no meio do caminho, com as pedras do caminho, sem alternativas concretas e viáveis. A Escola, sabemos de longa data, é uma das instituições mais respeitadas pela população, seja pelo assistencialismo barato, seja pelo acolhimento ou seja pelo esforço dos educadores em levar educação aos que a procuram. Um reconhecimento, diga-se de passagem, que se deve muito mais aos trabalho esforçado dos educadores do que a propósitos das políticas públicas de governo (e não de Estado, como seria o desejável). Neste sentido, penso que a instituição Escola é o local por excelência para se promover uma educação política cidadã consistente o suficiente para dar sentido ao conhecimento nela construído e lidar com questões sociais mais amplas que chegam até ela (que, hoje, encontram-na desprotegida).
Assim pensando, eis o que propomos para se pensar coletivamente:
1.Ambiente escolar
-que as escolas sejam pequenas, permitindo se conhecer todos os alunos/as pelo nome e sobrenome, pela família;
-que se possa conhecer o histórico de cada aluno a um toque de dedo;
-que a família seja e esteja presente no cotidiano escolar;
-que a escola tenha uma rede protetora próxima ao seu alcance imediato;
-que o ambiente escolar, além de alfabetizador, seja acolhedor, solidário e estimulante à aprendizagem livre e criativa;
-que se fortaleça a participação da comunidade, principalmente no Conselho de Escola, multiplamente representado e com poder de livre discussão e decisão dentro de seu limite;
-que se fortaleça a participação/audiência dos alunos/as, seja pelo grêmio ou por representação;
2.Currículo Escolar
-que o currículo escolar seja muito mais do que uma relação de disciplinas/matérias distribuídas em uma grade horária;
-que o currículo seja flexível, crítico e que possa acatar todas as formas de conteúdo necessários e pertinentes e atuais, sem que se tenha medo ou restrição deste ou daquele conteúdo;
-que o prédio, instalações, espaços e equipamentos estejam sempre disponíveis, em condições de uso diverso e múltiplo;
-que os materiais didáticos, para além de livros didáticos padronizados, abundem em quantidade, qualidade e diversidade;
-que a metodologia do ensino x aprendizagem contemple várias formas de abordagem: leituras, debates, palestras, rodas de conversa, pesquisas, grupos de estudo e pesquisa, estudos de realidade local, entrevistas, audiência de vídeos e filmes, acesso a redes socais, etc;
-que o tempo de permanência dos alunos/as na Escola seja qualitativamente aumentado e melhorado;
3.Temas da alfabetização política e cidadania comportamental (a serem estudados, debatidos, pesquisados, etc)
-bullying/violência
-discurso de ódio
-machismo, misoginia, preconceito e outras pautas de atraso comportamental
-autoritarismo (muitas vezes existente nas relações internas)
-pluralismo e diversidade de ideias
-regimes de governo
-leitura crítica da mídia
-mídia, redes sociais e fake news
4.Educadores
-que as equipes escolares sejam compostas por educadores e outros profissionais de assessoramento de saúde, psicológico e social;
-que os educadores tenham tempo qualificado de preparação de situações de aprendizagem, coletivamente, e que disponham com frequência de propostas de formação profissional, na sua área e interdisciplinarmente;
-que a dedicação profissional exclusiva seja compensada por salários dignos.
Não há como cercar a Escola e impedir que nela entrem os atritos sociais mais amplos que rolam na sociedade, extramuros escolares. As diferenças de pensamentos e comportamentos existem com vigor dentro da Escola. A diferença – e nisso reside sonharmos com uma Escola melhor gabaritada – é que a Escola pode identificar essas pautas e mediar conflitos, refletir sobre eles, questionando-os, sem fazer vistas grossas e sem reproduzir sua cruel mesmice preconceituosa. A Escola tem espaço para isso, tem sentido nesses diálogos, como pontos de reflexão para lidar com isso de maneira democrática e humana. Uma escola assim constituída não precisará de policiamento armado dentro dela, uma vez que o conhecimento dará conta de seus problemas, identificando-os e propondo encaminhamentos.
Edson Gabriel Garcia, 2023, abril ainda quente, que retarda bons ventos de convivência cidadã.
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A (in)visibilidade política da escola
A Escola Pública, aqui registrada com letra maiúscula respeitosa e propositadamente, é quase invisível no que diz respeito a uma política pública pra chamar de sua. No entanto, esta invisibilidade sai de cena e cede espaço imediato ao apelo midiático, tipo show da vida, e ocupa por instantes nossos corações e mentes quando a instituição vive alguma tragédia, atropelando os sentimentos de medo, surpresa e desencanto da comunidade escolar. Prato cheio para a mídia, que se ocupa por tempos breves, mas intensos, de tempos em tempos, em explorar tragédias humanas ocorridas, aqui e ali, nesta ou naquela Escola. Da invisibilidade perene nos seus problemas cotidianos, que parecem eternos, a Escola vem pra cena trazida pelas mãos dos comunicadores, hábeis em explorar aspectos negativos da alma humana em suas relações interpessoais – que ademais ocorrem em todos os segmentos sociais. Só então, a Escola sai de sua triste sina de descuidos políticos para um cenário de fotografia em primeiro plano. E só então todos ficamos sabendo, ainda que primeiro atingidos pelo discurso falsamente moralista da mídia, que pauta nosso interesse e nosso estranhamento, do mal traçado destino político da Escola: solitária, apesar de estar inserida em uma comunidade; desamparada em recursos humanos e materiais, apesar dos discursos políticos pré-eleitorais; desorientada na falta de rumos; estabelecida em um ambiente ausente de postura crítica e adoecedor; amedrontada, nos raros espaços de voz permitidos aos educadores. Por uns dois dias, até que a agenda setting mude o cursor, a tragédia ocasional – e não a outra, mais profunda e eternamente cotidiana – e a tragédia da Escola saia de cena.
Precisamos tirar a Escola, pública, principalmente, visto que é esta que se abre para a maioria da população, desta visibilidade enviesada: a Escola não é só isso, ou não deveria ser, campo de tragédia da alma humana, reflexo da violência social que nos rodeia e celeiro fértil de notícias trágicas, seja pela violência seja pelo aspecto negativo do assistencialismo (quando é notícia pela falta de comida no restaurante escolar – como se fosse apenas sua a responsabilidade de dar comida a quem tem fome). A Escola deve ser o lócus privilegiado de trato com o conhecimento, acumulado, histórico e crítico. Saciar a fome de saber de quem procura a Escola, este deveria ser o seu destino principal, o seu perfume encantador, sua fotografia de porta-retratos. Escolas pequenas, bonitas, bem equipadas (com todo equipamento e material didático necessário a uma boa aprendizagem), com profissionais bem preparados e dignamente remunerados (para além de educadores, outros profissionais se fazem necessários na Escola atual), assentadas em um ambiente saudável de aprendizagem crítica, de livre pensamento e de boa formação cidadã. Onde está esta Escola?
Onde está esta Escola?
Está em parte no papel. Temos um Plano Nacional de Educação, aprovado em 2014, que quase não sai do papel e vive a reboque da descontinuidade de governos. O PNE, que deveria ser um programa de Estado (diferente de programas de governos que se sucedem democraticamente), não caminha como tal, é ignorado em sua substancialidade e se submete às idiossincrasias dos governantes de plantão, sejam eles autocratas ou democratas. Basta olhar a tragédia da reforma do ensino médio, imposta por medida provisória do governo golpista (2016-2018): excludente, reafirmadora de desigualdades sociais, fragmentadora do currículo, rebaixamento da qualificação de professores, enganosa em sua proposta fabuladora de itinerários formativos, etc. Se isto não bastar, olhe-se para a política educacional paulista que vem sendo imposta goela abaixo pelos governos autoritários do estado mais rico da federação: negação de formação de educadores, imposição acelerada da famigerada reforma do ensino médio, fragmentação curricular, divisão da carreira do magistério criando buracos instransponíveis entre as duas carreiras existentes, mutilação do direito de voz dos educadores, asfixiados por ameaças, negação de concursos, criação de um dos vínculos de trabalhos mais precários de que se tem notícia, imposição do medo como sentimento dominante na relação com os dirigentes e gestores, entre outros aspectos. Se esses argumentos exemplares não forem necessários, mire-se na atitude administrativamente financista e egoísta da grande maioria dos municípios brasileiros que, de pires na mão, à cata de recursos públicos para atender suas corretas e urgentes demandas, escondem as contas do FUNDEB e dificultam ao máximo a compreensão dos gastos desta verba que, a princípio, deveria ser exclusiva da Educação. Mas não é. Muitas necessidades levam à burla da contabilidade com o desvio de verbas da Educação para tantos outros descaminhos.
E neste papel, em que deveria estar a Escola, há saídas e rumos: o próprio Plano Nacional de Educação e o novo FUNDEB, recentemente aprovado depois de muita luta e pressão da sociedade civil sobre a politicagem, definitivo, mais amplo e com um pouco mais de recursos. E mais do que isso, a Escola se assumir como reduto insubstituível do pensamento livre e crítico, como base na aprendizagem pela interação dos saberes históricos, culturais e científicos acumulados, como espaço privilegiado da voz dos educadores e como cenário de realizações de aprendizagens cidadãs e convivência social. Sair da visibilidade tóxica imposta pela mídia e da invisibilidade cotidiana do esquecimento político para uma outra visibilidade possível, da construção política e cidadã cotidiana, em que a alimentação e o assistencialismo sejam apenas pano de fundo e que as eventuais tragédias sejam fruto do acaso e não da pobreza de recursos e à política de esquecimento a que vem sendo imposta.
É agora ou agora!
Edson Gabriel Garcia, 2023, abril de muitas lutas políticas pela frente, uma delas, colocar a Escola no centro das discussões.
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Pedras no meio do caminho: Política, escola e redes sociais
Uma das metáforas poéticas mais perfeitas da literatura brasileira e quiçá mundial é a da “pedra no meio do caminho”, eternizada nos versos do poema NO MEIO DO CAMINHO, do poeta Carlos Drummond de Andrade, publicado em 1928, há quase cem anos: No meio do caminho tinha uma pedra/tinha uma pedra no meio do caminho/tinha uma pedra/no meio do caminho tinha uma pedra. Com genial simplicidade o poeta selou para sempre a ideia existencial de que na vida, o caminho, sempre haverá pedras. E deixa para nós a reflexão eterna: o que fazer com as pedras no meio do caminho? Desviar delas, tirá-las do caminho ou usá-las para a pavimentação do caminho?
E quem não tem pedras no meio do caminho: individualmente, familiarmente ou socialmente? E qual sociedade organizada não as tem também?
Recentemente, de uma década para cá, a grande pedra no meio do caminho é o que fazer com a liberdade de expressão nas redes sociais. Para o bem ou para o mal, ainda que dificilmente conseguiríamos precisar o que é o bem e o que é o mal, consumidores dessa liberdade se empoderaram e publicam toda sorte de conteúdos, sem profundidade, sem consultas, sem critérios, sem noção de veracidade, muitas vezes atingindo a ciência, o comportamento, a ética, o jornalismo e os políticos. A (des)informação voa, a incríveis milhares de cliques por minuto, lacrando, desinformando, manchando reputações, criando pânico e disseminando mentiras na esfera/espaço público. São prejudiciais em vários aspectos. Um bom exemplo disso foi o que aconteceu no auge da pandemia da covid 19 com relação à vacinação, colocando nosso país, campeão em outros índices desastrosos, com um dos maiores índices proporcionalmente ao número de habitantes de mortes na pandemia. No cenário mundial pululam exemplos, sustentados por teóricos da engenharia do caos e dos gabinetes do ódio que é preciso estar em cena, nas redes sociais, diariamente, sem preocupação com a qualidade do conteúdo. Ou melhor: a preocupação deve se dar com o grau de polêmica que o conteúdo poderá gerar, sob o olhar complacente e cúmplice de seus autores, geralmente da direita extremada, suja e violenta. Se a vacina continha um chip ou se poderia transmitir doenças mortais, essa conversa debochada fica para depois da avassaladora viralização da mensagem e do prejuízo causado.
Não abrirei nestas breves anotações qual a causa que leva tanta gente a se engajar nestes conteúdos e dar-lhes crédito, divulgando-os com prazeres guardados no riso dissimulado. Há diversas discussões sobre o tema, ainda em aberto.
O que cabe aqui são comentários sobre a necessidade de se regulamentar a tramitação desses conteúdos nas redes sociais e responsabilização por eles. A quem cabe apagar o fogo no palco e no picadeiro, abrandar as chamas do circo?
A discussão que vem sendo travada, ainda na esfera política, não tendo atingido a grande massa, passa pela questão da regulamentação da atuação das plataformas, sempre lembrando que estas são empresas privadas, com lucros absurdamente inimagináveis, que atuam livremente na esfera pública. Até o momento sem se preocupar, salvo quando são acionadas pela justiça, em se envolver com os conteúdos livremente veiculados em seu suporte tecnológico. A quem cabe essa regulamentação, sobre a responsabilidade dos conteúdos divulgados? Ao governo, com o estabelecimento de marco regulatório, como temos para diversas outras atividades, mais enxuto ou mais complexo? À própria plataforma, imaginando-se que o mercado do lucro possa se interessar por este tema espinhoso, mantendo sua política de moderação, ampliando-a? Ou a cada um dos usuários/consumidores, que deve se educar e se preparar para conviver com a extrema liberdade de qualquer expressão? São muitas questões de fundo que envolvem esta decisão, necessária e aguardada: a liberdade de expressão deve ser total? O lucro pode falar acima de tudo? A responsabilidade é de cada um, dentro dos parâmetros da legislação já existente, livrando as big techs dessa tarefa inglória de controle? O que deve ser matéria de observação e controle? Enfim... eis aí uma questão atualíssima que precisa ser discutida, com discussão ampliada para mais setores da sociedade civil.
Por outro lado, independente do avanço dessa discussão, há um equipamento da sociedade já disponível para levar adiante essa conversa: a escola. Liberada de amarras ideológicas redutoras (tipo Escola sem Partido), organizada em um movimento de qualidade de estrutura e funcionamento, a escola pode entrar nessa conversa, preparando seu ambiente para a livre discussão, para a circulação sem censura de conteúdos, para o pensamento crítico saudável e abundante. Focar a estrutura e o funcionamento da escola para este novo tempo – e que traz novas exigências à dinâmica da escola -, tempo em que a formação deve ser fundamental, sólida e a liberdade de conversa (de cátedra) ampla e irrestrita. O conhecimento deverá ser o foco do trabalho escolar, mediando o entendimento do mundo em que estamos. Currículo, conteúdos e equipamentos deverão estar a serviço da formação crítica do educando, atualizados, qualificados e livres de censura. Liberar a escola para o exercício do livre pensamento, algo que ela nunca viveu, para poder viver e entender e atuar na história destes nossos tempos, sob pena de, se assim não se constituir, ser ela mesma uma fake news de si própria, uma caricatura mal desenhada pelas mãos toscas dos burocratas da polarização, do amedrontamento, da superficialidade dos fatos e conhecimentos.
A aposta, antes que se decida qual o caminho da regulamentação das big techs, é que a escola se meta nessa conversa e se insira nessa conversa de separação do joio e do trigo, avançando, dessa forma, num desenho de educação política necessária.
Edson Gabriel Garcia, 2023, março, as águas nervosas e calores brutais mandam avisos que cuidar do ambiente é necessário para nossa sobrevivência.
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Educação e alfabetização política
Não é de hoje que a relação entre a educação praticada e o desenvolvimento da consciência política (Quem somos? Que sociedade queremos? Conhecimento para quê?) existe e é discutida, principalmente no que diz respeito à educação pública disponibilizada para a maioria da população. Foram tantas as reformas ao longo das últimas décadas, a maioria se perdendo em legislação e propostas de mudança curricular, aparentemente profundas mas superficiais, que nossa memória se aperta em encontrar lugar para armazenar este aspecto da história.
Afinal, qual é a escola que queremos e/ou precisamos? Nesta escola desejada e necessária cabe a alfabetização política? Seguem alguns pontos para reflexão.
Por onde começar uma reforma (ou uma revolução da escola pública): parcialmente, pelo currículo, como a maioria delas se deu ou por redefinições de sua estrutura e funcionamento, mais ampla e mais demorada, a começar por suas funções. Uma escola que se preocupa e se estrutura mais para ser assistencialista e símile de restaurante ou uma escola que tenha como foco conhecimento e suas significações? A escolha da concepção de uma escola é ideológica, não é neutra. Não é por falta de sentido ou por miopia política que os defensores da chamada “escola sem partido” empenham-se ardorosamente em aprovar aqui e ali, no país inteiro, essa armadilha que atenta contra a liberdade de expressão e a formação crítica dos educandos. A escola não é neutra, o conhecimento não é neutro e ação docente não deve ser neutra. Seu empenho é pela mordaça pedagógica, contra o saudável trânsito do livre pensamento na escola. Defensores dessa aberração pedagógica querem formar capachos obedientes e medrosos pois temem as mentes aguçadas e inquietas e perguntadeiras.
A esta escola se faz necessário um currículo coeso, flexível mas não fragmentado, curioso, antenado com o mundo em que vive. Interessante observar que muitas das chamadas reformas da educação pública brasileira começaram – e ficaram nisso – por reformas de currículo, reduzindo-se essas mudanças muitas vezes a listas de conteúdos e grades curriculares (guias curriculares – os verdões, temas transversais, itinerários formativos, e outros que ficaram no meio do caminho). O currículo sempre será relevante em uma reforma (ou revolução) educacional, mas nunca será suficiente se ficar só nisso. Há outros ingredientes. E nessa mesma batida, acoplado ao currículo, há que se pensar, para além das boas intenções no papel, na formação dos professores. Uma formação ordenada, contínua, coordenada e acompanhada, evidentemente sustentada por jornadas pedagógicas e salários dignos.
A estruturação da escola é outro aspecto importante e frequentemente negligenciado, talvez por ser o item que demanda mais investimentos e nunca se esgota. Talvez por isso, entre os políticos de baixa qualidade, exista uma máxima que diz que inaugurar uma obra é fácil. O difícil é mantê-la. Nesse sentido, foram raras as propostas de reforma da educação que se preocuparam com isso, salvo, aqui e ali, algumas trocas de nome dos cargos/funções (por exemplo, a inócua troca do nome de diretor de escola por gestor educacional – sem nenhuma consequência prática de resultado positivo). Para além dos educadores, o que mais a escola precisaria, hoje, em sua equipe? Na complexidade do mundo que vivemos, o que nossas escolas e nossos educandos demandariam, além dos educadores? Especialistas em tecnologia da informação? Psicólogos? Contabilistas? E como seria a gestão dessa escola? Fala-se tanto em gestão democrática, mas ao que parece, cada vez mais, as escolas e sua gestão acanhada e limitada, sem participação da comunidade, se limitam a cumprir ordens emanadas dos dirigentes, ensacando sua pretendida e anunciada autonomia em sacos de lixo descartáveis. No Estado de São Paulo, por exemplo, a gestão democrática e participativa vem sendo esmagada pelas últimas gestões de governo, ao mesmo tempo em que se desmonta, pelo enxugamento administrativo, os módulos de trabalhadores.
Nessa mesma direção, cabe uma observação bem atual: por que não substituir nossas escolas sucateadas e verdadeiros depósitos de alunos, que se substituem a cada quatro horas, em grupos de centenas? Por que não pensarmos em unidades pequenas, menores com capacidade para trezentos, um pouco mais, educandos, em que todos se conheceriam pelo nome e sobrenome? Passamos pelo menos duas décadas elogiando a Escola da Ponte, de Portugal e não conseguimos copiar parte importante de sua sucesso: uma escola pequena, cerca de trezentos alunos, com intensa participação da comunidade. Elogiamos, mas fica como um quadro na parede, sem reflexos práticos.
Por último, mas sem esgotar o tema, é necessário trazer a escola, no seu conjunto de estrutura, funcionamento, currículo, educadores e comunidade, para o que chamo de alfabetização política. A Política vem se tornando artigo imprescindível no menu de nossas aprendizagens pela importância das decisões tomadas no âmbito político que afetam todos nós. Não só por isso, mas sobretudo por isso. Não dá mais pra ficar criando muros de lamentação ou navegando inocentemente nas fake news que os segmentos nada afeitos à prática democrática veiculam com admirável competência. A escola deverá ser, em sua estrutura, sua gestão, seu currículo crítico e antenado com as demandas sociais e sua equipe, o cenário aberto, livre e crítico dessa situação. E isso passa certamente pelo conhecimento do que seja a Política, sua dimensão, seus movimentos, no âmbito do interior parabólica da escola.
Sêneca, filósofo e estudioso romano do comportamento humano, nascido a 5 anos antes de Cristo, dizia “se a pessoa não sabe para qual porto está navegando, não há vento favorável”. Mais recentemente, o inglês Lewis Carroll, múltiplo pensador, brincando com as esquisitices humanas, em seu maravilhoso Alice no País das Maravilhas, num dos diálogos entre as personagens afirmava que “para quem não sabe aonde ir, qualquer caminho serve”.
Pois é, se queremos saber pra onde vamos, o vento que nos auxiliará poderá ser a livre conversa sobre Política na escola.
Edson Gabriel Garcia, 2023, meados de março, apostando na força da educação para mudar a sociedade.
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Mentira tem perna curta?
O título da reflexão de hoje é uma apropriação do senso comum, arquivo interessante em que sempre encontramos base do bom senso. Trata-se de uma afirmação muito antiga, categórica, apostando na tibieza da mentira, em suas pernas curtas, de passos pequenos e alcance limitado. Algo como a verdade alcançando a mentira e impondo o caminho certo. Teria ainda um núcleo de bom senso (bom juízo) esta afirmação nos tempos atuais? Os tempos mudam, afirmam outras formas de pensamento. E como mudam, nestes nossos titubeantes presentes sem certezas fundamentais. Alguns aspectos merecem nossa atenção sobre isso.
O primeiro aspecto a considerar é exatamente sobre a velocidade de propagação da mentira, de antes e de hoje. Se antes, em tempos passados, a mentira tinha caminho curto à frente, até pelas dificuldades de deslocamento das informações, nos tempos atuais, a mentira se desloca com uma velocidade incrível, muito maior do que a verdade, com a tremenda disponibilidade de meios de transmissão. Talvez por isso, um outro dito popular, menos popular e mais baseado em pesquisas, diz que “a mentira anda mais depressa do que a verdade”. Algumas pesquisas dizem que até sete vezes mais depressa. Fica dessa forma explicado – não justificado – por que antes tínhamos um dia especial para comemorar a mentira, com se ela pudesse ser autorizada apenas nesse dia, o famigerado 1º. De Abril, Dia da Mentira, com letra maiúscula e direito às licenciosidades faltosas com a verdade. Hoje, diferentemente das décadas anteriores, dia da mentira parece ser, alucinadamente estranho e surpreendente, todo dia.
O segundo aspecto, muito ligado ao primeiro, é sobre a atualidade da mentira que, para efeitos cosméticos e paladares mais finos, ganhou o codinome de fake news. Associadas à velocidade espantosa das transmissões midiáticas possíveis nas redes sociais, as fake news se instalam acomodadamente num universo de ouvintes abertos a qualquer informação, sem preocupação com as fontes e com a qualidade da mensagem, dispostos eles próprios a continuar aceleradamente a linha de transmissão. O povoamento de informações, muitas vezes contraditórias, dependendo do ângulo em que se esteja na discussão, aos borbotões e em uma velocidade delirante, enseja leituras superficiais, aceleradas, descuidadas e sem profundidade. A aceleração dos tempos dá o tom da leitura. E o descomprometimento das grandes empresas de mídia das redes sociais, as big techs, com o controle do conteúdo, as fake news passam a ser a verdade que se quer aceitar.
Um terceiro aspecto, penso, é o deslocamento da mentira do campo da moral, outrora mais restrito a pequenos grupos e, na maioria das vezes, sem danos maiores, para o campo da Política. Com a proliferação das redes sociais (uma nova a cada dia...?) e o descontrole dos conteúdos, as fake news passaram a ter uma dimensão enorme na difusão de conteúdos nocivos ao coletivo, ao social, à ciência e à democracia, entre outros. O negacionismo da ciência, a pregação abundante de preconceitos, o elogio à força e ao autoritarismo, mesmo burro e pernicioso, o deboche das pautas de costumes progressistas, o apego à moral ainda atrasada de muitas religiões mancomunadas com a Política de baixa nível, a formação de competentes grupos de militantes digitais no sentido de perseguição e difamação pública, a crítica apodrecida contra a justiça, a imprensa séria e outras instituições dos poderes democráticos, entre outros, evidenciam que a mentira, aveludadamente apelidada de fake news, transferiu-se da moral para a arena pública da Política. E aí mora o perigo dos novos tempos, aceleradas, superficiais, líquidos e fragmentados, com a contribuição das fake news na montagem da percepção que se venha a ter do mundo, já polarizado e assentado nos que fazem da nova esfera/espaço público a arena de crescimento do ódio, do negacionismo, do preconceito e da violência e nos que ainda querem fazer desse mundo um espaço civilizado de convivência humana no que ainda resta de ambiente saudável.
Por último, uma observação, decorrente desse deslocamento da mentira para a Política: a necessidade urgente de se criar um marco regulatório para as plataformas digitais, empresas privadas que hoje reinam absolutas, faturando bilhões, locomovendo-se como prestadoras de serviços públicos. Se antes podíamos pensar que a educação escolar pudesse dar conta dessa demanda, é bom lembrar que esta área vem sendo pouco valorizada ao longo dos tempos e invadida, ela também, pelas plataformas digitais, sem controle amplo disso. Por essa razão, além das outras já apontadas, essa necessidade deverá se concretizar como política pública de estado e terá que lidar com duas questões fundamentais: a manutenção da liberdade de expressão (ainda há muito o que se discutir sobre esse tema) e a responsabilização pela publicação de conteúdos prejudiciais ao coletivo, ao social, aos valores democráticos e aos acertos da ciência, sem que isso afete a liberdade de acesso dos cidadãos à informação. Na prática, esse problema, que urge, coloca na mesa de discussões dois vetores aparentemente contraditórios: até onde vai a liberdade de expressão e o que fazer com as publicações nocivas e inescrupulosas?
E que essa discussão seja feita com profundidade e brevidade, com a participação de muitos setores da sociedade, sob pena de vermos cada vez mais a mentira esticando nocivamente suas pernas e dando passos maiores e de mais longo alcance. Progressistas e democratas de olhos nessa questão, uma das mais graves de nossos tempos, do mundo em que vivemos.
Edson Gabriel Garcia, 2023, março festejando democraticamente o dia das mulheres, todas.
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Anistias
O conceito de anistia voltou à cena política novamente. Um pouco de história faz bem e ajuda no entendimento e nas reflexões sobre o conceito.
A palavra ANISTIA chegou até nós vinda da língua grega, amnestia, traduzida como “esquecimento”. Por aqui, anistia é conceito mais presente em contextos políticos designando o ato de perdoar indivíduos de eventuais/potenciais crimes cometidos por eles. Com a anistia, não responderão por crimes na justiça e voltam a ter sua ficha criminal limpa e zerada. A anistia difere de indulto e graça, dois outros instrumentos de perdão, visto que a) a anistia se refere a crimes políticos e só pode ser concedida pelo Congresso Nacional, após aprovação de projeto de lei específico, e b) indulto (coletivo), como o natalino, e graça (individual) são concedidos pelo presidente, via decreto, e não zeram a ficha criminal dos perdoados, pois apenas perdoam o cumprimento da pena. Também difere da anistia tributária visto esta ser de outra natureza, relativa ao perdão ou à reacomodação de dívidas tributárias. De modo geral, esta anistia, concedida de tempos em tempos, principalmente às grandes empresas, que têm seus representantes nas casas legislativas, as chamadas bancadas, favorece os mais ricos, os poderosos e a elite. Pouco se fala disso, mesmo sendo este tipo de anistia perniciosa ao conjunto da população que depende de políticas públicas.
Anistia é um movimento político desde muito. Algo como uma trégua entre conflitos, um armistício em meio a guerras, uma bandeira branca, uma sinalização de diminuição das origens e consequências de um conflito pesado. Como toda negociação de paz nunca contemplará os dois lados totalmente, pois sempre haverá uma disputa de forças e as cartas colocadas na mesa evidenciarão essas forças. Embora a ideia preponderante no significado de uma anistia seja o “esquecimento”, este sentimento nem sempre se consolida. Um exemplo histórico disso foi a anistia brasileira concedida por lei aprovada no Congresso Nacional, e sancionada pelo Presidente da República, em 1979. Essa lei anistiou presos e exilados brasileiros, contrários à ditadura militar, mas incluiu no balaio de gatos os representantes do regime ditatorial que, em nome de uma tal segurança nacional, torturaram e mataram de forma cruel centenas de oponentes. Até hoje, mais de quarenta anos depois, os torturadores, praticantes desse crime hediondo contra a humanidade, não foram punidos. Alguns deles, inclusive, de forma covarde e provocativa, são evocados por tristes figuras políticas da atualidade. A tortura, por ser ato de extrema covardia, que atenta contra a dignidade da pessoa, e não lhe dá nenhuma oportunidade de defesa, é algo que não se pode deixar em esquecimento. É provável que a anistia de 1979, não tão distante de nossa memória, mas quase quarenta anos depois posta em esquecimento, tenha deixado crimes imprescritíveis fora da regra por conta do jogo de forças políticas em ação no cenário político da época. As Forças Armadas (armadas contra quem?) começavam a planejar sua saída do governo, visto que a ditadura cambaleava, mas ainda estavam no poder e faziam do medo de uma recaída do regime uma arma potente contra os argumentos das forças democráticas. Talvez tenha sido a anistia possível naquele momento.
A Constituição Federal em vigor tratou do assunto, dando competência ao Congresso Nacional, no artigo 48, inciso VIII, de aprovar anistias.
Hoje, nesta nossa atualidade líquida e plena de acelerações virtuais, em que o esvaziamento da memória histórica é quase uma certeza fatal, a anistia é um tema um tanto polêmico. De um lado, pelas narrativas inconsequentes de quem faz o que faz e depois busca o perdão, sabendo que ele virá, de uma forma ou de outra na figura do esquecimento ou da leniência da legislação, alegando para isso uma paz (inexistente nas disputas onde a polaridade é presente); e, de outro lado, pelos argumentos de que a punição dos autores de atos terroristas, contra a vida, etc. não podem ser esquecidos e devem ser punidos para que não caiam na vala comum do esquecimento histórico. De um lado, os defensores de anistia ampla, geral e irrestrita (mesmo que a memória doa no futuro); e, do outro lado, os defensores de punição dos que cometem crimes hediondos, atentados e que tais, sem anistia para esses criminosos.
Eis o que está posto quando o assunto é anistia.
Encerro estas reflexões com uma frase do escritor checo Milan Kundera, exilado na França, autor do interessantíssimo livro A Insustentável Leveza do Ser, que pontua: “a luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”.
No fundo, o que está mesmo em jogo na anistia é a luta pelo poder, em que a memória histórica (afinal, seria verdade o senso comum corriqueiro entre nós que “somos um país sem memória”??) disputa com o esquecimento a composição de nosso futuro.
Edson Gabriel Garcia, 2023, deixando para trás um fevereiro chuvoso, precursor das águas de março, estas trazendo problemas causados por nossa imensa desigualdade.
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Estado Laico: disputado pelas forças religiosas
A Política, em uma democracia, estará em movimento sob, pelo menos, duas máximas: a) tudo em Política é muito dinâmico e b) a base de tudo é o diálogo (a conversa, a negociação). Razões pelas quais penso poder afirmar que o Estado (aqui entendido como o conjunto do território geográfico, o aparato de leis, os três poderes e as instituições e serviços públicos, os valores e o comportamento do seu povo, sem se confundir com o governo, visto este ser temporário) sempre estará em disputa. As diversas forças – e suas respectivas ideologias e visão de mundo – sempre estarão em debate, de várias formas possíveis, em busca do domínio do aparato do Estado para exercer o seu mando, o seu domínio. Difícil creditar às personagens dessa disputa quais interesses profundos os movem: se acham ungidos? entendem-se escolhidos? tomam para si um patriotismo vesgo? interesses econômicos os guiam? egos inflados pelo desejo do poder? Afinal, o que leva um homem/grupo a desejar tanto e lutar tanto, com todas as armas disponíveis, violentas, inclusive, pelo poder e ocupar as instituições do Estado para fazer valer o seu domínio e poderio? O poder, pode ser a resposta mais ajustada.
Sendo assim, o Estado, em permanente disputa, pode se apresentar como:
-Estado teocrático
-Estado autocrático
-Estado democrático laico
O Estado teocrático pode ser definido como o Estado que toma suas decisões políticas a partir do crivo de suas regras religiosas, da religião oficial. São as regras comportamentais religiosas que dirigem as decisões desse Estado. O Estado do Vaticano talvez seja o melhor exemplo. E os estados islâmicos que submetem suas decisões políticas aos preceitos do islamismo. A Turquia, disfarçada de democracia, é um exemplo de Estado teocrático, assim como o Irã, governado por um aiatolá (hierarquia religiosa), são fotografias claríssimas desse tipo de Estado.
O Estado autocrático é o Estado autoritário, ditatorial, governado com mãos de ferro, muito controle, violência, censura e sem liberdade de expressão por um só governante (e seus asseclas apoiadores). Muitas vezes este tipo de Estado mantém algumas características (falsamente) democráticas mas não conseguem esconder seu caráter autoritário, excesso de controle e vigilância e medidas repressivas de toda natureza.
O Estado democrático laico pode ser definido como o Estado que sustenta a separação oficial entre Estado e Religião. Ao mesmo tempo em que garante a liberdade de crença para todos também garante a não influência ou interferência da Religião, qualquer que seja ela, nos destinos traçados pelo Estado. Um Estado é laico quando garante a todos a liberdade de crença/fé religiosa sem dar preferências a indivíduos ou crenças religiosas específicas. Isto não significa que o Estado é ateu ou agnóstico: apenas cria o espaço de liberdade religiosa para todos os seus cidadãos.
No entanto, como postulamos acima, a Política é dinâmica e está sempre em movimento, as conversas estão sempre postas na mesa, os interesses em combustão. Interesses religiosos e suas respectivas moralidades estão à espreita para disputar pedaços do Estado laico e nele instalar sua visão de mundo, fazendo sobrepor ou crivar as decisões políticas pelas telas da Religião. Esta disputa não é recente, pelo contrário, data de centenas de anos. Separar o Estado da Religião se confirmou como opção política acertada desde os tempos da Revolução Francesa (1789-1799), com medidas de nacionalização dos muitos bens da Igreja, tutela da Igreja ao Estado, criação do ensino público laico, garantindo liberdade de crença e de filosofia. Ainda recentemente, em 2004, a França aprovou uma lei (polêmica, mas interessante) proibindo vestes religiosas em seus estabelecimentos públicos de ensino. Este movimento da Religião em busca de nacos do Estado laico ainda se faz presente, principalmente em democracias relativamente novas e não tão fortalecidas, através de enormes bancadas religiosas nas casas parlamentares, na defesa de seus interesses econômicos (como, por exemplo, o não pagamento de impostos por seus templos e propriedades, a criação da figura da filantropia em escolas confessionais e pela tentativa nunca exaurida de se criar o componente curricular “ensino religioso” nas escolas, entre outros modos de disputa). O Estado é laico e o espaço público também o deve ser. Justifica-se a colocação de cruzes ou crucifixos, símbolos representantes da até então religião católica, predominante no país – com a perspectiva de que as evangélicas, representadas pelo crescimento vertiginoso das neo-pentecostais, soprem presença nos seus calcanhares?
Igrejas têm o seu papel e espaço, prioritariamente no foro privado de cada um. O Estado laico também tem o seu, predominantemente público. E os cidadãos têm sobretudo o direito a escolher livremente, sem nenhum enquadramento moral e religioso (muitas vezes duvidoso), como quer pensar, votar, divertir-se, trabalhar, expressar-se, amar, constituir família, etc.
Nosso desafio, no momento, é não permitir que as crenças religiosas interfiram nas políticas públicas do Estado laico e não forcem essas políticas sociais, principalmente na pauta dos costumes, a se curvarem diante do crivo do atraso dessas condutas. Estado laico democrático não combina com a interferência religiosa sobre decisões políticas.
Edson Gabriel Garcia, 2023, fevereiro, soprando cinzas do atraso, em busca das brasas da democracia.
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Forças Armadas: armadas contra quem?
Tema de reflexão pesada, espinhosa ou cascuda, como se diz pelaí.
Com a liberdade de expressão que a Constituição Federal me permite e com o costumeiro cuidado em costurar ideias esparsas e soltas que encontro nas conversas e nas leitura do povo brasileiro, arriscarei alguns fiapos de conversa que sirvam para desencadear outras reflexões.
Tratei superficialmente do tema no texto anterior, ao falar da tal garantia da lei e da ordem, estabelecida constitucionalmente e mais ampliada, nas mãos das Forças Armadas. Forças Armadas, constituídas das três forças: Aeronáutica, Marinha e Exército, de bonitos uniformes costurados em tecidos de alta qualidade e bordados não menos simbólicos e carregados de energia visual intensa. Vivemos, sabemos, também, de muita informação simbólica, de muitos rituais, demonstrações de força e ritos pouco úteis ao cotidiano da apertada vida da maioria de todos nós. No geral, as armas (que embutem a força da violência) e a simbologia dos rituais (que encantam mas de rara serventia) servem para quê?
Historicamente a definição do papel que cabe às Forças Armadas é definido pela Constituição e por outros documentos legais infraconstitucionais (leis/decretos), com base em um corpo estável, disciplina e hierarquia. Nesta última Constituição o assunto é também tratado e, lá pelas tantas, no artigo 142, institui para além da defesa da Pátria, dos poderes constituídos, a garantia da lei e da ordem. Para alguns analistas, este pequeno artigo, ensejador de clima pré-golpe, foi pensado como um suposto quarto poder, poder moderador, que em tese não existe constitucionalmente (são três os poderes do nosso Estado Democrático de Direito, como amplamente sabemos). Este lusco-fusco de poder a maior não melhora o desempenho das Forças Armadas e desenquadra sua existência constitucionalmente ou, no mínimo, tira o foco de sua função precípua, a defesa – e não o olho belicoso de ataque. Esta interpretação de que a garantia da lei e da ordem, pelo artigo 142, estendido aos chefes dos três poderes, é equivocada e serve apenas para reforçar ideias de golpistas, de políticos incapazes de lidar com os conflitos próprios da democracia, que preferem politizar a desejada isenção das Forças Armadas incitando-as à inobservação de suas obrigações constitucionais e levando-as a sonhar com um poder que é civil e não militar.
Em razão deste desvio de funções, ainda é muito recente em nossa lembrança a atuação das forças armadas no golpe militar (apoiado por civis e alguns religiosos de bons costados) de 1964, sob o tosco argumento de nos proteger do comunismo (que nem de longe era ameaça à frágil democracia brasileira no governo do presidente João Goulart – que assumiu após melodramática renúncia de Jânio Quadros e governou algum tempo em meio a uma forçada e fracassada tentativa de parlamentarismo). Pois bem, o que se viu e viveu e a memória tem pra contar é um dos episódios mais violentos no uso de forças armadas contra o próprio povo brasileiro, principalmente entre os que tentaram lutar pela democracia. Artistas, intelectuais, educadores, estudantes universitários e políticos que tentaram se opor à força descomunal da ditadura imposta tiveram aniquiladas suas vozes e vidas, aos punhados. Forças Armadas armadas contra os brasileiros e a favor do capital e ideologia estrangeiros, da corrupção interna e pelo calaboquismo violento. Essa relação das Forças Armadas brasileiras que se prezam, não pelo pleno respeito à institucionalidade, mas ao gozo de se oferecer como guardiã dos problemas políticos internos – sem que isso seja de sua alçada – precisa ser revista. Assim como precisa ser revista a relação do Estado com a Religião. O Estado tem que ser “estatizado” e “laicizado”, isento de se flexionar diante da força da crença, qualquer que seja ela, e da suposta força armada das Forças Armadas. Política partidária ou política institucional não combina com o que o texto constitucional reserva a esta instituição. E, nessa direção, a presença sapeca do artigo 142 na Carta Magna é, mais do que garantia de segurança interna da Pátria, uma provocação daquele estilo bem moleque, tipo “se você não se comportar direitinho, eu estou de olho!” Para além dessas considerações sobre a real necessidade de um imenso poderio, supostamente um poder moderador, de vara na mão para punir os que saírem das “quatro linhas”, sem importar muito de quais quatro linhas estejamos falando, tarda a discussão da constitucionalidade das Forças Armadas , principalmente diante do desenho do mundo em que vivemos hoje, aceleradamente belicoso, com países se armando mais no poderio das armas de longo e preciso alcance do que na monumentalidade ostensiva de homens e equipamentos – que mais fazem ameaçar a liberdade de expressão democrática interna do que outra coisa. E mais: qual o custo desse poderio ameaçador? Qual o tamanho ideal? Quais as benesses e privilégios salariais e previdenciários sobejam as patentes? Tudo escondido sob a intocabilidade das Forças Armadas, armadas para si próprias e contra o desejo inequívoco de expressão democrática. Caberia uma CPI com o mote: Forças Armadas: armadas como e contra quem?
Uma última observação, pouco mais do que isso. Bom lembrar sobre a isenção política necessária das Forças Armadas, a figura do General Henrique Baptista Duffles Teixeira Lott (um ferrenho anticomunista mas irretocável respeitador dos ideais políticos diferentes dos seus) e seu Movimento 11 de Novembro (1955), também conhecido por Movimento de Retorno aos Quadros Constitucionais Vigentes, mantendo, ele, no comando do Ministério da Guerra, e. portanto. de posse do poder militar, o poder civil ao garantir que não fosse efetivado golpe articulado por outros políticos e militares para que presidente e vice ( Juscelino Kubistchek e João Goulart) eleitos democraticamente tomassem posse em janeiro de 1956. Um bom estudo de caso do papel das Forças Armadas.
Armadas para defender a pátria!
Edson Gabriel Garcia, 2023, fevereiro que aposta na consciência política e no conhecimento histórico para garantir a lei e a ordem democrática.
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Dois Estados (o Céu e o Inferno) e um Purgatório
Com frequência o noticiário político se reporta a dois tipos de Estado possíveis, o Democrático e de Direito e o de Exceção, e a uma certa condição de Garantia da Lei e da Ordem. Metaforicamente, o Céu, o Inferno e o Purgatório. O necessário, o indesejado e o de ameaça. Vejamos um pouco de cada um deles, embora já os tenhamos abordado em outros textos. Nunca é demais trazer essas discussões à lembrança, realçar seus méritos, regar com água da esperança e da sabedoria.
Primeiro, algumas considerações sobre o conceito de Estado, aqui usado, diferentemente de como usamos para nos referir a cada uma das regiões políticas da federação. Um Estado, para a discussão de agora, significa o conjunto do seu território geográfico, seu aparato de leis, instituições e serviços públicos, os valores e o comportamento do seu povo. O Estado não se confunde com o Governo, pois este é passageiro – tem mandato temporalmente definido – e aquele é mais duradouro. O Estado sempre será um agente de poder, de mando, de dominação. Representa o poder político e se sobrepõe aos cidadãos e cidadãs (democraticamente ou autoritariamente). Um Governo exerce temporariamente o poder de mando, em nome do Estado. O Estado pode exercer o seu poder de mando de modo democrático (Estado Democrático de Direito), com base na harmonia dos três poderes constitucionais, mesmo havendo discordâncias entre eles (Executivo, Legislativo e Judiciário) ou pode exercer o poder pela força, pela exceção, concentrando o poder nas mãos de uma só pessoa (ditador) ou de um grupo (geralmente militar, com apoio das elites econômicas dominantes). Esse poder de Estado é definido e sustentado pela Constituição Federal. A Constituição define e estrutura o Estado, e o Estado constituído se garante na Constituição e na sua defesa e cumprimento, pois esta é a lei estruturante maior de uma nação. Por isso nos referimos a um Golpe de Estado, quando ocorre uma mudança brusca de forma de governo, uma ruptura, saindo de um Estado Democrático de Direito (em que os direitos políticos, civis e sociais deixam de ser respeitados) mudando para um Estado Ditatorial (em que todos os poderes são concentrados na mão de uma pessoa, civil ou militar, autoritariamente, e os direitos são abolidos). O Estado Democrático e de Direito se sustenta no cumprimento da Constituição e exerce o poder em nome da sociedade como um todo. Nessa condição política, todos direitos são preservados, a liberdade de expressão e a pluralidade de pensamentos prevalecem.
Em oposição ao Estado Democrático, que segue a Constituição e se pauta pela harmonia dos três poderes, há o Estado de Exceção, caracterizado pela censura, pela prisão de quem pensa ou fala diferente, pela eliminação de quem se opõe, pela opressão, pelo medo imposto e pela falta de liberdade, pela tortura e morte aos seus opositores. O Estado da Força, de Exceção, ignora a divisão dos três poderes, rompe com as normas constitucionais (ou impõe uma Constituição autoritária) e concentra as decisões, o poder, a força e o mando, não abre espaço para ouvir a Sociedade Civil. São eles governando para nós, sem nós. Que fique claro que apenas uma Assembleia Nacional Constituinte, eleita democraticamente pelo voto do povo, tem o poder de alterar a Constituição ou de escrever outra carta.
Entre o Estado Democrático de Direito (regime democrático) e o Estado de Exceção (regime ditatorial) há a possibilidade de chamamento de uma condição de Garantia da Lei e da Ordem. O que aqui estou chamando, imprecisamente, de Estado de Garantia da Lei e da Ordem, não é exatamente um formato de Estado, no sentido definido acima, mas de uma condição do Estado, algo parecido com o Purgatório, onde as coisas ficam "purgando", esperando o clima (in)certo ou fomentado de um (in)certo momento para se apresentarem. Como se vivêssemos em risco e precisássemos de uma garantia de lei e de ordem para nos proteger de algum perigo. Esse papel foi, ao longo de todas as nossas constituições, reservado às Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica), como se estas fossem um certo poder moderador e pudessem garantir a lei e a ordem. Recentemente, nesta última Carta Magna, aprovada em 1988, mais uma vez este papel foi atribuído aos militares e, desta feita, com mais amplitude, conforme o artigo 142 da atual Constituição Federal, delegando o direito de acionar um "Estado" de Garantia da Lei e da Ordem aos três poderes constituídos. Neste sentido, está implicitamente atribuída às Forças Armadas a possibilidade de intervenção militar internamente. Isto historicamente se chama "real possibilidade de golpe de estado", se fomentado por governos autocráticos. Como se vivêssemos em um "Purgatório", expiando nossos erros, à espera da santa salvação pela força militar. E o que sempre se viu na história política brasileira recente foi este suposto cuidado com a segurança interna ser posto a serviço das elites, contra o povo e contra setores menos favorecidos e mais explorados da sociedade. Nada menos democrático do que essa aura suspensa a nos ameaçar, esta tutela protetora dos militares sobre políticos e civis. Isto não combina com democracia e é incompatível com a prática republicana e com a soberania do povo. Ameaças não combinam com democracia.
Neste sentido, os dois Estados e a condição da Garantia da Lei e da Ordem se avizinham, se tangenciam, negociam entre si, mesmo que à base de suspeitas, ameaças e conspirações veladas ou não, transitam de um lado ao outro. Disputas, desejos, conspirações, acordos, notícias, tudo faz parte da implantação de um ou de outro Estado. Nenhum desses modelos é absolutamente limpo e puro ou está isento das manobras e intensões do outro. Por isso é possível arquitetar um Golpe de Estado, silencioso, dentro de um Estado Democrático e de Direito ou se fermentar a derrubado de um Estado de Exceção dentro do próprio. São ações políticas levadas por homens e mulheres, por sua ideologia e seu modo de agir e pensar. O que cabe a cada um de nós é a atenção às informações e a clareza da consciência política: opção pelas liberdades do Estado Democrático de Direito, o asco pelo Estado de Exceção e o afastamento imediato da condição suspeita de Garantia da Lei e da Ordem.
Edson Gabriel Garcia, 2023, fevereiro chegando, os tempos mudam e nossa participação consciente é determinante.
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Alfabetização Política
O conceito de alfabetização está visceralmente ligado à educação formal, à escola como a conhecemos, ao aprendizado da leitura e escrita. A palavra é composta de dois significados, da língua grega: alfa e beta. São duas letras do alfabeto grego. Daí que, junta aqui e junta ali, mais o sufixo “ação”, deu nesse conceito: alfabetização é o conjunto de ações educativas para introduzir o cidadão na aprendizagem da leitura e da escrita do idioma pátrio. Ao longo dos anos, o conceito passou por novas leituras e novos entendimentos, deixando de se referir exclusivamente à aprendizagem das letras para a prática da leitura e da escrita. Sobretudo, no Brasil, com as reflexões profundas feitas pelo educador Paulo Freire, em que a alfabetização passou a incluir o “dar significado” ao que se lê e se escreve. Não mais um mero processo de decodificação e codificação das letras e palavras e frases, mas principalmente, dar significado, construir uma significação assentada na realidade, ao que se lê e se escreve.
Da educação formal, escolarizada, alfabetização generalizou-se para outras esferas da aprendizagem. Hoje, por exemplo, falamos em alfabetização tecnológica para indicar o conjunto de aprendizagens para poder entender e se locomover com mais precisão e acerto no mundo moderno digital. A mesma dificuldade que um analfabeto das letras tem para ler a indicação do ônibus que ele precisa tomar é semelhante à dificuldade de se movimentar nos aplicativos, dos serviços públicos, por exemplo, para exercer o direito a esse serviço.
Da alfabetização vamos ao conceito de analfabeto. De novo, os processos linguísticos nos socorrem: o prefixo a(n) é indicativo de negação. Ou seja: (an)alfabeto é a pessoa que é desprovida da educação alfabetizadora. E todos sabemos as dificuldades cotidianas por que passam os analfabetos no cotidiano da vida, desprovido de um dos equipamentos sociais mais completos de que se pode ter que é a leitura e a escrita. O nosso maior educador de muitos tempos, referência mundial em educação, Professor Paulo Freire, sempre deixou muito clara “a importância do ato de ler”, título de um livro clássico seu, sem, no entanto, evidenciar que tão importante quanto ler signos linguísticos é ler os sinais do mundo (que precedem a leitura e escrita dos signos verbais). No entanto, cada vez mais, leitura de mundo e de signos verbais se completam, se autodeterminam, fazendo dessa relação a simbiose da linguagem e do pensamento. Em nossa sociedade atual, cada vez mais complexa e letrada, o analfabetismo é um indicador de ausências de direitos da cidadania. Daí o esforço de todo governo decente em erradicar o analfabetismo.
Do analfabetismo da leitura e da escrita nos encontramos com o “analfabetismo político”, bem delineado no poema O ANALFABETO POLÍTICO, de Berthold Brecht (1898/1956), cujos versos iniciais sustentam: “O pior analfabeto é o analfabeto político./ Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos” E segue sua determinação poética em “O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política”, encerrando o poema com as consequências da ignorância política para todos – não só para o ignorante.
Nessa direção, a reflexão proposta nestas anotações é: como erradicar o analfabetismo político? Arrisco algumas anotações (que poderão, certamente, ser ampliadas pelos leitores).
-Dotar a escola de uma disciplina, através da qual sejam estudados os conceitos da Política, da Filosofia, da Sociologia, algo parecido como uma “educação para a cidadania”;
-Incentivar nas escolas a criação de instituições de discussões políticas abertas e sem censura, tais como, o grêmio estudantil e o conselho de escola (este substituindo a velha e ultrapassada APM);
-Criar mecanismos de incentivo a debates políticos democráticos nas escolas;
-Cobrar dos partidos políticos a responsabilidade em oferecer cursos de iniciação política, com recursos públicos do fundo partidário e, da mesma forma, a utilização de recursos do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador) para fins semelhantes;
-Incentivar a criação e incentivo de Escolas de Parlamento, nos poderes legislativos (municipal, estadual e federal), bem como projetos que aproximem os jovens da Política;
-Criar campanhas nacionais, na mídia, incentivando a participação em movimentos políticos regionais e reforçando a ideia de que Política diz respeito a todos nós;
-Criar mecanismos de participação em decisões políticas parecidas com o Plebiscito e Referendo, mas mais ágeis e frequentes do que estas;
-Criar uma linha de crédito especial para a publicação de livros de “alfabetização política”.
Estas são algumas ideias iniciais para o que estou a chamar de “alfabetização política”. São propostas iniciais e podem ser acrescidas de outras e ampliadas em seu sentido. O importante é tentarmos eliminar as ideias de que a) a Política é apenas para políticos, b) a Política é coisa suja, e c) a omissão de participação é mera questão de foro íntimo. E, dessa forma, a) reforçarmos a ideia de Política é para/de todos, b) é possível, necessário e interessante estudar a Política e dela participar e c) conhecer mais e participar da Política é um dos instrumentos de exercício da cidadania dos mais necessários em tempo sombrios.
Política e Cidadania estão umbilicalmente imbricadas.
Edson Gabriel Garcia, 2023, janeiro de aniversário de Sampa, de onde escrevo estas reflexões, e contemplo possibilidades de tempos abertos e ventos suaves e mais agradáveis.
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Entre as quatro linhas: metáforas políticas
O mundo nos é explicado por metáforas, escreveu certa vez, o poeta Carlos Drummond de Andrade, em uma de suas crônicas de deliciosa prosa. Assim é: raciocinamos, muitas vezes sem perceber, por metáforas, e estas ficam tão íntimas do cotidiano da linguagem que nem nos damos mais conta disso. Eis o caso de uma das metáforas mais presentes, para além de assustadora e feroz devoradora: o leão, símbolo metafórico das mordidas ferozes e vorazes e insaciáveis do imposto de renda. Toda metáfora é um recurso retórico da língua que relaciona dois termos/palavras/vocábulos que de alguma forma podem ter significados comuns postos na relação. Permite que se aproprie de um aspecto do significado de um dos termos dessa relação linguística e que possa ser usado no significado do outro termo, em contextos apropriados. Assim, o Leão, feroz em sua força e em sua mordida letal, tem esse significado emprestado metaforicamente para os confiscos do imposto de renda. Passamos a usar “o leão”, metaforicamente, em vez de “confisco do imposto de renda”. De certa forma, a metáfora, abranda, com o novo significado, a dureza do termo anterior e nada há que se possa criticar o uso desse recurso, dado que faz parte da dinâmica da língua. Como esta, outras tantas metáforas são produzidas no discurso político cotidianamente, algumas das quais passam a fazer parte do conjunto de conceitos políticos – até facilitando o entendimento do seu significado. É o caso, por exemplo, de “picareta” (o político que está mais preocupado em cavar o seu próprio sustento), de “herança maldita” (significando os problemas de um governo anterior deixados para o próximo governo resolver), “arrumar a casa” (no sentido de colocar em ordem as finanças do governo), “mostrar a cara”(significando a necessidade de um governo expor sua plataforma de governo mais claramente) ou “mamar nas tetas do governo” (ação do político que só quer benefício pra si próprio ou pra sua família ou grupo), entre outras, mostram como o recurso à metáfora é largamente usado na Política.
Assim também é quando ouvimos ou lemos referências às “quatro linhas”. Buscamos emprestado no esporte de preferência nacional, o futebol, essa expressão, para transportá-la à Política, com o sentido de que o político tem que agir no campo de jogo, dentro dos limites propostos por seu regramento. No caso do jogo democrático, dentro do que prescreve nosso desejado livro de cabeceira, a Constituição Federal. No entanto, por permitir muitas significações as “quatro linhas” ensejam a duas possibilidades, as quais comentamos a seguir:
Jogar dentro das “quatro linhas” pode metaforizar:
a) desrespeitar o juiz, questionando qualquer arbitragem e toda regra do jogo, escrita e combinada;
b) catimbar, fazer cera, esconder a verdade do jogo;
c) atingir o adversário com violência;
d) não respeitar o resultado do jogo, efetivando toda sorte de protestos; e
e) jogar a torcida, emocionalmente envolvida no jogo, contra o juiz e contra o adversário, podendo levar à violência incontida dentro e fora do campo de jogo; ou
a) respeito às regras do jogo, de olho no espetáculo que pode ser proporcionado à torcida;
b) jogar sério, respeitando o adversário, entendendo que há modos diferentes de se organizar o jogo, sem violência e sem catimba;
c) respeitar o resultado do jogo, visto que é no campo que se ganha a partida;
d) compor com a torcida uma festa democrática de cultivo ao respeito às regras do jogo, ao adversário e ao resultado.
Relacionando os significados, jogar nas “quatro linhas” pode, portanto, dependendo do seu falante, significar:
a)uma forma autocrática de fazer o jogo de modo próprio, com suas regras, ignorando ou menosprezando o adversário (o que pensa diferente), ignorando diferenças, freios e contrapesos, e quaisquer outros poderes constituídos e quaisquer instrumentos constitucionais escritos e aprovados democraticamente. Um modo de querer ser o dono do jogo, da bola, das regras e dos comportamentos, um culto ao poder centralizado e autoritário que nega outras vozes, mesmo estabelecidas pela ciência; ou
b)uma forma democrática de se jogar com as regras estabelecidas constitucionalmente, respeitando-se o adversário, o tempo e os resultados políticos e a participação das pessoas nas decisões, escolhas. Um modo de dividir o poder, saber da importância da alternância de ocupação do poder, do valor das múltiplas vozes e da liberdade de expressão.
Sendo assim, havemos de nos ocupar em entender e explicitar metáforas, pois como outras palavras e expressões, também as metáforas explicam o mundo, o modo de entender a vida e olhares políticos sobre o poder. Também as metáforas escondem intenções escorregadias que podem levar ao entendimento diferente do que realmente o interlocutor diz e pensa. Jogar dentro das “quatro linhas” pode pois ser uma mentira retórica. Até porque dentro desta metáfora cabe uma série de ações negacionistas, autoritárias, violentas e desrespeitosas em muitos sentidos que negam exatamente o que se quer (cinicamente) dizer.
E nesse caso, o antídoto é a militância informada, atenta e participante. Contra os males das metáforas avessas, democracia nelas.
Edson Gabriel Garcia, 2023, janeiro calorento e chuvoso, com a casa sendo colocada em ordem, sob a espreita de novos e bons tempos.
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Governo de Coalizão
O tema “coalizão” é recorrente em Política. Tratamos outras vezes desse assunto, inesgotável em suas múltiplas facetas, quando diferenciamos “coalizão” de coligação e quando falamos do tema “negociação”. No texto BREVES ANOTAÇÕES POLÍTICAS 66, fazíamos as seguintes observações:
COLIGAÇÃO
O prefixo “co” tem o sentido de concomitância, companhia, simultaneidade. Coligação, assim como coalizão, tem esse sentido de companhia, de agrupamento, de conjunto. Coligação é, portanto, em Política, um agrupamento de partidos em uma eleição, com vistas a formarem um grupo de partidos que disputarão cargos conjuntamente. Uma coligação de partidos para disputar uma eleição proporcional significa que a soma dos votos de todos os candidatos que formam a coligação é que indicará quantas cadeiras parlamentares cada coligação terá. Coligação, na atual conjuntura política, diz respeito a uma conveniência específica para disputas eleitorais.
COALIZÃO
Coalizão tem o mesmo significado de coligação. A diferença é de ordem prática, uma vez que a coalizão se dá no sentido de tornar a governabilidade (ou governança) de um país, estado ou município coletiva e cooperativa, com a participação nesse governo dos vários partidos da coalizão.
Coalizão vem do francês e agrega uma série de significados possíveis, alguns dos quais indicamos: trato, acordo, acomodação, combinação, compromisso, contrato, convenção, convênio, decisão, engajamento, federação, entendimento, harmonia, conclave, conciliação, associação, e uma longa lista que cabem num comprido etcccccc. Aproveitando estes diversos sentidos que cabem na palavra “coalizão”, podemos entender melhor alguns aspectos do seu significado na prática política. Primeiramente, podemos afirmar que a prática da “coalizão” sempre se deu em Política, principalmente nos regimes democráticos (presidencialistas ou parlamentaristas) pois é a base da Política: o acordo para a divisão do poder. Uma passagem interessante do governo de Getúlio Vargas, de quem se fala muito de sua capacidade de “acomodação/combinação”, ao responder a seus correligionários, que demandavam ocupar mais cargos no governo, que eles já estavam no poder e bem representado pelo próprio presidente. A luta (mesmo interna) pelo poder é uma das caras mais visíveis da prática política democrática.
Em eleições mais apertadas, nas polarizadas, por exemplo, é natural a construção de uma frente ampla, com inúmeros partidos na coligação para a disputa do pleito eleitoral. Em caso de vitória, a coligação se transforma na necessária “coalizão”. Explicações mais sofisticadas para a mesma “coalizão” falam de governabilidade ou de governança. É a mesma base de sustentação: divisão do poder com os aliados, substantivados na composição do governo, principalmente dos cargos do primeiro escalão, com representantes dos partidos da coligação que possibilitou a vitória. Presidencialismo (no caso do governo federal) de “coalizão”: a acomodação discutida, pensada e planejada dos representantes dos partidos aliados nos cargos do governo, com vistas a uma administração partilhada e combinada, tendo em vista objetivos comuns.
Um governo de “coalizão”, de cujas dificuldades falaremos adiante, não pode se sustentar apenas no partilhamento do poder. Tem que centrar forças no compromisso dos aliados nos mesmos objetivos traçados em um Programa de Governo (melhor seria se fosse um Programa de Estado). Esta base de negociação, centrada nos pilares do Plano de Governo, será o prumo diretor das conversas, a biruta indicadora do rumo do sopro do vento. De modo indireto, mas sustentador da continuidade da “coalizão”, essa base de negociação deverá garantir no parlamento (no caso federal, no Congresso Nacional) os votos necessários dos parlamentares nos processos políticos do governo que tramitarem nessas casas (Senado Federal e Câmara dos Deputados). Difícil, mas necessário e possível.
É natural que dificuldades ocorram e gerem desconforto político em uma “coalizão”. Quem disse que é fácil? Em uma metáfora tosca, pode-se afirmar que a construção e sucesso de uma “coalizão” é parecido com a necessidade de se trocar o pneu furado com o veículo em movimento. O coordenador dessa “coalizão”, sempre um político hábil e experiente, um bom negociador, terá olhos suficientes para lidar:
a) com os não contemplados e, certamente insatisfeitos (que meros tapinhas nas costas não afugentarão o desconforto);
b) com os apetites políticos pessoais (que nem sempre ficam guardados);
c) com os diversos modos de pensar a sociedade e sua relação com o governo: e
d) com a expectativa que se tem de um governo, suas promessas e sua prática, seus acordos e o rumo da vida social, econômica e política do país (algo que, embora não seja concreto, essa expectativa atua nas pesquisas de opinião do desempenho de um governo – que, por sua vez, interfere, de volta, nos rumos da administração). Nada, no entanto, que não faça parte da política.
Lidar com interesses pessoais, com o que quer, pede e sonha o povo de um país, com as transversalidades dos costumes e com as frentes de oposição, sem perder de vista o cenário internacional, eis o campo onde se dará a governabilidade de uma “coalizão”. Assim é a Política.
Edson Gabriel Garcia, 2023, janeiro esperançado avança em meio às possibilidades de construção de novos sonhos.
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REVOGAÇO
Recentemente incorporada ao nosso vocabulário político, revogaço vem tendo seus dias linguísticos de glória. Revogaço é uma palavra criada com o recurso linguístico de se acrescentar o sufixo aço a substantivos realçando seu potencial. Como já fizemos outrora em tarifaço, por exemplo. Revogaço é, portanto, o aumentativo de revogação, substantivo feminino que se refere ao ato de revogar. Revogar é um verbo transitivo direto (revoga-se alguma coisa) com origem na língua latina, revogare. Ato ou efeito de tornar nulo, sem efeito ou anular algo. Na origem, vem do latim vocare, que significa essencialmente chamamento, mas que pode ter outras significações. O prefixo re, também de origem latina, acrescido a este vocábulo ou a outros, pode ter três significações:
a) repetição, como em reler, recapear, renumerar, etc;
b) reforço, como em rebuscar, revigorar, etc; e
c) retrocesso ou recuo, como em revogar, retomar, reiniciar, etc.
No caso de revogaço, como parece estar claro, trata-se da terceira significação, a de recuar, de voltar atrás. Assim sendo, o vocábulo em pauta significa uma volta atrás, em escala ampliada, aos chamamentos (atos/atitudes/documentos legais, etc) feitos anteriormente.
Assim sendo, um revogaço, com essas características, significa, na prática, um posicionamento político em que um novo governo volta atrás e revoga documentos legais antes editados. Em grande estilo, fazendo disso um ato ou movimento político de visibilidade.
Não se faz um revogaço meramente por espetaculosidades midiáticas ou simplesmente para se desautorizar governos anteriores, mas por conta de plataformas eleitorais. Se nossa Política fosse mais consequente e tivéssemos Políticas Públicas de Estado (e não de governo – que são passageiras) estas coisas não aconteceriam ou aconteceriam em número bem menor. O que leva a um revogaço, na democracia, é a necessidade de se anular alguma medida infra legal, decretos ou portarias, por exemplo, baixadas por um governante e que são contraditórias com o espírito do Estado Democrático de Direito. Num Estado autoritário, em que a fome de poder do governante impera, em que o governante não ouve ninguém e atua somente em função desse poder autoritário, de sua visão de mundo e de acordos com interessados no lucro imediato, as medidas parciais e antidemocráticas pululam. Na alternância do poder, que a democracia permite e estimula, essas medidas autoritárias parciais e antidemocráticas podem – e devem - ser extintas. Podem ser feitas aos poucos ou de uma vez, com a revogação da muitas dessas medidas. Esse é o revogaço.
Um revogaço, no entanto, não pode e não deve ser feito aleatoriamente ou apenas para reforçar a ideia de que o poder mudou de mãos. Deve, primeiro, passar pelo levantamento sensível e cuidadoso de todas as medidas que afrontaram a democracia, que apontam para um Estado autoritário, que beneficiam poucos grupos e cuja elaboração não foi feita com a consulta aos interessados. Também é preciso analisar as várias medidas legais publicadas e verificar se a revogação de cada uma delas não se constituirá em ofensa à ordem jurídica. Grupos de juristas competentes devem se ocupar dessa preparação antes da publicação do revogaço, passando um pente fino, de olho também na Lei Geral de Proteção de Dados. Exemplos de medidas que podem ser revogadas por afrontas ao Estado Democrático de Direito são: proibição de concursos, desmonte de órgão públicos, alteração de competências, diminuindo o poder de atuação, cortes orçamentários, regulamentação de portes/posse de armas, etc.
Edição/publicação de medidas autoritárias, parciais, sem consulta aos interessados e que afrontam princípios democráticos faz parte do que se chama “infra legalismo autoritário”, definido como um conjunto de medidas, com o claro objetivo de destruir instituições democráticas, entre as quais, a edição de documentos legais (objeto do revogaço), omissões, cortes no orçamento, deixar sem preenchimento cargos públicos de importância, esvaziar órgão da estrutura administrativa do Estado para que não funcione e não cumpra suas funções ou assediar servidores e mesmo incentivar essas práticas antidemocráticas verbalmente por meio de redes sociais, lives ou entrevistas toscas. Setores mais frágeis da organização social sofrem com o conjunto dessas medidas, tais como os povos originários, os mais pobres, negros, meio ambiente, educação, etc. O objetivo dessas ações é um só: enfraquecer a democracia, mesmo que tudo ocorra dentro das regras democráticas, para se instalar um regime autoritário.
Assim sendo, o revogaço faz parte de um movimento mais amplo, uma frente de resgate do regime democrático em toda sua plenitude, que se apresenta como mais urgente, mais imediato e que possa sinalizar na direção da recuperação do arcabouço da democracia, tais como: liberdade de expressão, liberdade de cátedra nas escolas, respeito às instâncias jurídicas constituídas, solidificação de Políticas Públicas mais definidas e mais fortes, respeito ao processo eleitoral, fortalecimento dos serviços públicos, principalmente nas áreas da cultura, saúde, educação, assistência.
Que se façam revogaços, quando necessários, mas que não nos esqueçamos dos demais arcabouços da democracia.
Edson Gabriel Garcia, 2023, janeiro revogando velhos autoritarismos e abrindo passagens para o sopro de ventos democráticos.
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GASLIGHTING
Mania danada esta que temos em receptar termos de outras línguas e incorporá-los ao nosso vocabulário sem se preocupar em traduzi-los (ou procurar um termo mais ajustado ao significado original). Não que isso seja ruim em linguagem, mesmo porque, muitas vezes, são estes termos importados que chamam nossa atenção crítica para ideias que nem de longe passavam por nossa cabeça. É o caso mais recente do termo inglês “gaslighting”. Recentemente, o dicionário norte-americano Merriam-Webster” escolheu “gaslighting” como a palavra do ano, 2022, a mais citada/procurada. Esta deliciosa mania, penso que de todos os humanos, de fazer listas, as mais inusitadas possíveis, ou de recordes, os mais estranhos imaginados, (os mais lidos, mais vendidos, os preferidos, os mais votados, os mais citados, as mais ouvidas, os blogs preferidos, as maiores audiências, as dez mais, os top dez, etccccc). E quem não gosta de lista (bom sujeito não é/é ruim da cabeça/ou doente do pé)? O fato é que um grupo de dicionaristas se ocupou em saber qual a palavra mais citada em 2022. E deu nesse termo inglês, pouco ou quase nada conhecido por aqui, salvo pelos estudiosos da Psicologia, da Sociologia e da Política. Talvez porque, cá entre nós, o que imperou foram outras palavras, tais como, nazista, fascista, ômicron, pandemia, LGBTQIA+, segundo turno, golpe de estado, corrupção, genocida, entre outras, e a campeoníssima “política”. De qualquer forma, enquanto não temos oficialmente a lista das nossas dez palavras mais citadas em 2022, vamos ao conhecimento dessa que foi escolhida pelos norte-americanos, enquanto saboreamos a melodia e letra maravilhosa de SEI LÁ, MANGUEIRA, outra composição clássica de Paulinho da Viola: “que a vida não é só isso que se vê/é um pouco mais/que os olhos não conseguem perceber/e as mãos não ousam tocar/e os pés recusam pisar...”
Gaslighting bem poderia ser traduzida para o nosso idioma como manipulação psicológica. Tem-se como origem do termo em uma peça de teatro da década de trinta, do século passado, cujo significado foi logo depois solidificado no filme GAS LIGHT, de 1944, com tradução aproximada para o português como À meia Luz. O significado original do termo, como foi roteirizado no filme, diz respeito à manipulação psicológica, uma forma de violência psicológica nos relacionamentos afetivos em que o parceiro se vale de mentiras ou falseamento da realidade para pressionar sua mulher de forma que ela se sinta menor, menosprezada, sem qualidades, vilipendiada em seus argumentos, e acabe por se desacreditar. O parceiro se vale dessas teses para se engrandecer diante da companheira e/ou safar-se de situações que lhe seriam desfavoráveis. Por esta razão o termo veio sendo classificado como violência de gênero, contra as mulheres. Em ambientes em que a maioria predominante é masculina, na Política ou em empresas, por exemplo, isso é muito comum: o discurso/argumento das mulheres é ignorado (às vezes tão sutilmente que é difícil de ser apontado ou reconhecido). Outras vezes, a omissão, a falta de oportunidades, o riso irônico, entre outras formas de violência psicológica, cria insegurança e medo na mulher objeto dessas atitudes, causando destruição de sua autoconfiança. Bom lembrar que a linguagem, com vasto repertório de expressões, se presta a esta atitude, fornecendo meios secularizados pelo preconceito e pelo machismo, tais como “lugar de mulher é na cozinha”, “Política não é coisa de mulher” ou o famoso desqualificador de argumentos “você não entendeu nada” e o desequilibrador “você está maluca”
Embora mulheres também possam fazer uso dessa manipulação psicológica, ela é muito mais frequente, abusivamente mais presente, na população masculina, em nossa sociedade ainda predominantemente machista. Na origem, “gaslighting” se referia mais ao tipo de violência de gênero contra a mulher, mas atualmente o significado do termo evoluiu para indicar toda e qualquer atitude de alguém que, conscientemente, deseja enganar outra pessoa com o objetivo de levar vantagens pessoais (tais como ignorar relatos e argumentos; desqualificar o interlocutor, fugir de discussões mais sérias e equilibradas, vender imagens engajadas falsas etc.). Essa evolução do significado e a grande avalanche de disputas de narrativas nas redes sociais guindou “gaslighting”, como forma de manipulação e de engano, ao topo da lista de termos frequentes no cotidiano americano, não muito distante do nosso cotidiano. Eis um exemplo atual, que chega até nós com frequência exagerada: as peças publicitárias do agronegócio, caras e bem feitas, que tentam massificar nossa mente com mensagens subliminares de que os negociantes desse ramo da economia são patriotas, são responsáveis pela alimentação do mundo, são exemplos de sucesso e absolutamente preocupados com a sustentabilidade, escondendo as grandes manipulações de orçamento, de financiamentos baixíssimos, de fuga de impostos, de desmatamentos ilegais e de preocupação, sobretudo, com o lucro e não com a fome no seu próprio país, uma das maiores do mundo. O grande poder desse ramo da economia, que faz bancadas enormes no legislativo brasileiro, se encaixa perfeitamente nesse poder de manipulação. Vc nunca pensou “nossa, se não fosse o agronegócio, estaríamos fritos na pandemia!” ou “como são bonzinhos estes empresários”, evidentemente sem saber o valor estratosférico do lucro registrado??
E...como lidar com o “gaslighting”? Combatendo-o pela conscientização e pela reflexão. Pela conscientização de que a manipulação existe e pode ser prejudicial à saúde mental e social e deve ser combatida, evitada, denunciada, colocada em xeque. Nas relações afetivas, cujo contexto quase sempre dificulta a discussão, a manipulação psicológica tem que ser escancarada e discutida. Nas outras áreas do comportamento humano, onde o machismo e o preconceito ainda ditam regras, a tomada de consciência para o enfrentamento é o caminho. Na Política, por exemplo, como já citamos em outro texto, a promulgação da Lei 14 192/21, que protege a mulher contra a violência política, caraterizada como a ação, conduta ou omissão, que possa obstaculizar ou restringir movimentos/direitos políticos das mulheres, em eleições ou no exercício de cargos políticos.
A vida não para, ação e reação também. Tampouco a luta por direitos e respeito.
Edson Gabriel Garcia, 2022, dezembro agendando seus penúltimos dias, apontando para janeiros de novas esperanças.
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O Mundo em que vivemos 2
Voltemos a mais uma rodada de flashs do mundo em que vivemos.
Uma pergunta paira no ar: o que domina as decisões que nos afetam cotidianamente? Quem manda mais: a Política ou a Economia? Saber onde está o poder talvez seja a questão mais difícil que se nos apresenta no mundo em que vivemos: entender e saber com precisão onde está o poder, com quem e com quais grupos. Quem define o que é melhor, mais justo e mais democrático para a nação: a Política, representada pelos três poderes, ou a Economia, representada pelo deus mercado? É a Política que deve traçar os rumos das políticas de Estado (considerando os recursos econômicos disponíveis no orçamento) ou é a Economia que se impõe e determina quais políticas de Estado serão levadas adiante? Esta é uma questão de difícil resposta, ainda que muito discutida: Política Econômica ou Economia Política? É o recurso econômico, carinhosamente apelidado de dinheiro, que determina prioridades de investimentos ou é o desejo da sociedade que se quer que determina onde se vai investir. Sem respostas, fica aqui esse flash nublado para reflexões cotidianas.
Outro flash que merece destaque, para se refletir, é a questão do conhecimento. Cada vez mais possibilidades de conhecimentos nos são apresentadas com voracidade e volume. As ciências sociais, biológicas, naturais e matemáticas avançam aceleradamente disponibilizando um volume de informações alucinadamente grande. Talvez precisássemos de muitas e muitas vidas para aprender um mínimo desse conhecimento acumulado. Isto está atrelado à evolução colossal da tecnologia da informação. O conhecimento, aqui entendido como a informação aprendida, com significação construída pelo ato de aprender, de dar significado à informação disponível, demanda tempo, dedicação, esforço e organização. Nesse sentido, embora saibamos que a aprendizagem possa se dar em diversos momentos e situações ao longo da vida, é na escola que essa aprendizagem se dá de forma organizada, gradual e contínua, desejadamente de modo crítico. Não é por outra razão que o orçamento dos entes federativos destinam a maior porção das chamadas verbas vinculadas para a educação. Também não seja por outra razão que nesse campo se dá uma disputa permanente entre a Política e a Economia, esta querendo a livre manipulação do orçamento, permitindo remanejamento de verbas a qualquer momento, em prejuízo das decisões políticas que priorizam a educação. Nestes nossos tempos nunca se falou tanto em priorização da educação, nos discursos políticos e nos programas de governo, mas contraditoriamente, nunca se viu tantos ataques dos privatistas e dos políticos comprometidos contra a educação como nos últimos anos. Razão pela qual temos que manter o alerta permanente e participar ativamente de movimentos que lutam pela escola pública, pela educação de qualidade, direito pétreo constitucional.
Podemos, também, falar de um mundo tomado pela revolução tecnológica, cujos avanços têm permitido a muitos de nós (a democratização do acesso a esses recursos ainda não é realidade para muitas pessoas) viver a vida pela tela de um celular ou de um computador: trabalhamos, contratamos serviços, compramos produtos e ideias, executamos procedimentos médicos, conhecemos pessoas e lugares, nos divertimos, sonhamos, aprendemos e amamos. Isso tem modificado muitos aspectos relacionais de todos nós: direitos trabalhistas, formas de aprendizagem, modos de entender o mundo, redimensionamento de necessidades, formas de se relacionar com as pessoas. No geral, como tudo na vida, é difícil de cravar uma avaliação se estas mudanças vieram para o bem ou para o mal. Chegaram, nos envolvem, e pedem que estejamos alertas, com frequentes exercícios de escolhas, e olhar crítico para o que chega e nos é oferecido. Fakenews e deepfakes também vieram pra ficar e fazem parte desse universo pleno de vida pela tela. Se décadas atrás, Belchior cantou em versos “há perigo na esquina”, da sincera e emocionada COMO NOSSOS PAIS, alertando os jovens, hoje o perigo está mais perto, na palma da mão e vem, muitas vezes, adoçado de promessas de prazer imediato. Olhos abertos e dígitos espertos com esse flash estonteante.
Um outro flash, mais ligeiro, evidencia os muitos movimentos que estão no ar. Resultado também de informações mais presentes, o mundo vem se organizando em milhares de movimentos, de maior alcance, como os internacionais, e de menor alcance, nacionais ou locais. São as pessoas se organizando, muitas vezes com o poderoso auxílio das redes sociais, em movimentos, todos políticos, no sentido mais amplo da palavra, como os de expressão de sua visão de mundo, de luta contra desrespeito de direitos humanos, pela conquista de novos direitos, pela mudança de comportamentos, pela ética na Política, entre outros. O direito à liberdade de expressão, com responsabilidade, vem sustentando esse cenário amplo e geral das pessoas. Atualmente é quase impossível ficar parado diante de tantos chamamentos, algo possível, em larga escala, nos regimes democráticos, nas democracias participativas, combativas e militantes. Participar, de uma das formas possíveis de participação, em movimentos políticos está no dna da contemporaneidade dos humanos. Participar, movimentando-se, é viver.
Por último, nestas brevíssimas e aligeiradas considerações sobre o mundo em que vivemos, há um flash que precisa ser melhor enquadrado na câmera: nossas relações com o ambiente. De muito esquecemos um princípio elementar, que os povos originários tentam nos avivar: a terra não é nossa. Somos inquilinos e a locação que pagamos é, na maioria das vezes, em modo desastre. Neste flash, mais do que nos outros, a hipocrisia é marca registrada, principalmente por parte das grandes potências que acenam com sua assinatura em inúmeros acordos e não os cumprem, continuando sua trajetória de poluição constrangedora. A revisão das matrizes energéticas, o desenvolvimento sustentável (de verdade), a exploração mais clara e objetiva dos créditos de carbono, o cumprimento de acordos (e suas metas), cooperação internacional para a preservação das reservas naturais que ainda restam, punição de países e governantes que aceleram a destruição ambiental, tudo isso cabe no flash da questão ambiental, que é de todos nós. Em flash anterior falamos da polarização e da possibilidade de superá-la. Estudos mostram que quando se têm pontos em comum acordo, mais amplos, como por exemplo a sobrevivência no/do ambiente, que é bandeira mundial, as divergências podem ser diminuídas e o diálogo entrar em cena. Afinal, sem o ambiente preservado para a existência da vida, o que resta ao ser humano?
O álbum de retratos é grande. Cabem estes e tantos outros flashes mais. Fica o convite à inquietação para que você faça novas fotografias do mundo em que vivemos.
Edson Gabriel Garcia, 2022, dezembro avança entre transições, planejamentos e negociações, em meio ao cenário natalino e esperançosa nova subida de rampa.
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O Mundo em que vivemos
“As coisas estão no mundo só que eu preciso aprender”, verso do brilhante letrista, entre outras qualidades musicais, Paulinho da Viola, no final de sua composição, em início de carreira, fins dos anos sessenta, “Coisas do Mundo, minha Nega”. Sábia declaração, pontificando seu desejo de aprender com a amada as coisas do mundo. Sem a pretensão de ensinar as coisas do mundo, nem tampouco mapear todas as suas zonas existenciais, deixo aqui alguns flashs do mundo em que vivemos.
A primeira ideia que me vem à cabeça – e ao teclado – é que o tempo de cada um de nós é o tempo presente, o tempo que se tem para viver. O nosso tempo, não importa muito a idade, é o tempo em que vivemos. Este é o nosso tempo, claro, com um olho no passado e outro no futuro. Passado e futuro iluminando o presente. E neste sentido, nosso mundo é o mundo de hoje, de agora, nem pior e nem melhor que mundos e tempos anteriores. Como resgata a sabedoria popular: é o que temos para comer.
E os flashs vão aparecendo: a disputa pelo poder. A disputa (conquista e manutenção) do poder tem sido uma constante na Política e nesse embate usam-se todas as possibilidades, muitas delas discretas, silenciosas e não dadas ao conhecimento da maioria das pessoas. Chegar ao poder (teocrático, autocrático ou democrático) e mantê-lo tem gerado diversas armas, para além das armas bélicas: eleições, massificação ideológica, golpes silenciosos contra a ordem democrática, entre outras. Essa disputa, pelo poder, tem sido a marca principal da história da humanidade. À medida que a sociedade torna-se mais organizada e complexa, a luta pelo poder vem sendo mais intensa, muitas vezes com marcas tristes nas fotografias registradas: guerras, holocaustos, cruzadas religiosas, tráfico de pessoas, crimes dos carteis de droga, etc
Novo flash: a polarização. A clássica divisão entre as pessoas em dois mundos, dois modos antagônicos, nem sempre claros, de pensar e agir diante dos fatos, tem estado presente com muita intensidade nas últimas décadas, embora o registro histórico faça menção a este comportamento “tribal” do eles versus nós desde sempre. Com causas de origem e sustentação de difícil identificação, a polarização, além de permitir a ascensão de políticos outsiders, de extrema direita, autocratas e teocratas, ao contrário dos democratas, com projetos de salvação messiânica e de controle ditatorial, tem causado inúmeros problemas nos relacionamentos pessoais e políticos de uma nação. Bom lembrar que não é a existência do segundo turno em eleições que causa a polarização. A polarização de lados nas eleições, aqui e em outros países do mundo, é consequência de outras tantas causas e, não é certamente causada por eventuais segundos turnos eleitorais. Escolher um lado, eis a questão. Lado escolhido, começa a guerra da intolerância, firmemente calcada em desinformação, em fake News, em falsas promessas de organização social supostamente melhores com a eliminação de determinados comportamentos, costumes e pensamentos. Pagam mais caro por isso os pertencentes a minorias. A boa notícia é que isso pode ser combatido a partir de um pensamento/comportamento/princípio mais forte e comum aos dois lados. A solidariedade cosmopolita, por exemplo. Ou a preservação do meio ambiente.
A contradição entre o excesso de informações disponíveis e a pouca apropriação dessas informações tem sido uma constante no mundo em que vivemos. De um lado, as informações disponíveis, mesmo em se falando apenas de informações com base na realidade científica, se apresentam em mega volume impossível de ser apreendido; e, de outro lado, a superficialidade das leituras, que levam a um conhecimento aligeirado visto que informação disponível só faz sentido quando transformada em conhecimento construído. A aceleração das redes sociais, que disponibilizam milhares de informações por minuto, e o abastardamento dos sistemas educacionais contribuem pesadamente para este aspecto da cara do mundo em que vivemos. O “só sei que nada sei” socrático está muito mais presente hoje do que nos tempos em que foi magistralmente pensado e proposto. A internet tem sido, justa ou injustamente, responsável por inúmeros males que nos afligem cotidianamente.
A forte presença (ou mistura) da Religião na Política é outra marca dos tempos em que vivemos. A história da humanidade registra, ao longo dos séculos, o crescimento das religiões na vida política de um povo ou nação, muitas vezes assumindo concretamente o poder político (teocracia) ou em outras situações apoiando-se no poder político para crescer e exercer sua influência terrena, para além do terreno cotidiano. Apoiados nos seus totens de cabeceira (Bíblia, Corão ou Torá), líderes religiosos, principalmente os monoteístas, vendem a compensação dos pecados e das limitações terrenas por preços que variam da fidelidade total à salvação eterna, com a promessa da salvação no reino de Deus (seja ele qual for, seja ele quem seja e qual o seu nome). E pagam um preço por essa obediência ao líder religioso, fieis que são, manipulados, alguns diriam, inclusive enriquecendo estratosfericamente esses líderes ou desperdiçando o voto em votações dirigidas por um cabresto quase sempre hipócrita ou falso. Como “deus acima de tudo e de todos”, usado por autocratas desde muito, a última e desastrosa vez pelos nazistas e fascistas. Em nome da Religião, supostamente pela salvação das almas em um nível espiritual superior e distante deste, cometem-se os mais bárbaros crimes, desrespeitos a direitos humanos elementares, travestidos de princípios, regras, leis, etc da religião de plantão. O fenômeno religioso é estudado, sobretudo pelas ciências do comportamento, sem se chegar a conclusões definitivas sobre o que leva multidões de pessoas a se entregarem a esses comandos pretensamente salvadores, na maioria das vezes manipulados, pagando preços que variam de muitos dinheiros ao comportamento fiel a dogmas fluidos e genéricos. Dos regimes políticos, teocracia e autocracia usam a religião para dominar e ter o poder político, sem nenhuma ou quase zero, preocupação com o bem estar comum da população. A democracia é o único que aceita a pluralidade das crenças religiosas, convive com essa pluralidade e diversidade, entende e acata o força religiosa, mas não mistura os dois poderes.
Que nomes ou apelidos damos a este mundo em que vivemos: sociedade virtual, sociedade da pós-verdade ou simplesmente sociedade da hipocrisia? Para pensar e preparar-se para a próxima pose do flash.
Voltaremos ao tema.
Edson Gabriel Garcia, 2022, dezembro entrando com chuvas e sois, semeando o chão para novos entendimentos e novas construções do mundo em que vivemos.
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Mobilização X Muro de Lamentação
Milton Nascimento e Fernando Brant compuseram no final da década de sessenta, em plena ditadura, uma canção que entrou para o rol dos clássicos do cancioneiro popular brasileiro: TRAVESSIA. Melodia linda e letra insinuante, tem tudo a ver com Política, embora não fosse escrita com esta intenção, já que nos versos finais, os músicos nos alertam: “vou querer amar de novo/e se não der não vou sofrer/já não sonho, hoje faço/com meu braço o meu viver”. Eis aí, Poética, Política e Filosofia, tudo junto em poucos versos, uma lição de vida. Diante de uma situação complicada, o pensador poético opta por ir à luta, e fazer o seu viver com sua própria força. Opta por deixar o muro de lamentações e ir à luta. Movimenta-se.
Em Política, os movimentos são muitos e têm vários desenhos, origens, motivos, financiamentos, etc. Tantos são que popularmente nos aconselhamos mutuamente a escolher as lutas: em que movimentos você quer e pode colocar sua energia. A decisão de entrar em um movimento e nele se engajar passa, certamente, por uma opção ideológica (lembrar Cazuza, em sua genial IDEOLOGIA, em cujos versos pede “ideologia, eu quero uma pra viver”, em meio ao desencanto do mundo que queria mudar e ficou parado em cima do muro). Assim, vale dizer que nenhum movimento está isento de posições ideológicas, de visão de mundo e de sociedade que se quer. Embarcar, por exemplo em um movimento contra as instituições democráticas, pressupõe, claramente, uma escolha de viés autoritário. Sempre, qualquer que seja o movimento, não haverá neutralidade ideológica em sua gênese, mesmo que venha disfarçada. O recente movimento (enganoso) de fechamento de templos religiosos, principalmente levado nas igrejas neopentecostais, no fundo e na origem, foi uma clara opção pela política da mentira, pela falta de informações históricas, tão cara aos ditadores e defensores de regimes de exceção. Escolher e lutar com/em um movimento contra o racismo, pela igualdade racial, pelo respeito a toda etnia, também evidencia uma opção ideológica clara, de escolha por uma sociedade democrática e socialmente mais justa.
Embarcado/a em um movimento, há várias formas de participação, do mesmo modo que há diferentes níveis de engajamento em tantos outros movimentos: do nível mais simples de apoiador até o nível mais complexo de participação nas decisões. Da simpatia e do apoio pessoal até um engajamento ativo de envolvimento em ajuda financeira e ações práticas do movimento, tais como, divulgação de abaixo-assinado virtual, participação em debates virtuais ou presenciais, manifestações localizadas ou mais amplas etc. Há movimentos de expressão e alcance variados, do local ao internacional. É possível levantar a bandeira contra a construção de uma obra, a partir de levantamento de prioridades, até se envolver num advocacy, com bandeiras internacionais, como, por exemplo, o respeito aos limites do meio ambiente. De modo geral, todos os movimentos são endereçados às “autoridades constituídas”, estejam elas no Legislativo ou no Executivo, visto que é por estas instâncias que passam as mudanças emanadas dos movimentos. O resultado dos movimentos políticos podem:
a) gerar pequenas e imediatas alterações;
b) muitas vezes desembocarem em “políticas públicas” de um determinado governo (que até podem ser ignoradas ou amortecidas pelo governo seguinte); e
c) menos comumente se transformarem em “políticas de estado” (deixando de fazer parte do programa de um governo e passando a fazer parte do Estado, de todos os governos).
Nestes nossos tempos, em que as disputas de narrativas quase sempre passam por miragens, desinformações e fake news, e a realidade é feita e desfeita sem nenhuma profundidade, daí seu caráter de liquidez, participar/organizar de movimentos obriga a cada um de nós voltar à fonte de origem do movimento – e dessa forma saber em que canoa estamos fincando o(s) pé(s). O conhecimento, antítese do medo, proverá de embasamento as opções por este ou aquele movimento. Nestes tempos, em que o poder econômico (o dinheiro!!) fala mais alto, como pregam os súditos do “siga o dinheiro”, garbosa e hipocritamente, o engajamento em movimentos em defesa de uma sociedade mais justa, voltada para o bem comum da maioria dos cidadãos, é uma necessidade de vida, de sustentação de boas energias e otimismo nas lutas. A elite, que dificilmente larga o poder e tem nisso o seu movimento mais forte, sem alarde, mas extremamente eficiente, não precisa de movimentos. O seu projeto é a manutenção perene de ocupação do poder e defendê-lo, seja pelo controle do poder econômico ou pelo controle do poder político, com seus representantes encastelados no Parlamento e no Executivo. Ao contrário do imobilismo dos “muros de lamentações”, em que centenas de milhares de nós ficamos a lamentar a perda de direitos de trabalhadores, a decadência do serviço público, a degradação do meio ambiente, a proliferação de seitas religiosas que obedecem passivamente ordens de paus mandados do poder, a disseminação de preconceitos inaceitáveis, entre outras perdas, diante das quais opta-se por uma postura inócua, imobilista, carregada de humores frágeis e dotada de uma transferência de responsabilidades para terceiros, o que se tem para fazer é ir à luta, coletivamente, com engajamento em movimentos organizados. Um basta aos muros de lamentação e um viva aos movimentos políticos de defesa de uma sociedade socialmente mais justa para a maioria.
A Política é dinâmica e se move, mesmo parada, se o poder não muda de mãos. Como disse, centenas de anos atrás, ao ser condenado por suas ideias avançadas, Galileu Galilei: E pur si muove! (no entanto, ela se move!), mesmo retirada do contexto, nos leva a reflexões como “nada está parado; tudo se move; a vida segue; as coisas andam; a história segue, etc). Mobilize-se! Movimente-se!
Edson Gabriel Garcia, 2022, novembro chegando ao fim, em meio a transições e negociações que podem nos levar a futuros mais esperançados.
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Negociação na Política
A palavra negócio tem sua origem no latim com a junção de dois outros significados: nego (negação) e ócio (folga). Ou seja: negociar é negar uma folga; é estar em atividade. Negociação decorre dessa conjunção de ideias: estar em atividade, negociando. De modo geral, nos acostumamos a ouvir e ler sobre negócios mais em referência à atividade comercial, de compra e venda. É recente a apropriação do termo pelas teorias da comunicação, uma vez que negociação, em qualquer área da atividade humana, nada mais é do “comprar e vender”. Em comunicação, negociação é a atividade humana de “compra e venda”, ou troca, de ideias, propostas, projetos, etc. É um modo de solução de conflitos (ou divergências) em que as partes interessadas conversam diretamente, mesmo sendo estas partes representantes de outros (representados). Pela negociação tentam-se resolver conflitos de diversas áreas da atividade humana: pessoal, profissional, social, institucional, trabalhista, jurídica, policial etc. Tecnicamente uma negociação pode ser feita por várias pessoas, de ambos os lados, e abordando um ou mais assuntos.
Em Política, negociação é um processo, complexo, de interação social que envolve pessoas (políticos credenciados), em volta de uma mesa (metafórica), em busca de acordo, consenso ou saída sobre o(s) tema(s) objeto(s) da conversa, que contempla ganhos para ambos os lados da mesa, aí observados os interesses em jogo. Política, que pode ser a arte e o exercício do diálogo, aqui entendido como negociação, é plena dessa conversação. Pejorativamente o slogan mais comum para designar a negociação política, na linha do abastardamento da Política, é o “é dando que se recebe”, um “toma-lá-dá-cá” rasteiro cunhado pelo ex-ministro Roberto. Cardoso Alves, embasando-se equivocadamente em trecho da Oração de São Francisco. Em tese, sempre falando e pensando em uma concepção ideal, a negociação na Política envolve os representantes (eleitos pelo voto direto) e os representados (cidadãos eleitores que escolheram seu representantes a partir de uma base ideológica, que deve ser o suporte da negociação), assuntos a serem negociados, a forma e o local onde essas conversas ocorrerão. O bem estar comum da maioria da população, sem hipocrisia, deve ser a base da mediação. Não se pode – e tampouco se deve – admitir que interesses privados e particulares possam se sobrepor às negociações políticas. Se, por exemplo, na mesa de negociação está o interesse coletivo da preservação do meio ambiente, não se pode aceitar a presença de representantes que defendam o lucro através do desmatamento incontrolado, das queimadas e outras atrocidades ambientais. A conservação do meio ambiente, tendo em vista o bem estar comum da maioria dos cidadãos, deve ser a base da mediação. Não se pode esquecer que mesmo em Política, tendo o bem estar da maioria como base, os representantes colocados na mesa de negociação levam para a conversa a força do seu poder de negociação. E muitas vezes essa negociação, nacional ou internacional, se faz em cima de narrativas falsas, ideologicamente construídas, sobre inverdades. Já vimos afirmações de nossos representantes, em encontros internacionais, que esta década de 20 foi uma das que menos se teve desmatamento no país. Narrativa ideológica construída em cima de fake news. Da mesma forma, trazendo outro exemplo, quando se negocia a eventual aprovação de medidas de taxação de grandes fortunas, via projetos de lei, o argumento de que o agronegócio é o que sustenta de pé a economia do país, omite-se dessa narrativa as enormes taxas de isenção e/ou de financiamentos baixíssimos de investimentos a perder de vista com que este setor, com sua bancada parlamentar bem fortalecida, se beneficia. Para além das narrativas ideológicas construídas em séculos de dominação das elites sobre as classes de menor poder, as negociações políticas levam à mesa o poder institucional (Poder Executivo), o poder econômico (a força da “grana” e, muitas vezes, o poder jurídico (arcabouço de leis feitas à imagem e semelhança da elite do poder, como, por exemplo, as leis trabalhistas em vigor, aprovadas recentemente, que ameaçam o tempo todo o trabalhador, deixando vivo, em sua cabeça, o refrão covarde “manda quem pode e obedece quem tem juízo”).
Negociações políticas se dão em vários momentos e movimentos: discussões de plenário, discussões no colégio de líderes (líderes de partidos discutindo em nome de sua bancada), acordo para votações (dentre as quais, a aprovação do orçamento anual do ente federativo), Conferências Nacionais, assembleias populares, conselhos populares representativos institucionais, mesas de negociação com servidores públicos, entre outros. Uma das maiores negociações de que se tem notícias na recente história da Política nacional se deu na Assembleia Nacional Constituinte, eleita para escrever a atual Constituição Federal, eleita em 1986, instalada em 1987, cujo resultado foi promulgado em 1988. Cabe observar que, por serem feitas por homens (ou mulheres), as negociações permitem que os participantes, ignorando o bem estar comum, exponham sua força, sua ideologia, sua narrativa e, sobretudo, seus interesses e os interesses que representa. E isto, sabemos, faz parte do jogo democrático, a disputa pela negociação que se dá entre as forças negociadoras. Não deixa de ser uma disputa aberta, franca, em que as armas são colocadas de prontidão, sendo a narrativa da linguagem a mais poderosa de todas, em se tratando de negociações democráticas.
As negociações políticas só não se dão quando o regime de governo é ditatorial, em que só um lado tem voz, visto que as outras vozes são caladas ou abafadas pela censura, pelo amordaçamento das vozes, pelo fechamento de canais de fala e luta, pelo fechamento de instituições democráticas, pela violência e truculência no controle das informações e das vidas. Como diz um ditado popular “a alfafa não cai do céu”, nos fazendo pensar que há de se batalhar por ela. De igual forma, as negociações precisam ser cultivadas, cultuadas, mantidas e defendidas. E com elas, o regime democrático de liberdade de expressão, mesmo na discordância.
Edson Gabriel Garcia, 2022, meados de um novembro feliz com sua república a caminho da reconstrução.
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E agora, José?
Há quem diga que vencer uma eleição não é tão difícil. Uma campanha bem feita, com um intuitivo slogan chiclete que caia na boca do povo, uma facada inconsequente, uma falsa caçada a marajás... pronto, eis aí receitas que podem, num golpe de sorte, levar alguém à vitória. Vitorioso, qualquer que seja a condição, um candidato sério, preocupado com o futuro do seu governo e do ente federativo que vai governar (município, estado ou país) faz a si próprio e equipe a primeira pergunta (ou deveria fazer): e agora, José? Com a devida licença do mestre Drummond, que há quase cem anos, 1942, mesclou filosofia e poesia, num dos mais belos poemas de nosso cancioneiro poético. Drummond deixou para nossa vã filosofia a pergunta mais intensa de todos os tempos, em forma de versos com sutis lembranças e deliciosos beliscões, cujo título tomei emprestado do primeiro verso, sem sua devida autorização, mas imaginando que essas coisas belas possam ser tomadas por todos nós brasileiros: E agora, José?
Feita a pergunta, um candidato eleito, ‘sério e decididamente preocupado com o destino do ente federativo, terá alguns movimentos políticos concomitantes pela frente, sem ordem de prioridade: composição de sua equipe de governo; formação de um governo de coalizão, se necessário; discutir o orçamento do próximo ano/primeiro ano de seu governo; e movimento de transição de um governo para o outro. Evidentemente, por ser a Política muito dinâmica e sempre dependente do contexto, esses movimentos podem ter força maior ou menor. Se, por exemplo, o eleito fez maioria folgada no parlamento, a coalizão pode ser mera figura de retórica; se a equipe de governo, do primeiro escalão, por necessidade de campanha, foi anunciada durante a campanha, pouco resta a construir nesse movimento; se o orçamento já tiver sido aprovado, quase impossível, a margem de manobra é menor. Mas... sempre há o que fazer nesses três movimentos. Em todos os movimentos, as promessas de campanha e a ideologia do partido estarão presentes e guiarão as decisões seguintes.
A composição da equipe de governo, principalmente os cargos do alto escalão (ministros e secretários) requer um cuidado especial. Nomes afinados com a ideologia do partido e com o contexto social, com trânsito nacional e internacional, que abram portas para futuras e boas negociações, devem merecer a escolha. Governos qualificados escolhem nomes que possam abrir o diálogo nacional ou internacionalmente em sua área de atuação. E preferencialmente equilibrando a equipe com nomes de homens e mulheres, visto que as mulheres, muitas delas e cada vez mais, têm ocupado papel de extrema importância na Política nacional e internacional. Bons nomes abrem portas, abrem diálogos, sabem ouvir e buscam respostas e apoios internacionais. Não há que se fazer Política apenas na antessala, mas fazê-la na varanda, na cozinha, no quintal (sem abrir as porteiras para deixar a boiada passar).
A formação de um governo de coalizão é um dos movimentos pós-eleitorais cujo objetivo fundamental é garantir “governabilidade” ao partido e políticos eleitos durante os quatro anos de exercício do governo. Coalizão é diferente de coligação e federação, pois estes são movimentos dos partidos em períodos eleitorais visando a atuação eleitoral e manutenção de sua força estrutural. A coalizão é um movimento de grande alcance dos eleitos no sentido de ampliar a base de apoio e de sustentação do governo envolvendo outros partidos e outros eleitos nessa base. Essa negociação é de iniciativa do partido eleito para o executivo com outros partidos, além dos partidos da coligação, partidos próximos, partidos que participaram de segundo turno. A negociação da coalizão se dá pela proposta de ocupação de cargos no primeiro escalão e pela aceitação dos princípios ideológicos de governança, Ou seja, os partidos e políticos que aceitarem fazer parte da coalizão, em tese, deverão atuar em concordância com as políticas públicas e votarem favoravelmente às ações políticas encaminhadas pelo governo ao parlamento. Não é fácil manter a coalização da forma desejada porque, muitas vezes, o interesse individual ou da base do “parceiro” fala mais alto. Bom lembrar que a coalizão como forma de apoio aos governos tem se mostrado uma das causas mais fortes da corrupção ao modo “compra de votos”.
A discussão do orçamento anual (para o ano seguinte) é outro movimento fundamental, tão importante e decisivo quanto os anteriores, pois é com o que se terá para arrecadar e investir que o governo implementará suas políticas públicas, definindo suas prioridades. Embora a competência constitucional de apresentação do orçamento seja do executivo (um dos traços do nosso modelo político), a discussão e eventuais alterações ficam por conta do parlamento, razão pela qual o governo eleito negocia para que o orçamento fique mais parecido com o seu planejamento de execução do que for arrecadado. Em tese, o orçamento tem que ser aprovado até o final do ano, para que o governo comece o ano com o novo orçamento já aprovado. Tecnicamente um orçamento é um documento financeiro muito complexo visto ser dominado por muitas regras e leis que condicionam sua proposta, discussão, aprovação e execução. Principalmente a execução (uso do dinheiro público) e o que mais interessaria aos cidadãos, a compreensão clara e objetiva dos gastos públicos, parece coisa do outro mundo. A democratização do acesso e a clareza da prestação de contas da execução orçamentária deveriam ser cláusula pétrea da Constituição.
A transição de um governo para o outro, ainda longe do dia simbólico da posse, se faz com a presença de representantes do governo de plantão e do futuro governo. Os representantes do governo eleito apontam para uma coalizão desenhada e mesclam técnicos, representantes de movimentos da sociedade civil e políticos. Dos que vão embora, espera-se a clareza e honestidade em apresentar a real situação econômica do país; dos que estão chegando espera-se sagacidade em desvendar segredos anteriores, olhos claros para a realidade econômica e certeza de representar os anseios dos eleitores por novos tempos econômicos, sociais e políticos.
Estes movimentos são simultâneos e interdependentes e, pelo menos os três primeiros, começaram antes da proclamação do resultado das urnas. São as pedras no meio do caminho, outra pérola poética de Drummond, que vão sendo retiradas ou alocadas em novas construções.
Edson Gabriel Garcia, 2022, novembro que insinua abrir as asas da liberdade democrática sobre nós.
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Voto nulo, ser apolítico e Política não se discute: tudo farinha do mesmo saco?
Lá pelos idos dos anos do século XVII, um pensador francês, filósofo e matemático, Blaise Pascal, cunhou uma expressão linguística, fruto evidentemente de suas tantas reflexões e contribuições, que persiste desafiando nossas discussões: o coração tem razões que a própria razão desconhece. Até hoje. Tanto que, no final da década de sessenta do século passado, Marino Pinto e Zé da Zilda retomaram essa expressão na letra do seu famoso samba canção AOS PÉS DA SANTA CRUZ. E mais recentemente, na década de oitenta, do mesmo século, o genial Renato Russo, compôs e gravou com o Legião Urbana, a clássica EDUARDO E MÔNICA, cujos versos desafiadores nos fizeram e fazem cantar “quem um dia irá dizer que não existe razão/nas coisas feitas pelo coração”.
Aproveito essas entradas filosóficas e poéticas (há tanta poesia na filosofia e tanta filosofia na poesia) para puxar uma reflexão: o que há por trás da atitude do voto nulo, da negação da política no cotidiano e da proibição de discussões políticas nos diversos grupos sociais? Seria uma regra de proteção do coração ou uma negação racional ideológica? Como sempre, na liberdade de expressão que tenho nestes escritos, arrisco algumas considerações.
O voto nulo, reconhecido como um dos direitos do votante, compreendido como o direito de não sentir-se representado seja pelo regime político seja pelos candidatos que disputam o voto, indica exatamente o quê? Um protesto, uma negação de participação ou simplesmente o não reconhecimento da presença da política em nossas vidas? A recusa em votar e escolher, que de certa forma indica a opção pelo pressuposto que a Política é suja e não merece nenhuma atenção ou consideração, pode ser entendida com a negação da participação. Seria esta uma atitude do coração, que quer se proteger de decisões (as quais certamente afetam a vida de todo/a cidadão/ã). O coração sem razão procurando uma razão que a própria razão desconhece!? Ou seria resultado de intensa carga ideológica antidemocrática beliscando nossa razão pra chegar à decisão do coração de perder a oportunidade de exercer a cidadania?
Ser apolítico inscreve-se numa ordem aparentemente racional: não ter interesse por Política, colocar a Política no rol das coisas nojentas e asquerosas, com um certo ar de superioridade com a defesa do pensamento “nenhum político presta” e, por isso, não se envolver nestas coisas sujas, asquerosas e corruptas. Há duas questões básicas nesta atitude. Primeiro: não há como, em uma sociedade organizada e complexa como as atuais sociedades viver sem ser atingido/envolvido/afetado pelas decisões políticas. Impossível. Mesmo se alguém se isolasse do mundo em um rincão qualquer, afastado de toda forma de civilização, certamente sua sobrevivência estaria dependente, no mínimo, de decisões políticas ambientais. Segundo: ao abrir mão de entender a Política, seus meandros, seus segredos, seus erros e acertos, estaria entregando de bandeja para os maus políticos – que abundam no país – o comando do destino e as tomadas de decisão. Certamente não há racionalidade nesta atitude. Razões do coração ou coração sem razões?
Futebol, Religião e Política não se discutem, diz uma máxima popular. Seria esta postura mais uma das razões do coração que a própria razão desconhece? Mas seria uma razão, com razão, feita pelo coração? Tudo pode ser discutido. Futebol, com paixão, desde muito vem sendo discutido, mesmo que nunca se chegue a lugar nenhum nem tampouco se saiba realmente qual é maior e mais apaixonada torcida do país. Religião também se discute. Diga-se de passagem, bem ligeiramente, que a relação entre Religião e Política estreita-se cada vez mais claramente, tanto que estas relações despertam análises cada vez mais apuradas, mais técnicas e isentas dos sentimentos da fé. Principalmente nas últimas eleições presidenciais, a busca pelo voto (de cabresto? pouco racional? nada consciente?) dos crentes, comportados e obedientes no interior dos templos, vem merecendo dos candidatos uma arquitetura discursiva muito engenhosa. E estes votos têm sido decisivos (ou quase) fazendo com que o programa político de um candidato se curve à pauta de interesses de costumes dos crentes (que se interessam pouco pela pauta redistributiva de renda). Futebol e Religião são discutidos, sim. E Política? Porque essa matéria, que influencia o cotidiano de todos nós, tem que ficar fora das discussões? Vá lá: é até aceitável que grupos de redes sociais acordem entre si que a discussão política não é bem-vinda, quando a natureza do grupo é outra, mesmo porque esses grupos são, na maioria, superficiais, não aprofundam discussões e vivem de reproduzir slogans, memes, fakes. No entanto, há que se entender que Política se discute, sim. Política (assim como a Filosofia e a Arte) se nutrem de discussões. Apostar nessa ou naquela visão de mundo, neste ou naquele modo de tributar, nesta ou naquela prioridade, no modo de um ou outro gastar o dinheiro do orçamento, criar modos distintos de corrupção, dignificar ou não os serviços públicos, para citar apenas alguns pontos, é matéria que banha diariamente nossa vida cotidiana e querendo ou não nos afeta e, por isso mesmo, deve ser pauta de discussão. Onde, como e quando vai se discutir pode ser objeto de negociação, na certeza que deveremos ter espaços públicos e privados destinados a essa discussão. Igrejas fazem movimentos políticos e portanto são espaços de discussão política. Escolas lidam com o conhecimento e, portanto, nada mais saudável do que levar a conversa política para o currículo escolar. Sindicatos fazem política cotidianamente... as mídias fazem da Política matéria de sua sobrevivência... assim por diante. Razões para a razão do coração?
Neste sentido, caminhando para o encerramento destas breves considerações, voto nulo, apolitismo e negação da discussão de Política são farinha do mesmo saco, amalgamadas pelo controle ideológico. Há que se separar o joio do trigo e seguir adiante, repensando a (in)utilidade do voto nulo, a (im)possibilidade do apolitismo e discutindo a discussão da Política. Nada que mentes sadias não possam fazer nas ruas, nos ônibus, nas praças, nas carteiras escolares, nos bancos das igrejas...
É dessa liberdade de se discutir qualquer coisa que a democracia sobrevive.
Edson Gabriel Garcia, 2022, metendo a cara em novembro, soprando bons ventos. A democracia respira um pouco mais aliviada.
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Cláusulas Pétreas
O que são as “cláusulas pétreas”? Vamos recorrer ao dicionário: cláusula significa item (de um contrato ou de uma lei); pétrea, adjetivo derivado de petra (pedra), significa algo muito duro, difícil de ser mudado em sua consistência. Juntando as duas palavras, temos que uma cláusula pétrea é um item difícil de ser mudado.
Cláusulas Pétreas são artigos de algumas constituições, a nossa inclusive, que dificilmente são mudadas – ou só podem ser mudadas mediante determinadas condições. Afora as cláusulas pétreas – que só podem ser mudadas por uma nova Assembleia Nacional Constituinte, com poder para isso -, os demais itens podem ser mudados através de Projetos de Emendas Constitucionais (PECs), com votação mais qualificada passando pela Câmara e pelo Senado. Em nossa Constituição Federal, aprovada em 1988, logo após o fim da ditadura militar, são quatro as cláusulas pétreas, conforme explicitado no Art. 60, parágrafo quarto: a) a Forma Federativa do Estado, b) o voto, direto, secreto, universal e periódico, c) a Separação dos Três Poderes e d) Direitos e Garantias Individuais. Vale lembrar que o contexto histórico em que foi aprovada a CF/88 pedia que o desenho democrático que se queria garantir para o país, a partir de então, após a nefasta e violenta ditadura militar, pedia que alguns dispositivos fossem assegurados com firmeza, evitando-se que sopros autoritários pudessem ameaçar a redemocratização. Daí a natureza dura, firme e pétrea de alguns desses dispositivos, garantindo-se um regime democrático, liberdades antes suprimidas, retorno de eleições livres e equilíbrio entre os Três Poderes.
A primeira cláusula pétrea é o pacto federativo, isto é: o Estado brasileiro é uma federação em que municípios, estados e nação sejam partes integrantes dessa federação, com um poder soberano, a união, e certa autonomia política dos demais entes federativos, estados e municípios. A CF define essa autonomia e divisão de poderes e responsabilidades entre os entes federativos, interligados em um todo. Esse pacto federativo impede, por exemplo, que alguns estados se tornem independentes do resto da nação.
A segunda cláusula pétrea é o voto. Essencial em qualquer democracia, o voto, que no Brasil tem uma história acidentada, é um dos pilares da democracia representativa: direto (cada eleitor escolhe diretamente, sem intervenções, em quem votar), secreto (o voto é pessoal e sigiloso. Ninguém sabe qual o voto do eleitor e ele não tem nenhuma obrigação em expor o seu voto.), universal (todos os cidadãos e cidadãs, sem diferença de cor, raça, gênero, credo, origem, classe social ou letramento) e periódico (eleições ocorrem a cada dois anos). Por ser uma das garantias da democracia, os constituintes entenderam por bem colocar o voto como cláusula pétrea.
A terceira cláusula pétrea é a Separação dos Três Poderes. Os Três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) devem ser independentes e harmônicos. Cada qual tem autonomia para se organizar, sem fugir de suas funções básicas determinadas constitucionalmente: O Legislativo cria e altera leis e fiscaliza o Executivo; o Executivo põe em prática as leis aprovadas no Legislativo; o Judiciário julga o cumprimento das leis – ou a transgressão – e pune o não cumprimento delas. O equilíbrio é tênue e provisório, demandando sempre negociações, principalmente em tempos de governanças autoritárias. Resquícios do entulho autoritário da ditadura, o Poder Executivo saiu mais fortalecido no texto constitucional.
A quarta cláusula pétrea é a que garante a não extinção dos direitos dos cidadãos e cidadãs (direitos civis, sociais e políticos). A intenção de se estabelecer como cláusula pétrea a garantia desses direitos se deve à história recente anterior à redação da Constitucional em que o regime de exceção (ditadura militar) mandava e desmandava na vida de todos e todas. Ao carregar nas tintas desses direitos, colocando-os como cláusula pétrea, o que se intencionou foi impedir retrocesso político e eventual retorno ao excesso de poder do Executivo. Não à toa, esta Carta é chamada de Constituição Cidadã, por ter garantido no texto constitucional inúmeros direitos básicos para o exercício da cidadania, tais como: a liberdade de expressão, liberdade de ir e vir, direito à saúde e à educação garantidas pelo Estado, livre escolha do trabalho, entre outros. Os constituintes buscaram proteger no texto da lei a mínima dignidade humana.
Com a redação final e aprovação da Constituição Federal, em 1988, ainda hoje se discute aqui, ali e acolá se o Estado suporta garantir tantos direitos, se o voto deve mesmo ser obrigatório, se há equilíbrio entre os Três Poderes e se já não é hora de se eleger uma nova Assembleia Nacional Constituinte para proceder uma revisão do texto constitucional. Se cada Carta Magna é resultado do embate de forças políticas de uma determinada época (como as Constituições impostas pelos governos autoritários anteriores que expressavam sua visão de mando político), deveremos mais do que nunca nos atentarmos para eventuais alterações no texto constitucional que venham na contramão da democracia: suprimir direitos, calar liberdades, privatizar serviços públicos, aumentar o poder do Executivo – em demérito do Legislativo e do Judiciário, entre outras alterações. Mais do que nunca a Constituição Federal – e suas cláusulas pétreas – devem ser leitura de cabeceira de todos nós.
Edson Gabriel Garcia, 2022, outubro caminhando, corações e mentes pulsando, a hora política é agora.
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Por uma leitura dos números que saem das urnas
O mestre de todos nós, Paulo Freire, o maior educador brasileiro dos últimos tempos (talvez de todos os tempos), sempre nos fez ver que a leitura é algo muito maior do que a mera decifração do código linguístico. É possível – e sempre necessário - ler para além do que lemos. É necessário ler as camadas do texto, da superfície à profundidade. Com esse olhar de leitor, cada um de nós pode – e deve – fazer leituras diferentes dos números que resultam de uma eleição, para além do imediato da vitória ou derrota dos candidatos. Arrisco algumas leituras.
Sobre os não-votos (brancos, nulos e abstenções). Por se tratar de eleições em que o voto é obrigatório, é sempre interessante considerar o número dos não-votos já que estes podem sinalizar argumento dos defensores do voto facultativo e nem sempre representam um voto de protesto. Mais do que isso, podem representar um certa apatia pelo evento eleitoral e, sobretudo, uma omissão diante da possibilidade de participação em decisões sérias sobre o futuro político dos entes federativos. Talvez a facilidade pela justificativa da abstenção deva ser revista e discutida à luz do voto obrigatório.
O voto envergonhado. É possível ler num resultado numérico os diversos movimentos do voto. Um deles, por exemplo, é o chamado voto útil, tão presente em qualquer eleição, principalmente quando se quer refutar a presença deste ou daquele candidato no segundo turno. É um movimento forte e intenso que pode desestabilizar a candidatura de um em favor de outro. Outro tipo de voto, penso, é o voto envergonhado, dado a um candidato combatido em diversas frentes, voto dado com vergonha de ser assumido, mas com certo prazer guardado a sete chaves. É voto negado, mesmo tendo sido dado, o eleitor jamais assume esse voto. Há nele uma certa mistura de protesto com avacalhação, mas que não combina com a figura/posição social do eleitor. Vota-se, rindo por dentro, mas nega-se com seriedade por fora. O voto envergonhado muitas vezes representa um movimento grande em uma eleição, podendo causar surpresas, ou suspeitas de traição, como alguns sugerem classificação. Surpresa, sim; traição não. O voto, individual e secreto, quando não muito consciente ou pouco consistente, pode ser definido na boca da urna. E vale tanto quanto outro qualquer. Apesar de ser um evento político da mais alta importância, o voto é sempre carregado de fortes emoções e estas costumam aflorar no momento decisivo. Depois, o eleitor do voto envergonhado carrega escondida a vergonha do voto.
Sobre a (des)importância do Poder Legislativo. Na teoria do equilíbrio dos três poderes, o Poder Legislativo tem, em tese, extrema importância, pois por ele passa o controle do equilíbrio entre os três poderes: acompanhar, legislar, fiscalizar. No entanto, em eleições, os cargos desse poder, disputam o que se chama de eleições proporcionais (elege-se conforme proporcionalidade votos conquistados pelo partido/federação) e acabam sendo relegados a um plano menor, visto que é a eleição majoritária (presidente, governador/a, prefeito/a) que toma conta da campanha eleitoral. Corre à boca pequena que a grande maioria dos eleitores chega na boca da urna sem definição de seus candidatos ao Poder Legislativo (principalmente deputados). É um voto apressado, descuidado, desprovido da importância que o legislativo merece. Um voto dado também, e ainda, em função de outros convencimentos, entre os quais “a compra” do voto ou o voto “de cabresto massificado”. Diferentemente da eleição majoritária, esta acompanhada semanalmente por pesquisas de intenção de votos, em que é possível mapear com certa margem de acerto o resultado, o que sai das urnas nas eleições proporcionais também pode causar surpresas. E certamente determinará, conforme a cara do legislativo, a relação de poder com o executivo. Uma leitura mais profunda dos números saídos de uma eleição para cargos proporcionais é necessária para que possamos acompanhar o seu desempenho mais à esquerda ou à direita, sua relação com o poder executivo e sua opção pelo palco ou pelo bastidor. Pela transparência ou pelo sigilo do segredo, mais um comportamento de vergonha política.
Sobre cláusulas de barreira. As cláusulas de barreira colocadas na legislação eleitoral têm o objetivo claro de diminuir o número de partidos políticos na cena política brasileira e, de forma indireta, qualifica-los melhor. À medida que não cumprem nas urnas as exigências de desempenho vão perdendo força e ficando à margem do processo político decisório e, principalmente, tendo seu acesso aos recursos públicos dos fundos eleitorais visivelmente diminuído. O desempenho de alguns partidos pequenos foi claramente afetado pelas cláusulas de barreira fazendo com que neste momento, pós eleições de 2022, alguns partidos ficaram sem representação nos parlamentos. De certa forma, é um bom indicador para a qualificação partidária e para futuras relações com os governos, uma vez que limita o número de partidos/lideranças para se discutir coalizões e acordos. Essa ainda é uma discussão embrionária entre os eleitores, mas necessária, para que tenhamos clareza se é mais interessante que se tenha liberdade de criação e funcionamento de partidos, respeitando-se as regras já instituídas, ou que os partidos criados passem pelo crivo da votação, condicionando sua existência ao desempenho nas urnas e, portanto, diminuindo o número de partidos no quadro partidário brasileiro. O assunto merece mais conversa e aprofundamento, mais discussões e argumentos.
Sobre mudança de regimes políticos. Além do Plebiscito, este um evento democrático, e do Golpe de Estado, este um movimento pleno de violência autoritária, um regime político pode sofrer alterações mais brandas, menos chocantes, mas contínuas, determinando-se a mudança de sua natureza. Água mole em pedra dura tanto bate até que fura, diz o provérbio popular. Um regime democrático pode, aos poucos, mesmo com eleições democráticas, caminhar para um regime mais forte, autocrático, de desrespeito aos direitos dos cidadãos. Isto pode ser evidenciado, para além do já excessivo poder que o Executivo brasileiro tem, por posturas de desrespeito às instituições democráticas do país, ao questionamento constante da Constituição Federal e muitas vezes de claro desrespeito a ela, do questionamento do resultados das urnas, da intervenção em outras instituições que visem também fiscalizar o Executivo, além de clara opção pelo cerceamento do acesso da mídia a informações e pelo abuso da mentira e de fake news, entre outras posturas. Embora de natureza claramente democrática (leva quem teve mais votos), nem sempre os números resultantes das urnas apontam na direção democrática. É possível, democraticamente, se eleger governantes autoritários, que desprezam a democracia (como na Rússia e na Hungria, por exemplo), apoiados por expressivas bancadas de parlamentares com esse viés de deboche pela democracia, pelos direitos humanos, pelo dinheiro público, pelo coletivo, pela educação. Uma leitura mais atenta dos números recém saídos de uma eleição não nos permite alterar o voto nem os resultados, mas pode balizar o comportamento político: acompanhar, cobrar, verificar, denunciar, pedir e tomar providências, criar coletivos de fiscalização, etc. Em Política nada é definitivo e tudo pode mudar dependendo da força dos cidadãos e cidadãs engajados conscientemente no processo.
Os números que brotam das urnas evidenciam a importância de uma eleição, pedem leituras “de mundo” mais demoradas, e podem orientar comportamentos políticos futuros para além da tristeza da derrota momentânea ou da alegria de uma vitória. Estes sentimentos, como as fotografias instantâneas das pesquisas de intenções de voto, precisam ser emoldurados num comportamento político participativo consciente. Reforçando teses da educação freireana: é preciso ler além das letras e além dos números.
Edson Gabriel Garcia, 2022, outubro caminhando em sua segunda quinzena, ainda deixa sobras de resultados eleitorais à nossa espreita, a caminho de novos esperançamentos e outras lutas.
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De volta ao voto útil
Muitos de nós pensamos que a Política nada tem a ver com nossa vida. O direito de assim pensar é livre, mas, cá entre nós, nada mais falso do que pensar isso, pois a Política interfere cotidianamente em todos os nossos movimentos, espaços de ação, direitos etc. Cotidianamente, às vezes de forma mais perceptível ou, outras vezes, de modo mais sutil. Você participou da decisão de tornar obrigatório o uso do cinto de segurança nos carros? E nas cidades grandes, você foi consultado sobre o rodízio de carros? E sobre o uso da máscara em episódios pandêmicos, consultaram você? Certamente, não. E isso interfere em sua vida? Com certeza, sim. É bom lembrar que estas decisões foram políticas, como parte de políticas públicas, tomadas e postas em prática por algum governante eleito pela maioria dos votos de uma eleição. Estes são apenas alguns exemplos de como a Política bate à nossa porta cotidianamente, querendo ou não, gostando ou não. Daí a importância do voto, da escolha dos governantes pelo voto, de modo direto, secreto, individual, sem cabresto, sem colinha, sem controle.
Retomando o tema “voto”, sobejamente adjetivado (secreto, consciente, alienado, formal, etc), acrescentemos mais um adjetivo à lista: voto útil. Este tipo de voto, que ocorre quase exclusivamente em eleições majoritárias, com muitos candidatos e um só cargo em disputa, é também chamado de voto estratégico ou tático: é o voto dado a um candidato que não é o escolhido ideologicamente, mas é o voto endereçado a outro candidato que tem chance de tirar do páreo candidatos indesejáveis, com propostas desconstrutivas, antiprogressistas – ou sem plataforma de governo definida. O voto útil não se confunde com o voto consciente, mas não se distancia dele, pois se embasa em outro tipo de consciência política, pode mudar o rumo de uma eleição.
Contra este tipo de voto, o argumento é que o voto útil falseia o perfil ideológico de uma eleição, pois leva o eleitor a escolher candidato que não é o seu preferido nem sua escolha primeira, inclusive enfraquecendo o partido do eleitor, reduzindo a representatividade de seu partido no parlamento. De certa forma, este voto atribui muita consideração às pesquisas prévias eleitorais. Ou, como num jogo, atende a demandas de outros partidos, nem sempre verdadeiras ou exatas. Também faz parte desse jogo prévio, a demanda de “votar em outro candidato que tenha chance já que o seu candidato está mal nas pesquisas e não tem chance de avançar para o segundo turno ou para buscar vitória num turno único”. Já vimos isso em algumas eleições em que o candidato próprio de um eleitor não deslancha e sofre o assédio de outros buscadores de votos para transferir o voto para quem tem real chance de ganhar ou derrotar algum candidato indesejável. Pesquisas já feitas em outras eleições mostraram que muitos eleitores podem mudar o voto, se sentirem que o candidato indesejável pode ganhar: mudariam para impedir a vitória do indesejado. É nesse sentido que esse tipo de voto é pragmático, útil, estratégico. Mudar o voto para não perder o voto. Votar no candidato que realmente tem chances de derrotar quem o eleitor não quer ver eleito de modo algum, sustentado por pesquisas que mostram o seu candidato de primeira opção abaixo da possibilidade de real disputa. Votar para ganhar, mudar o voto para não o perder, como se fosse num jogo em que tudo se faz para chegar à vitória, como prega o bordão popular “lá se vão meus anéis, mas ficam os dedos”. Há quem não goste de perder nem em disputa de palitinhos. O momento em que o eleitor faz esta opção (difícil?) é na reta final do pleito.
Finalizando estas breves anotações políticas sobre o voto útil, vale pontuar:
a) não há consenso entre os estudiosos sobre a real utilidade do voto útil, pois uns acham que demonstra um raciocínio mais elevado do eleitor, voltado para o coletivo, que analisa o processo como um todo e aposta no cenário menos prejudicial, sendo, portanto, uma qualificação do eleitor e do voto; e alguns que defendem que esta escolha é ruim para o processo democrático uma vez que impedem o fortalecimento de outras tendências ideológicas e impedem o surgimento de novos nomes,
b) não se pode avaliar a presença do voto útil nas eleições como algo positivo ou negativo, mas apenas como uma instância do possível em eleições, e, por último,
c) a decisão pelo voto útil é individual e deve ser tomada com consciência, dada a importância do voto, um dos pilares básicos da democracia.
Escolher e votar é processo dos mais importantes na democracia e na escolha de nossos representantes, indiretamente, após a apuração dos votos. Acompanhar a execução das políticas públicas dos eleitos é tão importante quanto escolher os políticos futuros ocupantes dos cargos públicos.
Edson Gabriel Garcia, 2002, outubro vibrante, eleições à flor da pele, esperançosas de tempos mais democráticos e menos sombrios.
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CURIOSIDADES SOBRE ELEIÇÕES
Para além do prazer que esta festa cívica nos proporciona, há por trás, por dentro e nos lados, inúmeras histórias e informações que a data nos proporciona. Não chegam a ser “curiosidades” no sentido literário da palavra, mas curiosidades interessantes que merecem e valem o registro. Vamos a algumas delas.
1.Calendário Eleitoral
O calendário (palavra de origem da língua grega, calendas, que significava um livro de registro com o primeiro dia de cada mês) é enorme e traz datas desde o ano anterior, registrando fatos/eventos/registros necessários de uma eleição, que só termina com a apuração e posse dos eleitos. Partidos, eleitores e justiça eleitoral devem se ajustar e se preparar para atender todas as demandas estabelecidas no calendário, que estabelece, entre tantas coisas, desde a data para mudança de zona eleitoral até o estabelecimento de como se pode fazer campanha no dia anterior à eleição propriamente dita. É de responsabilidade do Tribunal Superior Eleitoral.
2.Justiça Eleitoral
O Brasil é um dos poucos países do mundo que tem uma justiça própria para as eleições, criada em 1932, curiosamente por um governo ditatorial, com órgãos regionais (Tribunais Regionais Eleitorais e seus cartórios) e com o órgão nacional superior, o TSE. Os ministros do TSE cumprem mandatos e não são efetivos, mas sim emprestados dos demais órgãos superiores da justiça.
3. Urna Eletrônica
A (r)evolução da tecnologia nos trouxe a possibilidade de se votar de forma mais econômica e mais rápida, principalmente no quesito apurações. Em 1996, algumas urnas eletrônicas foram testadas em poucos municípios. Em 2000, todo o país votou registrando o seu voto em urnas eletrônicas, processo que vem se mostrando exitoso e, até o momento, à prova de fraudes, com acompanhamento de testagem feita por partidos políticos, OAB e Ministério Público. Desde então, todos os políticos eleitos acataram o resultado das urnas eletrônicas e tomaram posse sem nenhum problema ou contestação.
4. Os Eleitores/as em números
Alguns números são impressionantes e mostram a grandeza do eleitorado brasileiro, indiferente à discussão sobre a obrigatoriedade do voto, que está apto para ir às urnas.
Total de eleitores cadastrados: 156.454.011, registrando crescimento de 6,21% sobre o cadastro geral de 2018. O SUDESTE é a região com maior número de eleitores: 42,64%. As mulheres são maioria no colégio eleitoral: 52,65%. Os locais de votação estão distribuídos em 496.512 seções eleitorais, agrupadas em 2.637 zonais eleitorais.
Os eleitores/as estão distribuídos/as em 5570 cidades brasileiras além de 181 cidades localizadas em outros países.
5.Nomes Sociais
Pela terceira vez consecutiva, pessoas transgênero, transexuais e travestis poderão votar com seu nome social (o nome que escolheram ver impresso no título de eleitor), garante a Justiça Eleitoral. Neste ano, 2022, 37.646 eleitores votarão com esta condição aceita, usando o seu nome social, perfazendo um total de 0,02% de todo o eleitorado apto, registrando um sólido aumento se comparado a 2018, cujo número foi de 7.945. Na divisão por gênero, são 20.129 eleitoras e 17 517 eleitores.
6.Eleitores cujo voto é facultativo
No Brasil, o voto é facultativo (não é obrigatório) para os jovens de dezesseis e dezessete anos e para pessoas com mais de setenta anos, conquistas estabelecidas na constituição vigente. Neste ano, 2022, um total de 2.116.781 jovens estão credenciados para votar, registrando um crescimento superior a cinquenta por cento comparando-se com 2018. Esse crescimento pode ter sido resultante de campanhas institucionais (Semana do Jovem Eleitor, promovida pela Justiça Eleitoral) e pelo aumento do interesse dos jovens por política. Interesse que poderia ser maior se as escolas se abrissem, como deveria ser aberto o currículo para se discutir o cotidiano político, como uma forma de se compensar o estrago que o regime militar fez afastando os jovens e estudantes da Política . Os eleitores acima de setenta anos também cresceu, saltando de pouco mais de doze milhões para um número perto de quinze milhões.
7.Grau de Escolaridade
O eleitorado de 2022 apresenta uma diferença de escolaridade interessante de ser registrada: a maioria se declarou certificada com o ensino médio completo, 26,31 %, diferentemente do conjunto de eleitores de 2014 e 2918, cuja principal faixa era composta por eleitores com ensino fundamental incompleto. Brasileiros no eleitorado atual com fundamental incompleto correspondem apenas a 22,97 %. 10,95 % declararam ter o ensino superior completo.
Por último, para além de polarizações – que quase sempre uma eleição em dois turnos possíveis indicam -, vale lembrar uma discussão já feita de outra vez sobre o voto obrigatório e o voto facultativo, em que se misturam os direitos e os deveres do cidadão. Vale também chamar a atenção para o voto tido como útil (a mudança do voto, de última hora, migrando de um candidato possivelmente sem chance de ir para o segundo turno para um candidato com chance de ir para o segundo turno ou de vencer no primeiro turno). São discussões ainda em aberto, à espera de novos argumentos de um e de outro lados.
Edson Gabriel Garcia, 2022, de braços com um outubro bem-vindo, os olhos no voto, na apuração e num futuro político intensamente democrático.
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Cabo eleitoral: triste sina de um agente político
Se há na Política uma função (não chega a ser cargo) mais desprezada do que a de um cabo eleitoral, não conhecemos. No entanto, um cabo eleitoral tem uma função importante junto a um candidato ou a um partido, no sentido de buscar votos para ambos e buscar ampliação de filiados para a agremiação. Talvez o nome não combine muito com a função e contribua para esse menosprezo, afinal, cabo é nome da parte de um objeto que se pode segurar ou empunhar, e designação de uma patente militar pouco reconhecida. Pode ser que o nome “cabo eleitoral” tenha surgido do primeiro significado, da parte do objeto que se empunha ou se segura, associando-se a figura eleitoral a quem empunha ou segura uma bandeira, um porta-estandarte. Cabo eleitoral pode ter surgido da função de segurar bandeiras de partidos ou candidatos (algo cada vez mais distante do nosso cotidiano, visto as proibições/restrições do uso de bandeiras e o crescimento vertiginoso das campanhas pelas redes sociais).
Origens da expressão à parte, o fato é que ninguém se elege sozinho, sem a militância de cabos eleitorais. Tampouco um partido se desenvolve sem cabos eleitorais divulgando sua ideologia e buscando convencer futuros filiados e eleitores da qualidade política do partido. Esta é sua função básica: votos para o candidato e para o partido, bem como ampliação dos filiados. Cabos eleitorais surgem mais intensa e visivelmente nas pré-campanhas e campanhas em que se disputam cargos no Executivo e Legislativo.
Do ponto de vista trabalhista, um cabo eleitoral pode ser remunerado ou trabalhar voluntariamente. Em qualquer uma das situações, ocorrerá acordo entre o cabo eleitoral e o candidato/partido.
Do ponto de vista funcional, um cabo eleitoral é, sempre, o elo entre o candidato/partido e o eleitor/futuro filiado. Um cabo eleitoral divulga as propostas de ambos e defende o voto no político que representa. Em tese, imagina-se que para além do vínculo entre as partes, um cabo eleitoral deva confiar e concordar com as ideias por ele propagadas. Fora disso não há nenhum sentido e ele não passará de um mero empunhador de bandeiras e distribuidor mecânico de propagandas políticas. Podemos, no entanto, classificar, sem nenhuma possibilidade de esgotar o assunto, um cabo eleitoral de acordo com suas tarefas e funções:
-o comprador de votos: talvez seja essa a tarefa mais ingrata de um cabo eleitoral, e que faz pesar nos seus ombros a má fama. Comprar votos é o modo mais mesquinho de desqualificar uma eleição. Voto não tem preço e quem vende seu voto (seja por sanduíches, por uma viagem, por um passeio, por uma dentadura, ou por um punhado de notas sujas) vale menos que o valor pago;
-o transportador de eleitores: leva ou busca para votar, bancando o transporte, de um lugar ao outro:
-o político local (em exercício de cargo eletivo ou não), dono de influência regional: atua no sentido de dar mais densidade eleitoral, com mais votos, para o candidato o qual representa. É comum, por exemplo, um entre tantos possíveis, um vereador de um município entrar na campanha de um candidato a deputado estadual (os acordos e interesses nessa cooperação podem ser vários);
-cabos eleitorais disfarçados em outras funções: dispõem de audiência própria numerosa que ouve e segue seus conselhos, sejam eles de natureza política, moral ou religiosa. Padres, pastores e afins, ídolos culturais e influencers, entre outros, “orientam” seu rebanho de forma direta ou sutil em quem votar (ou não votar);
-o cidadão comum, sem vínculo direto, sem acordo de trabalho, que acompanha a Política, decide apoiar e ajudar um candidato e um partido.
De modo geral, embora possa parecer estranho, o maior, melhor e mais confiável cabo eleitoral de um candidato é ele mesmo. O seu trabalho como agente político, eleito ou não, de todo os dias, mês após mês, ano após ano, é o seu cartão de visita, sua bandeira a ser empunhada. E ele faz melhor do que ninguém.
A moeda de troca é a ideologia, visão de mundo e propostas do candidato/partido (quem arrisca dizer que não há ideologia por trás disso): pautas moralistas, pautas econômicas e religiosas disputam sorrateiramente ou com muito alarde o voto do eleitor. Por trás da escolha entre, por exemplo, um candidato que prega o armamento da população como forma de defesa e um candidato que prega o desenvolvimento da nação pela educação, haverá certamente, ainda que de forma inconsciente, uma escolha ideológica com base na visão de mundo dos candidatos.
Finalizando estas breves considerações, temos que considerar que a) a tarefa/função de um cabo eleitoral faz parte do jogo democrático, da disputa por corações e mentes, tendo como argumento básico a posição ideológica de quem se defende. Assim como o lobby e o advocacy também fazem; e
b) a chegada definitiva e avassaladora das redes sociais descolocou parte substancial da disputa ideológica pelo voto em outro espaço público: o virtual, com todos os erros e acertos que acompanham essa mudança.
Seguimos, com o cabo eleitoral se locomovendo no cenário político democrático, vivendo sua triste sina.
Edson Gabriel Garcia, 2022, setembro se entregando aos braços sutis e esperançosos da primavera. Nossa primavera chegando.
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Brevíssimo e sempre útil manual para eleitores (pre)ocupados com eleições
Sem ser definitivo, posto que em matéria de Política nada é para sempre, arrisco pensar precocemente sobre um manual para eleitores e sugerir duas ou três coisinhas, que até podem passar de meia dúzia de dez, sobre este assunto tão próximo de nosso cotidiano.
1.Regra essencial: interesse-se por Política, sempre e não só em ano de eleição. A Política está cotidianamente presente em nossa vida, querendo ou não, gostando ou não. As regras de votação mudam quase em todas as eleições, uma razão suficiente para você se antenar no assunto. Horário gratuito, regras de publicidade, dinheiro do fundo eleitoral, urnas eletrônicas... tudo isso se deu muitas vezes nos anos anteriores e, se você pegar o bonde andando, correrá o risco de entender as coisas apenas parcialmente.
2.Regra básica: atente-se ao histórico dos partidos políticos e dos candidatos. A história nunca é apagada. A trajetória política dos partidos e dos candidatos ajudam na escolha melhorada do voto. Não importa tanto reclamar que temos partidos políticos em demasia. Pela história dos partidos, dos nanicos e de aluguel aos mais sérios, você terá um caminho recheado de informações necessárias ao voto. Por exemplo: desde a ditadura, que criou a figura bizarra do bipartidarismo, pra onde foram se instalar os políticos do ARENA, partido que sustentou o governo militar e suas atrocidades? PDS, PFL, PP, Democratas, União Brasil...
3.Regra complementar à regra básica: consulte os programas de governo dos partidos e de seus candidatos. Os programas de governo devem ser claros, objetivos, com propostas bem definidas. Programas de governo apontam a direção para onde o candidato, se eleito, quer conduzir o país. Se um candidato expressa seu programa em privatizações, você pode deduzir que sua proposta é acabar com o patrimônio público, construído ao longo dos anos, vendido na bacia das almas. Tampouco se deixe enganar por slogans e discursos generalistas. É comum, por exemplo, que todos apontem investimentos em educação (quase um clichê), mas isto deve ser cruzado com outras ações do partido em governos anteriores ou em votações de legislação pertinente.
4.Regra básica número dois: cuidado com candidato outsider, marginal, oportunista ou arrivista, que promete fazer tudo “diferente do que aí está", pregando um novo jeito de fazer Política. Estes, com certeza, sãos os primeiros a voltarem atrás em suas declaradas intenções políticas. Temos exemplos escancarados e recentes na história brasileira: um presidente que renunciou (1961), um que também renunciou (foi deposto, na sequência por impeachment -1992) e outro despreparado sem nenhum plano de governo.
5.Regra da sociedade líquida: atente-se às fake news. Os tempos têm um manto opaco cobrindo nossa lucidez, essas tais mentiras virtuais que se esparramam em velocidade espantosa. Há muito ficou para trás o senso comum estabelecido no provérbio “a mentira tem perna curta”. Não tem mais: sua perna, ou melhor, os seus tentáculos avançam aceleradamente, mais e mais do que as verdades. Negacionistas, membros dos gabinetes do ódio, homofóbicos, fascistas e necropolíticos, muitas vezes financiados por empresários nacionais ou estrangeiros, contaminam as redes sociais com seus textos, mensagens e imagens mentirosas, preconceituosas e negacionistas. Não repasse mensagem da qual você não tenha efetivamente uma fonte credenciada, confiável e capaz de comprovar a mensagem.
6.Regra geral: discuta sempre política. Diferentemente do que prega um ditado popular (Futebol, Religião e Política não se discutem!), a Política tem que ser pensada, comentada, ouvida, discutida e decidida. Em todos os espaços possíveis. Da Igreja à Escola, principalmente nesta. É na escola que estão os jovens e estes, mais do que todos, precisam saber sobre política, sobre os conceitos da política e sobre seu funcionamento. Os ignorantes e atrasados politicamente tentaram impor um projeto chamado Escola sem Partido, mas foram derrotados em todas as instâncias. Escola sem discussão viva da Política é uma escola fora do seu tempo.
7.Regrinha adjetivada: se você for adjetivar o seu voto, que o adjetivo escolhido seja “consciente”. Não troque nem venda seu voto. Ampare-se nas regras anteriores e decida-se. E lembre-se (apenas para sua informação): votos nulos e brancos, mesmo em forma de protesto, pouca serventia têm uma vez que o seu percentual é mínimo. O voto consciente é um dos pilares sólidos da democracia.
8.Regra de alerta: odeio Política. Descontamine-se deste sentimento. Mantendo o distanciamento odioso da Política, o que se faz é entregar a Política nas mãos dos maus políticos.
9.Regra de encanto: perfume-se com seu aroma preferido, vista uma roupa de prazer e vá às urnas.
10.Regra de conexão: nunca se desligue da Política. Ela não se desliga de você. Depois de votar, acompanhe o seu candidato e cobre dele, pelos canais de participação, coerência com seu programa de partido, com as políticas públicas necessárias, com a ética na Política.
Isto não é tudo. Votar é parte da ação cidadã de cada um de nós. A outra parte é a participação cotidiana na vida política de nosso país.
Edson Gabriel Garcia, 2022, meados de um setembro de lutas, expectativas, pesquisas eleitorais e muito esperançamento por novos tempos.
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Público e Privado
O tema não é novo. É tão antigo quanto é a organização social e política de cada comunidade. E tão presente nos dias atuais, visto que a tal privatização tem sido objeto de falas de candidatos, como proposta para a solução dos muitos males que afligem a nossa sociedade. Mais do que nunca o embate entre o Estado e a Sociedade está acentuadamente presente em nosso cotidiano. A história da humanidade registra alguns marcos da discussão desses conceitos, por exemplo, a existência da Ágora, dos gregos, como espaço público para discussão dos problemas de sua sociedade. Os romanos, em sua clássica civilização imperial, que tanto nos fez herdar, acrescentou à história tratados sobre o direito público e privado. A discussão deve ser mais profunda do que as anotações que aqui faremos, visto ser apenas um começo de conversa – de uma conversa que pede pra ser aprofundada.
Comecemos pela definição aproximada do que seja uma e outra coisa. O que é o público e o que é o privado?
Nos acostumamos gramaticalmente a ler estes conceitos como adjetivos, sempre acompanhando substantivos. Aqui, no entanto, vamos tratá-los como substantivos, abstratos, conforme a escorregadia classificação gramatical.
Público é a esfera em que o exercício do poder se dá entre iguais em oposição ao privado que vem a ser o exercício do poder e das relações que se dá na intimidade, no particular. Na esfera pública (hoje também chamada de esfera cívica) busca-se a igualdade nas relações e a liberdade de discussões em busca das decisões coletivas, consensuais, aclamadas pela maioria. Na esfera privada, grosso modo, prevalecem relações com base no poder e na desigualdade. No espaço público busca-se o exercício da igualdade, pelo bem comum; no espaço privado, ocorre o exercício da liberdade na desigualdade. Pode-se afirmar que no espaço público a atuação é do cidadão coletivo, de uma sociedade de iguais, e, no privado, é a consolidação do indivíduo, o não-cidadão, de uma sociedade de desiguais.
A conciliação, em uma sociedade, dessas duas esferas, é o ponto de equilíbrio que norteia toda a história da humanidade: onde concentrar o maior poderio? Na coletividade ou na individualidade? Na força do coletivo em busca da igualdade entre os homens ou na liberdade da desigualdade?
Com a evolução dos tempos, e a natural complexidade da sociedade, os Estados criados a partir do século XV foram tomando corpo e se fortalecendo (não necessariamente na direção de uma sociedade de iguais), ao mesmo tempo em que as relações econômicas, tão presentes no direcionamento das decisões políticas, foram constituindo o “mercado” (oportunistamente na direção de uma sociedade de desiguais). As relações entre o Estado e o cidadão são balizadas por leis (não necessariamente atendendo ao princípio de que todos somos iguais perante a lei ou a lei deve ser igual para todos, como deveria ser) e as relações defendidas pelo Mercado são marcadas pelo contrato. O espaço público, dada a complexidade das sociedades, não mais se dá na praça, mas no regramento das leis (onde, porquê e como são feitas) e o Mercado cresce em seu modelo de pregação da força econômica sobre as demais. Essa disputa, com caras, estudos e compreensões diferentes do que seja a organização de uma sociedade, “estatalistas” versus “capitalistas”, o bem estar social da maioria ou a disputa desenfreada capitaneada pela força do dinheiro vem se acentuando, como uma disputa entre os que defendem Estado forte e maior e os que defendem a mínima intervenção do Estado. Isto sempre se deu e continua ocorrendo diariamente. Basta assistir as últimas campanhas políticas eleitorais e prestar atenção nas falas dos candidatos: de um lado, as propostas de um Estado mais forte, arrecadador e assistencialista, compensador das desigualdades históricas entre os cidadãos e, do outro lado, a defesa de um Estado pequeno, mínimo, que deixe nas mãos do (deus) Mercado (capital/dinheiro) a regulamentação das relações entre as pessoas. De um lado, um Estado protetor, em busca de uma sociedade menos desigual, e, do outro lado, uma sociedade livre de intervenções, individualista e que permita e estimule a cada um o exercício de sua liberdade e competências, guiada, sobretudo, pelo lucro. Não é um arranjo fácil de se fazer e nem tampouco de se notar.
É a Constituição Federal que estabelece os alcances e os limites entre um e outro. É a Carta Magna que estabelece o tamanho do Estado e as garantias do cidadão. Nossa Constituição atual, por exemplo, cujo codinome é Constituição Cidadã, tem essa marca de um Estado maior, inclusive com o Presidencialismo forte, com traços autoritários, é farta em definir relações entre as pessoas e garantir a elas direitos historicamente negados. Não é sem razão que os grandes donos do capital e do dinheiro, os “capitalistas” criticam a todo momento o tamanho do Estado brasileiro e pregam abertamente um “Estado Mínimo”, e clamam por reformas na Constituição (algumas, por exemplo, sobre direitos trabalhistas e privatização de grandes empresas estatais já vem sendo feitas nos últimos anos). Enquanto não conseguem seu intento, contentam-se, e bem, com intervenções na Política que fazem o Estado trabalhar para os donos do grande capital e grandes fortunas. Pra citar apenas dois exemplos, você já deve ter ouvido falar “que os pobres e os trabalhadores pagam mais impostos do que os ricos”; “que vira-e-mexe, programas de perdão de dívidas tributaristas das grandes empresas são aprovados”; “que as grandes fortunas nunca são taxadas” etc, etc, etc...Os lobistas – de que já tratamos aqui – atuam fortemente junto aos políticos que definem leis, regras e programas de investimento do dinheiro público para que esse dinheiro seja sempre farto para obras e serviços privados. De igual modo, vale acentuar que nessa disputa entre “estatalistas” e “capitalistas” os segundos vêm ganhando uma batalha vista a olho nu: quando assumem governos ou conseguem colocar nos governos gestores privatistas, estes precarizam os serviços públicos, que atendem a maioria da população de menor poder – para desqualificá-los e poder privatizar. Privatizado, o serviço público, é caríssimo ao Estado e de baixíssima oferta ao cidadão. Você consegue imaginar se o nosso Sistema Único de Saúde (público), de qualidade incontestável, mundialmente reconhecido, fosse privatizado? Como ficariam os milhares de brasileiros incapazes de adquirir os caros planos de saúde?
Eis, portanto, uma visão rápida sobre o Público e o Privado, suas caras e suas lutas, para que você, mais do que nunca possa se situar e defender sua posição política nessa questão que afeta, querendo ou não, sabendo ou não, a vida cotidiana de todos nós.
Edson Gabriel Garcia, 2022, setembro de pátrias doloridas que buscam curar feridas e correr pro abraço humanitário.
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Direitos e Deveres do Cidadão
A história da conquista dos nossos direitos como cidadão é longa e data de muitos séculos atrás. Antes de continuarmos com a história convém repassar o conceito de cidadão, como o indivíduo que faz parte de uma determinada cultura e vive em um território delimitado, tendo direitos a serem respeitados e deveres a serem cumpridos, ambos estabelecidos em leis (a maior delas, a Constituição Federal – proclamada em 1988). Direitos e deveres não podem e nem devem andar separados. Se um cidadão luta por seus direitos deve, sempre, cumprir seus deveres. Este é um postulado básico da cidadania, essa condição inalienável de se viver em uma “cidade”.
Podemos marcar um ponto, mais ou menos exato, na história da humanidade próximo da Revolução Francesa (1789), como o primeiro marco dessa luta. Em meio a uma crise econômica pesada, que levou a uma crise política sem precedentes, os franceses foram às ruas (as ruas!!! Sempre, as ruas!!!) por mudanças gerais. É nesse ano que se crava o surgimento da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, oriundo dessa luta mais intensa por direitos de “igualdade, fraternidade e liberdade”, os lemas da citada revolução. Num salto de mais de duzentos anos, permeado por lutas, disputas, guerras civis ou internacionais, acordos, conquistas etc. chegamos ao século XX, 1948, com a proclamação pela Assembleia geral da Organização das Nações Unidas-ONU, da Declaração Universal dos Direitos Humanos em longos e intensos, mas decisivos e absolutamente pertinentes à dignidade da vida humana, trinta artigos.
No Brasil, país sabidamente colonizado e dirigido por uma elite de poderosos e gananciosos, sempre de olho no seu patrimônio e privilégios, a história é mais conservadora e menos condescendente com os direitos humanos. Primeiro foram as lutas pela Independência (1822) e pela Proclamação da República (1889), com cerca de sete décadas entre uma e outra, e Abolição da Escravatura no calcanhar da República, e somente depois a luta por direitos humanos começa a marcar presença aqui e ali, com a conquista de pequenas migalhas nesse universo dos direitos humanos. Basta lembrar, por exemplo, a longa e dura luta pelo voto secreto e universal, que apenas foi conquistado em sua plenitude na CF de 1988. Ou a universalização (vagas para todos) da educação básica. Muitos dos “direitos humanos” hoje vigentes foram efetivados nessa última Carta Magna, sendo por isso mesmo tendo passado à história como a Constituição Cidadã.
Vejamos alguns dos direitos humanos consagrados na Constituição (e por muitos dos quais ainda temos que lutar cotidianamente):
-igualdade perante a lei (A lei é a mesma para todos, qualquer que seja a etnia, a opção religiosa, a sexualidade, a posição social, a condição econômica. Havendo desrespeito desse direito, pode-se propor na justiça um mandato de segurança.);
-intocabilidade do corpo (Ninguém pode sofrer tortura ou tratamento constrangedor. Tampouco assédio. Prisão, por exemplo, só pode ser feita com mandado judicial. Acusação contra o desrespeito desse direito precisam ser comprovadas. Há diversos mecanismos legais que protegem esse direito e abrem espaço pra a reclamação jurídica.);
-liberdade de expressão de atividades artística, científica, literária, intelectual e de comunicação (Todos/as temos liberdade para expor o seu pensamento e criações sem que alguma autoridade possa impedir essas manifestações.);
-liberdade de se reunir e escolher crença religiosa bem como agremiação partidária política (Qualquer cidadão ou cidadã pode marcar e participar de reuniões abertas ou fechadas em qualquer lugar, criar associações e participar de manifestações públicas. O limite é o respeito aos direitos dos demais cidadãos)
-ir e vir (Em tempos de paz, você pode se locomover, indo e vindo, para qualquer lugar do país); habeas corpus
-direito à informação (Esse é um direito de mão dupla: informar e ser informado. Liberdade de imprensa e ausência de censura prévia caracterizam a essência desse direito. Vale registrar os tristes episódios de censura no regime militar. Ou de se colocar em sigilo, não abertas ao público, informações pessoas de políticos no exercício de cargos públicos. Inaceitável.)
-de petição (Qualquer cidadão pode fazer petição – ato de pedir – contra abusos de poder, de autoridade, requerer certidões, dados informativos ou esclarecimentos de situações de interesse pessoal. Por este direito, pode-se propor ação popular contra atos dos governos que demonstrem inconsistência e descuido administrativo com o patrimônio público, meio ambiente, obras desnecessárias ou custosas, etc)
-de propriedade (Propriedades são respeitadas, ainda que sobre elas paire a intenção de sua função social. Propriedades podem ser desapropriadas em razão de uso social ou público, justificado pelos governos. Ao proprietário cabe indenização justa, direito seu inclusive de pleitear na justiça o valor carreto de mercado pelo imóvel desapropriado. Obras intelectuais, científicas e artísticas, bem como inventos, marcas, nomes e outros registros pertencem ao seu autor/criador/inventor/a).
-direito à privacidade de vida, intimidade e inviolabilidade de dados relativos a sua vida pessoal, sobretudo. Nada do que é seu pode ser violado, invadido, posto a público, salvo por ordem judicial. Em tempos de hackeamentos frequentes e abusados, toda atenção é pouca).
Acrescente-se a esta lista, o direito de exercer qualquer profissão e estabelecer qualquer negócio e o direito de decidir se quer ou não fazer determinada coisa – desde que a lei não obrigue. Há instrumentos legais, tais como, o Habeas Corpus (quando autoridade não respeita o seu direito), Mandado de Segurança (desrespeito ou ameaça contra um direito seu) e Medida Cautelar (que busca impedir restrição de direito estabelecido em lei).
No entanto, finalizando, vale registrar que a existências desses direitos, estabelecidos na Constituição Federal (e mais detalhados em legislação infraconstitucional) não garante por si só o respeito aos direitos humanos. Precisamos nos valer de mais conhecimento das leis e das práticas que estas condicionam, cobrar a responsabilidade do Estado e de nós mesmos, uma vez que a cidadania é construída por todos, cotidianamente. De todos, num movimento solidário de apoio e conscientização também aos menos confortáveis, cidadãos sem constituição, tão pobres são, e do exercício constante da via de mão dupla: humanos são o respeito aos direitos e o cumprimento dos deveres respectivos.
Edson Gabriel Garcia, 2022, setembro chegando de mãos dadas com uma primavera de esperança por novos tempos no cotidiano de nossa Política.
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Língua, pensamento e liberdade: distanciamento da ignorância e do autoritarismo
Costumo dizer que “a leitura faz de cada um de nós uma pessoa melhor”. Não tenho nenhuma evidência científica desse lema, salvo uma certeza tão frágil como qualquer certeza nestes tempos de ignorância abundante de que a leitura, processadora do conhecimento, atua no sentido de melhorar o repertório de conhecimento e, dessa forma, possibilitar o entendimento de questões que norteiam nossas posturas e atitudes, para melhor. Continuo com essa premissa à frente e a história ao lado.
A leitura, o gosto por ela e o compromisso de se formar leitores autônomos, pode e deve ser trabalhado em casa e na escola. Em casa, de forma mais maleável, mais social, menos impositiva, mais exemplificada pelos pais ou responsáveis pela educação das crianças e jovens. Na escola, por força do currículo e obrigatoriamente por ser esta sua função natural, de forma organizada, contínua e qualificada. Como política pública de Estado. ....
A leitura, aqui me refiro à prática de dialogar com textos escritos no código linguístico e dele se extrair ou construir novos significados, altera conhecimentos anteriores, ampliando visão de mundo e, sobretudo, aumenta o repertório de respostas à história pessoal e social de cada um. Paulo Freire, um dos maiores educadores brasileiros, o mais reconhecido das últimas décadas, legou para nós o conceito “leitura de mundo”, um entendimento mais amplo do que seja a leitura. Mesmo alguém pouco ou nada letrado é capaz de entender o mundo e realizar intervenções na história, jogando por terra um eventual e preconceituoso entendimento que o analfabetismo linguístico diminui a qualidade de uma pessoa. A “leitura de mundo”, neste sentido, precede e gabarita a leitura dos textos escritos. Dito isto, voltemos à leitura social, pessoal e escolar dos textos escritos.
Diferentemente dos demais animais que habitam o planeta, a espécie humana desenvolveu de forma privilegiada a linguagem, capacidade de se comunicar por um código artificial, criado e aperfeiçoado ao longo dos milênios: a língua. A língua, cujos primórdios remontam a cerca de quatro milênios antes de Cristo, peculiaridade da espécie humana, permite a comunicação presente, o registro histórico e o planejamento do futuro. Todas essas ações linguísticas, ainda que auxiliadas por outros suportes físicos, se fazem pelo pensamento. Pensar, raciocinar, cerebrar, mentalizar, projetar, imaginar... O pensamento e sua irmã siamesa, a língua, estão juntos e misturados na maioria das manifestações significativas da espécie humana, determinando-se mutuamente. Não é sem razão que regimes autoritários e ditatoriais, em qualquer situação e amplitude, da família aos sistemas de governo, atuam no sentido de limitar o uso da língua e cercear o pensamento. Falar, escrever e ler, pensar, dizer, criticar e querer mudar condições são impensáveis para os ditadores e autoritários de plantão. Essa operação abafa se apresenta de diversas formas: silenciamentos, fechamento de espaços públicos de livre conversa e pensamento, aviltação da educação, disseminação do medo e dos discursos de ódio, leis autoritárias, cassações, censura. Os silenciamentos se dão pelo preconceito, pela negativa de voz a muitos segmentos sociais e pela ausência de discussões programadas de temas do nosso cotidiano, associados ao fechamento de espaços públicos para discussões. O aviltamento da escola pública oferecida aos milhões de brasileiros, seja pela tendência do tecnicismo barato, pela ausência de boa formação dos educadores, pela restrição de conteúdos curriculares e pela tibieza das propostas de leitura e escrita, contribui de maneira muito sólida para o emburrecimento do pensamento. Mais do que criativa e livre, a escola passa por um cenário de medo e reclusão. A edição de leis autoritárias e a disseminação de discursos armamentistas e de ódio nos empurram para o claustro do pensamento diminuído. A censura, muitas vezes velada, principalmente sobre publicações, imprensa e liberdade de expressão, concorre para o embrutecimento do pensamento. Paralelamente a tudo isso, as redes sociais carreiam um movimento de empobrecimento dos recursos de uso da língua (de longe, o mais poderoso instrumento de construção do pensamento): pelo encurtamento preguiçoso das palavras, pela quase abolição da pontuação, pelo desuso acentuado de tempos verbais compostos e pela insidiosa supressão de períodos compostos mais elaborados. São os algozes do idioma, a serviço de achatamento do pensamento, tornando-o tão plano quanto são os pensamentos dos ditadores e autoritários donos do discurso.
Essa situação toda, ainda que aqui discutida apenas superficialmente, nos induz a afirmar que o empobrecimento do uso da língua empobrece o pensamento e que pensamentos empobrecidos dificultam a elaboração de pensamentos mais complexos. Entender a Política, aceitá-la como fundamento da vida social, driblando o senso comum e as ideologias que a afugentam, passa necessariamente pelo repertório de palavras, ideias e pensamentos.
Fecho as reflexões com a ideia subjacente ao título: o exercício livre, intenso e frequente da língua e do pensamento nos afastam irremediavelmente da tirania da ignorância, da obtusidade e do autoritarismo.
Edson Gabriel Garcia, 2022, agosto quase findo, se abrindo para as lutas setembrinas repletas de esperançosa mudança política.
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O Estado Democrático de Direito
Em todo o mundo, nas nações democráticas, muito se fala na defesa do Estado Democrático de Direito. Muito se fala e pouco se entende? Talvez... O que significa, em Política, esse tal Estado Democrático de Direito?
Vale a pena arriscarmos algumas linhas para a melhor compreensão do que essa expressão realmente significa.
Primeiramente, convém definir o que é um Estado. Um Estado significa o conjunto do seu território geográfico, seu aparato de leis, instituições e serviços públicos, os valores e o comportamento do seu povo. O Estado não se confunde com o Governo, pois este é passageiro – tem mandato temporalmente definido – e aquele é mais duradouro. Um Governo exerce o mando em nome do Estado, mas não se confunde com este. Governo significa o conjunto de políticos que por eleição ou por indicação, ocupam cargos nas instâncias dos três poderes. O Estado sempre será um agente de poder, de mando, de dominação. Representa o poder político e se impõe sobre os cidadãos (democraticamente ou autoritariamente). Quando falamos que as políticas públicas devem ser de Estado e não de um Governo, o que fica claro é que ao Estado cabe a tarefa de delinear a sociedade que quer para o seu povo. Se nos referimos, por exemplo, ao forte preconceito com os negros ao longo da história e que por isso a sociedade tem uma dívida social com esse grupo, a referência é ao Estado e não a este ou aquele Governo. Um Governo exerce temporariamente o poder de mando, em nome do Estado. Esse poder de Estado é definido e sustentado pela Constituição Federal. A Constituição define e estrutura o Estado, e o Estado constituído se garante na Constituição e na sua defesa e cumprimento, pois esta é a lei maior de uma nação. Por isso nos referimos a um Golpe de Estado, quando ocorre uma mudança brusca de forma de governo, uma ruptura, saindo de um Estado Democrático de Direito (em que os direitos políticos, civis e sociais deixam de ser respeitados) para um Estado Ditatorial (em que todos os poderes são concentrados na mão de uma pessoa, civil ou militar, autoritariamente e os direitos são abolidos.
O Estado pode exercer o seu poder de mando de modo democrático, com base na harmonia dos três poderes constitucionais (Executivo, Legislativo e Judiciário) ou pode exercer o poder pela força, pela exceção, concentrando o poder nas mãos de uma só pessoa (ditador) ou de um grupo (geralmente militar, com apoio das elites econômicas dominantes). Em oposição ao Estado Democrático (que segue a Constituição e se pauta pela harmonia dos três poderes, mesmo havendo discordâncias entre eles), há o Estado de Exceção, caracterizado pela censura, pela tortura, pela prisão de quem pensa ou fala diferente, pela eliminação de quem se opõe, pela opressão, pelo medo imposto e pela falta de liberdade. O Estado da Força, de Exceção, ignora a divisão dos três poderes, rompe com as normas constitucionais (ou impõe uma Constituição autoritária) e concentra as decisões, o poder, a força e o mando, não abre espaço para ouvir a Sociedade Civil. São eles governando para nós, sem nós. O Estado Democrático se sustenta no cumprimento da Constituição e exerce o poder em nome da sociedade como um todo. Que fique claro que apenas uma Assembleia Nacional Constituinte, eleita democraticamente pelo voto do povo, tem o poder de alterar a Constituição ou de escrever outra carta. A última Assembleia Nacional Constituinte foi eleita em 1986 e iniciou seu mandato em fevereiro de 1987 com o objetivo de escrever uma nova carta democrática para o país, após o fim da ditadura, no primeiro governo democrático. A Constituição escrita foi promulgada em 1988, com o codinome de Constituição Cidadã, visto ter sido a que mais se preocupou com os direitos civis e políticos dos brasileiros.
É nesse sentido, na direção da Constituição Cidadã, na observação dos direitos dos cidadãos, que falamos de um Estado (conjunto do aparelhamento legal e institucional) Democrático (com base no respeito ao exercício respeitoso e independente dos três poderes e da observação dos preceitos constitucionais) de Direito (garantia de respeito aos direitos civis e políticos dos cidadãos).
Em síntese, Estado Democrático de Direito é a forma de organização do poder, estruturado na relação harmônica e autônoma dos três poderes, que governa em comum acordo com a Sociedade Civil, sob a égide da Constituição e em respeito aos direitos do cidadão. A luta pela manutenção deste Estado é perene, não se forja no descompromisso nem tampouco na desinformação. É a luta constante da informação e do conhecimento contra o esquecimento histórico. A ignorância encobre e disfarça a incompetência e a intolerância.
Um Estado Democrático de Direito não é dado casualmente nem sem esforço coletivo: é construção diária contra as bestas do autoritarismo, portadores de cinismo e da burrice política, e seus atos de atropelo do diálogo, de deboche das regras constitucionais, da exaltação ao ódio e do profundo desrespeito às pluralidades e diversidades de comportamentos.
Edson Gabriel Garcia, 2022, agosto meando, mais uma campanha política nas ruas, corações e mentes dispostos na boa luta.
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Cartas aos brasileiros e brasileiras: a Política escrita nas cartas
A palavra carta é plurissignificativa. Falamos de Carta Magna para nos referir à nossa Constituição Federal (documento legal), falamos de carta para citar programas políticos de governo, falamos de carta para anunciar nossas intenções ambientalistas (Carta da Terra) e falamos, entre outras tantas referências, de cartas de amantes, de familiares, de amigos, de correspondentes, carta aos leitores e/ou carta dos leitores na imprensa escrita, etc. O gênero “carta” é um dos mais flexíveis em sua estrutura modular e se presta, por conta dessa elasticidade textual, a diversas situações e a diferentes mensagens. Quem nunca escreveu uma carta (ou seu parente mais irreverente, o bilhete)?
Em Política, a presença deste gênero de texto é muito comum. Em inúmeras ocasiões, a carta foi usada para estabelecer uma comunicação do político (ou dos que fazem Política) com seus seguidores, correligionários, eleitores ou compatriotas. Nos escritos seguintes, vamos viajar na história e relembrar algumas dessas cartas que fizeram Política em seu tempo.
Voltemos ao passado. Lá pelos idos de 1954, agosto, Getúlio Vargas, eleito presidente do país (depois de um período como ditador, que ficou conhecido como Estado Novo), escolheu suicidar-se, diante das muitas dificuldades políticas que vinha enfrentando em seu governo, e deixar para os brasileiros uma Carta Testamento, explicando o contexto que vivia e seu gesto trágico. Ficou entre nós, da carta toda, seu pensamento final “Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História”. Certamente entrou para a história, ele e seus governos, períodos dos mais estudados da recente história política brasileira.
Saltemos de agosto de 1954 para agosto de 1961. Eleito também democraticamente e de forma bem expressiva, o populista Jânio da Silva Quadros, um campeão de votos e de carreira fulminante, deixou a nação de boca aberta ao entregar uma carta de renúncia, após míseros e inexpressivos sete meses de governo na recém inaugurada Brasília, nova capital da República. Usou o gênero carta para comunicar à nação, via Congresso Nacional, sua renúncia ao governo e as supostas causas desse ato também trágico. É dessa missiva o famoso trecho em que diz “Forças terríveis levantam-se contra mim e me intrigam ou infamam, até com a desculpa de colaboração”. Nesta curta frase, que acabou entrando para a história e para o folclore político brasileiro como as “forças ocultas” que derrubaram o presidente, ficaram expostas as dificuldades de articulação do político com pendores autoritários, que almejava, conforme inúmeras análises posteriores, governar sem amarras políticas (o desejo de todo ditador).
Vamos para 1977. A ditadura, por meio da força, manda calar a boca, atropela, censura, prende, mata. Em meio a esse caos de horrores, o Professor Goffredo da Silva Telles Jr escreve e lê, também em agosto, uma Carta aos Brasileiros. Ao mesmo tempo rememora preceitos básicos da Política e do Estado de Direito e nos alerta contra o Estado de Exceção – que vivíamos na época: “Toda lei é legal, obviamente. Mas nem toda lei é legítima”, certamente porque a origem de certas leis não é a vontade do povo, mas são forjadas no seio do Estado de Fato (ou de Exceção), em que a Força se sobrepõe ao Poder, que emana do povo. Afirma também que “...a fonte legítima da Constituição é o Povo”, o único dono do Poder Constituinte, que delega a uma Assembleia Nacional Constituinte para que esta, em seu nome escreva ou emende uma Constituição, a lei maior da nação. Reforça os ensinamentos sobre a diferença entre o Estado de Exceção e Estado de Direito, reafirmando que este é o Estado que respeita a ordem constitucional emanada do povo “Os outros Estados, os Estados não constitucionais, são os Esta¬dos cujo Poder Executivo usurpa o Poder Constituinte”. E mais: “São os Estados cujos chefes tendem a se julgar onipotentes e oniscientes, e que acabam por não respeitar fronteiras para sua competência. São os Estados cujo Governo não tolera crítica e não permite contestação. São os Estados-Fim, com Governos obcecados por sua própria segurança, permanentemente preocupados com sua sobrevivência e continuidade. São Estados opressores, que muitas vezes se caracterizam por seus sistemas de repressão, erguidos contra as livres manifestações da cultura e contra o emprego normal dos meios de defesa dos direitos da personalidade”. Alertemos os leitores mais jovens, na época da leitura da carta (11 agosto de 1977), estávamos imersos no auge da Ditadura Militar, sob a força de uma constituição outorgada (imposta) pelos ditadores militares, em 1967, o que justifica o teor de sua carta. A Carta é um documento de aprendizagem política, uma conclamação ao amadurecimento da consciência política, um chamamento ao orgulho da brasilidade contra os arbítrios do regime de exceção. “Ditadura é o regime que governa para nós, mas sem nós”: nada mais claro e explícito.
Em outro salto na recente história da Política brasileira, chegamos em 2002, junho, mais uma eleição para a presidência da República, a quarta depois de restaurada a democracia, pós ditadura militar. Lula, que disputava sua quarta eleição, na qual sairia vitorioso, escreveu uma carta ao povo brasileiro, embora o destinatário era mesmo o poderoso mercado financeiro, os donos do dinheiro, com o claro objetivo de acalmar a alta-roda da economia, preocupada com fake news (sim, nessa época...) sobre eventuais ações do possível governo dos trabalhadores no que dizia respeito ao dinheiro. Na carta, longa, o signatário critica o modelo econômico vigente, desgastado e fracassado, fala da esperança do povo em progresso econômico e social e da vontade popular em mudar o quadro econômico. “O povo brasileiro quer mudar para valer”, diz um trecho da missiva. E segue por longos parágrafos analisando a situação do país, sua economia, o desejo da distribuição das riquezas e propondo as mudanças necessárias, como seria um plano de governo. No último parágrafo, fecha a carta com “O Brasil precisa navegar no mar aberto do desenvolvimento econômico e social. É com essa convicção que chamo todos os que querem o bem do Brasil a se unirem em torno de um programa de mudanças corajosas e responsáveis”. Diferentemente das duas primeiras, intimistas e de olhar voltado para as dificuldades, de políticos também líderes e populistas, grandes carreadores de votos, e diferente também da terceira, mais parecida com um desabafo político, esta última carta mais se parece com um programa de governo.
Finalizando estas brevíssimas memórias, anotemos que estas quatro cartas, e algumas de suas frases, são um grão de areia no imenso mar emaranhado de cartas – e suas nuances – escritas no calor da Política. Valem mais como um instrumento a serviço da memória para lembrar que assim também, por cartas, se faz Política: escrevendo, lendo, assinando e divulgando os bons conteúdos de apoio à democracia. Como se fez, nesta última semana, nas arcadas do Largo São Francisco, a leitura de uma carta, inspirada na de 1977, assinada por centenas de instituições e milhares de brasileiros e brasileiras, em defesa, sempre, do Estado Democrático de Direito.
Edson Gabriel Garcia, 2022, agosto de algumas trágicas lembranças históricas, se apresentando para nossas esperanças de futuras boas memórias.
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As mulheres na Política (2)
Este assunto é recorrente. Já tratamos dele acerca de um ano atrás. Encerrei o texto com algo mais ou menos assim: “... a presença das mulheres na Política é uma construção cultural lenta e difícil. Mas... necessária. Mulheres oxigenam a ética e a inteligência da Política.”
Retomo a pauta a partir dessa consideração “construção lenta e difícil, mas necessária”. Por que lenta e difícil? Arrisco algumas ideias para refletirmos sobre a questão.
Primeiramente, se faz necessário dizer que a participação das mulheres na Política institucional (filiação partidária, disputa por cargos na direção do partido, disputa por concorrer por cargos eletivos e, quando eleita, vivência nos bastidores e cenas da Política etc.) passa pela mesma dificuldade de sua participação em todos os demais espaços públicos e sociais: viver em uma sociedade ainda fortemente marcada pelo silenciamento e violência contra minorias e alguns segmentos sociais. Atos machistas estruturais a todo momento importunam e cerceiam a liberdade e a igualdade das mulheres na sociedade: negação da palavra e de espaços, ameaças, assédios e violência são alguns dos ataques constantes por que passam as mulheres. Daí que a luta pela liberdade e igualdade começa no lugar de vida mais próximo e se expande por todos os demais espaços sociais, uma disputa com idas e vindas, perdas e ganhos, mas que vem avançando, apesar das dificuldades, a passos largos nas últimas décadas: no trabalho, nas relações afetivas e familiares, e na Política.
É, sobretudo, na Política institucional que estas lutas e conquistas das mulheres por mais espaços devem fazer parte do cenário porque é nessa esfera que as lutas são mais visíveis e podem ser veiculadas mais facilmente e as conquistas, fruto dessas lutas visíveis, vão sendo referendadas legalmente, seja por políticas públicas seja por mudanças de comportamento da sociedade como um todo. Por outro lado, por ser a Política, área de atuação predominantemente masculina, em que o machismo (e todas suas caras) se faz presente com sua imensa pavonice e sem nenhuma parcimônia, é aqui que a luta, em que pesem os entraves, tem que ser travada com a “clava forte”. Caso contrário, continuaremos por muito tempo ainda, a constatar que as mulheres são a maioria da sociedade e ocupam, no entanto, apenas pouco mais de quinze por cento dos cargos eletivos da cena política brasileira. Alguma coisa está desconsertada nessa afirmação. Está?
Está. E está por conta da violência de gênero contra as mulheres que assola não só as que ocupam espaços na Política institucional, eleitas ou não eleitas, como também as que ocupam (ou tentam ocupar) espaços políticos de poder e de decisão. Falamos dos vários tipos de silenciamentos, assédios, ameaças e violência física que se traduzem nos comportamentos machistas abomináveis, tais como, xingamentos, manobras, acordos de bastidores, compra do silêncio, oferecimento de benesses menores, manipulação de cotas, olhares maliciosos, xingamentos, menosprezo, desrespeito simbólico e silencioso, ameaças veladas ou escancaradas, ironia discursiva, agressões sexuais e físicas, algumas delas levando à morte. Uma tipificação didática dos tipos de violência política contra a mulher pode ser assim descrita: violência psicológica (intimidação, desprestígio, deslegitimação de falas/ideias); violência institucional (regras limitadoras da legislação, do movimento interno dos partidos, etc); violência sexual (assédios contra o corpo e sexualidade); violência física ou patrimonial (xingamentos, agressões físicas e ao patrimônio). Há de se falar também sobre a violência via redes sociais que, de certa forma, permeia várias violências ao mesmo tempo. E pelo fato de quase sempre estarem em minoria nos ambientes políticos, as mulheres sofrem desvantagem. Reforçando uma ideia anterior: esses tipos de violência política não ocorrem apenas na Política institucional, com as que ocupam cargos eletivos ou de instâncias governamentais, mas se espalham para todos os espaços em que as mulheres disputam poder de fala e de decisão política, todos os dias. E o número de mulheres que atuam no âmbito da Política institucional, sem cargos eletivos, e as que atuam politicamente fora do âmbito institucional é muito grande. São assessoras, defensoras de direitos humanos, sindicalistas, dirigentes de associações, líderes comunitárias, participantes dos diversos conselhos (de escola, municipais, estaduais, federais). Também elas padecem desses assédios, silenciamentos e agressões, escondidas pela falta de visibilidade que os acompanham. Por outro lado, como já foi dito, estes instrumentos de violência de gênero (muitos deles também associados à violência de raça) contra as mulheres nas instâncias políticas institucionais e não institucionais precisam ser identificados, apontados e combatidos. E a arena da Política institucional é um bom palco para que esse combate se dê. Uma das lutas mais necessárias é o combate à ideia mais ou menos instalada de que Política não é coisa pra mulher (haja vista a maioria de homens brancos que ocupam cargos eletivos) e muitas vezes a violência é sutil e se dá camuflada em debates acalorados, discordâncias irônicas de ideias e posições, implicâncias, etc. Por estarem em minoria, são acossadas e menosprezadas, o que vai dificultando e inviabilizando a participação das mulheres na Política, reforçando a ideia pré-concebida, senso comum, de que Política é “coisa de homens”. Essa luta tem que jogar por terra os argumentos machistas de que posicionamentos fortes e críticos das mulheres não são mimimi nem frescura e tampouco despreparo emocional para o exercício da atividade política, qualquer que seja ela. O nome dado a esse mecanismo de agredir gravemente as mulheres, fazendo parecer mera sutileza de comportamento, manipulando dados e informações, que deslegitima sua ação política, é Gaslighting.
Por estas razões (as formas de violência contra as mulheres) é que padecemos de uma sub-representação do gênero feminino na Política. Também por isso, a luta deve continuar ininterruptamente. Conquistas recentes como as leis federais 14.97/21 (normas para reprimir a violência contra as mulheres na Política) e 14.197/21 (tipifica o crime de violência política, e o inclui no Código Penal, restringir, reprimir ou dificultar o exercício dos direitos políticos em razão de sexo, raça, cor, etnia e religião) apontam caminhos e reforçam que conquistas são possíveis.
Uma última consideração: quanto maior a representatividade das mulheres na Política, menor será a violência contra elas. Daí a necessidade, senão obrigatoriedade, da participação, do enfrentamento, da confrontação e da busca pelo respeito, cotidianamente. Mesmo sendo difícil e lenta, esta construção tem que ser feita diariamente. Mais mulheres na Política, reafirmo, oxigena a Política e acrescenta novos olhares e comportamentos éticos.
Edson Gabriel Garcia, 2022, agosto entrando, com seus dias cheios de significação, do folclore aos ventos, botando a Política no centro de nossas conversas.
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Números... Números... Números!
Quem gosta de lidar com números e cálculos, eis aqui um prato cheio: os números das eleições. Vale lembrar que nem sempre a maioria de nós pode votar e nem sempre votamos em todos os cargos disponíveis. Períodos pouco ou nada democráticos de nossa história, com a elite dominante ou com o poder ditatorial, ficamos longe das urnas e ou com menos opções. Hoje, nossa ainda frágil democracia, propõe uma gama maior de possibilidades de voto. Falemos um pouco de números.
1.República Federativa do Brasil
Somos 26 Estados e um Distrito Federal (onde se localiza a capital da República) organizados em uma República Federativa (União).
2.Senadores/as
Todos os Estados e o DF têm, independentemente do número de sua população, os mesmos três senadores/as, cada qual com mandatos de oito anos. A cada quatro anos elegem-se: a) dois senadores (dois terços) e b) quatro anos depois, na eleição seguinte, elege-se um/a senador/a (um terço), sempre totalizando-se 81 (oitenta e um) senadores/as.
3. Deputados/as Federais
Os/as Deputados/as Federais, que junto com os/as Senadores/as compõem o Congresso Nacional (bicameral) somam 513. O Senado é chamado de Câmara Alta e os/as deputados/as formam a Câmara Baixa. Os Estados têm o número de deputados federais calculados com base em sua população, resguardando-se, conforme prevê a Constituição Federal e a Lei Federal 78/93, mínimo de 8 (oito) deputados para os menores Estados e (70) setenta deputados para o Estado mais populoso. O mandato é de quatro anos e não há limites para a reeleição.
4. Deputados/as Estaduais
O cálculo para se chegar ao número de deputados estaduais, previsto no artigo 27 da Constituição Federal, é um pouco mais complexo. Chega-se a esse número por dois cálculos matemáticos básicos, sempre tomando como base o número de deputados federais de cada estado:
Regra número um (para estados com 12 ou menos de 12 deputados federais): multiplica-se esse número por três e chega-se ao número de deputados estaduais do respectivo estado;
Regra número dois (para estados com mais de 12 deputados federais): nesse caso toma-se o número de deputados federais, apontados conforme população do estado, diminui-se dele 12 e soma-se ao resultado 36. Chega-se, após essa pequena equação, ao número de deputados estaduais. Veja-se o exemplo de São Paulo, o estado mais populoso e com mais deputados federais: 70 (federais) menos 12, mais 36= 94.
5.Vereadores/as
O número de vereadores de um município, também estabelecido pela Constituição Federal, é proporcional ao número de habitantes. Municípios de até um milhão de habitantes podem ter de 9, mínimo, a 21, máximo. Municípios com população de 1 a 5 milhões, devem ter de 33, mínimo, a 40, no máximo. Nos municípios com população superior a 5 milhões, o número de vereadores/as é de 42, mínimo, a 55, máximo. O número é estabelecido pela Lei Orgânica do Município, como é conhecida a “constituição municipal”.
6.Partidos Políticos
Atualmente, o número de partidos políticos registrados e oficializados pelo Superior Tribunal Eleitoral é de trinta e dois (32). Grosso modo, a cláusula de barreira, a última delas criada em 2017 pela Emenda Constitucional 97, é um instrumento limitador do número de partidos oficiais (ainda que a instituição da Federação partidária tenha dado sobrevida aos pequenos partidos/partidos de aluguel): a cada ano de eleição para deputados federais, ficam impedidos de acessar o fundo partidário, os partidos que não atinjam um número mínimo de deputados federais eleitos e um percentual de votos no país inteiro. Em 2018, ano da primeira eleição após a promulgação da EC 17/2017, o número mínimo de deputados federais foi de 9 (nove) e 1,5 % dos votos válidos em todo o país. Em 2022, os percentuais sobem para 11 (onze deputados) e 2.0 % de votos válidos, subindo até 2030 (se não houver nenhuma nova alteração).
7.Segundo turno de Eleições
O instituto do segundo turno de eleições diz respeito apenas aos cargos majoritários (que não dependem de proporcionalidade de votos). Na prática, isto significa que apenas em eleições para presidente, governadores e prefeitos isto pode acontecer, desde que nenhum dos candidatos obtenha a maioria simples dos votos válidos: a metade mais um voto. No caso dos municípios, esta possibilidade aplica-se apenas aos municípios que tenham pelo menos 200 mil (duzentos mil) eleitores inscritos. Nos municípios com número menor de eleitores, a decisão é tomada no primeiro e único turno, independentemente do número de votos alcançado no pleito.
Edson Gabriel Garcia, 2022, que julho nos entregue um agosto que seja do nosso gosto, com caras e modos de muitas lutas boas pela frente.
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Quadro de partidos políticos brasileiros
O quadro partidário brasileiro dos partidos reconhecidos pelo Superior Tribunal Eleitoral, por onde tramita todo pedido de criação de novo partido, há algum tempo vem oscilando na casa de pouco mais de três dezenas. Embora tenham um nome oficial, os partidos são reconhecidos na mídia e no cotidiano por sua sigla. Uma sigla como PL, do Partido Liberal, pode dizer muito da ideologia partidária. Outras sigas há, como NOVO, AVANTE, PODEMOS, CIDADANIA, PROS, por exemplo, que nada dizem ou que tudo podem dizer, uma vez que as siglas partidárias podem esconder muito da história do partido. Outras siglas, tais como PT, PC do B, PSDB, PSOL, por exemplo, trazem na sigla – e na sua história – a cara de sua ideologia. De ponta a ponta, há de tudo nesse leque partidário.
A moderna democracia sustenta-se principalmente na existência de partidos políticos fortes, bem estruturados, com ideologia própria e definida. Isolado, um indivíduo tem pouca força política, pois faltam a ele espaço e cenário para atuar. Algo como diz a sabedoria popular “uma andorinha sozinha não faz verão”. Claro, aqui não entram os populistas, outsiders, famosos e fenômenos eleitorais de um só voo, já que estes independem de partidos e pouco se atentam a uma sigla, já que seu voo é solo. Um partido político sério e bem intencionado, além de abrir espaço para a manifestação e expressão dos anseios da população, pode ser o cenário para o surgimento de ideias boas, de sugestões, de políticas públicas e novas lideranças. O que não é comum em um partido político é o desprezo pessoal ao partido ou a superioridade de uma pessoa sobre o partido. Superioridade essa, como a pretendida pelo político Jânio Quadros, quando em sua carta de renúncia à Presidência da República, encaminhada ao Congresso Nacional, nos distantes e longínquos idos de 1961, reclamava das “forças terríveis” que o impediam de governar o país. Lida a carta e aceita a renúncia, Jânio Quadros foi o estopim da conturbada história da vida política brasileira, com reflexos em todas as direções, inclusive na história recente da formação do quadro atual de partidos políticos. Em 1965, o governo da ditadura militar editou o Ato Institucional n. 2 que acabou com as legendas partidárias até então existentes e indicou, pelo congresso, a criação de dois partidos, o que se deu em 1966 e perdurou até 1979. Foi, então, inaugurado o bipartidarismo no Brasil, com os únicos partidos nos doze anos seguintes: ARENA -Aliança Renovadora Nacional e MDB -Movimento Democrático Brasileiro. Um a favor do governo (ARENA) e outro de oposição (MDB).
Para falar de bipartidarismo, temos que falar um pouco dessa noção de partidos e quantidade. Regimes totalitários e ditatoriais, onde o espaço para o diálogo e a participação praticamente inexiste, adotam o regime do partido único. Só há um partido, o partido do governo, e fim de papo. Há casos de partido único em que há outros partidos, infinitamente menores e sem a menor chance de ocupar postos de poder na Política. Há exemplos em outras democracias, como a americana (EUA), de um bom ajuste político, principalmente no que diz respeito à alternância de poder: republicanos e democratas alteram-se no poder do comando de uma das maiores e mais bem sucedidas nações do mundo, ponta de lança do moderno imperialismo.
No Brasil, essa situação de bipartidarismo sobreviveu até 1979, quando foi promulgada a lei dos partidos políticos. Nessa época, a ditadura já sem forças, envergonhada e abatida, sofria, com seu partido de apoio, o ARENA, dando evidentes sinais de exaustão. Teve início um grande movimento de renascimento de partidos políticos. É nesta época, início da década de oitenta que o Partido dos Trabalhadores começa a ser criado. O MDB transforma-se em Partido do Movimento Democrático Brasileiro e a ARENA, o mais longevo partido camaleão, transforma-se no PDS (Partido Democrático Social) que depois se transformará em PFL e depois no DEM e depois... Outros partidos retomam à cena, algumas siglas bem antigas, e outros vão sendo criados: PTB, PDT, PCB, PCdoB, PSB, PPS, PSDB, PDC, PV, PP, PSOL, PSD, PSL, etc. Atualmente há uma tendência, imitativa de movimento europeu, de se nomear os partidos sem a palavra “partido”. São novos de existência, mas não necessariamente novos na sua ideologia ou postura política, alguns deles tendo à frente políticos da “velha política”, com os mesmos vícios de sempre.
Em princípio, o pluripartidarismo é mais interessante do que o bipartidarismo. A existência de mais partidos, desde que bem definidos e bem estruturados, pode ser salutar à democracia, à pluralidade de ideias, de propostas, de visões, de opiniões. No entanto, o excesso de siglas, muitas delas apenas legendas de aluguel, outras que estão de olho apenas no dinheiro do fundo partidário, uma verdadeira salada que mistura alhos e bugalhos e não diferencia social de coletivo, confunde exageradamente a cabeça do cidadão, pois fica difícil saber a real diferença – quando há – entre os “pês” partidários. Partido disso, partido daquilo, partido daquilo outro. O desenho da colcha de retalhos desfigura-se e fragmenta-se aos olhos do cidadão menos informado.
As questões que provocam nossa sensibilidade política são: qual a verdadeira causa de tantos partidos registrados; em que nos ajuda a existência de tantas siglas com tão pouca diferença de atuação política; precisamos de tantos partidos nanicos; seria mesmo a verba dos fundos partidários, volumosas e com pouco controle de sua contabilidade o verdadeiro objetivo da maioria dos partidos? Para pensar...
Edson Gabriel Garcia, 2022, julho dando adeus; à espera de um agosto quente com o início da campanha eleitoral. Que nos juntemos aos bons e éticos.
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Lobby e advocacy: de olho no dinheiro e a luta dos/das ativistas
O assunto é antigo e faz parte da Política desde sempre. Lobby e advocacy, termos forjados na língua inglesa, mas que estão presentes em nossas sensações políticas, algumas vezes são confundidos e tidos como sinônimos, embora não o sejam, apesar da semelhança da ação: interferir na distribuição orçamentária.
Lobby tem origem histórica, nesse sentido de intervenção no gasto do dinheiro público, segundo alguns, desde os tempos do presidente norte-americano Ulysses Grant (governo entre 1864 e 1869), que gostava de conversar, embalado por charutos e conhaques, no lobby do hotel em que se hospedava ao final do dia de trabalho. Ele se referia a estas pessoas, que tentavam influenciá-lo no gasto do dinheiro público, como “os lobistas do hotel”. Outra versão, dá o surgimento da expressão, com este sentido, na Inglaterra, nos corredores e antessalas do Parlamento inglês, em que as pessoas cercavam e conversavam com os parlamentares com o claro interesse de influenciar sua decisão na votação deste ou daquele projeto de lei. De lá para cá, muita água rolou. Nos Estados Unidos a atividade de lobista é regulamentada, com a exigência de prestação de contas do trabalho. Na Europa não há registros de regulamentação do tema e por isso é polêmico. No Brasil, sem nenhuma regulamentação, o termo tem uma carga pejorativa pesada e é evitado. De modo geral, “lobby” pode ser definido como a atividade política (democrática) exercida por uma pessoa com a finalidade objetiva de influenciar o poder público para tomar medidas ou decisões nesta ou naquela direção, seja na aprovação de projetos de lei seja aplicação do dinheiro do orçamento. Por aqui, quase sempre essa atividade é vista como suja, vinculada à corrupção, à ilicitude e ao toma-lá-dá-cá, principalmente na relação do privado com o público. Certamente, uma das razões para a proibição do financiamento privado (grandes empresas) de campanhas políticas se deve a esse modo pouco limpo de se praticar o lobby: depois de eleitos os parlamentares e governantes ficavam com dívidas com as empresas e a forma de pagar era (ainda é, como o direcionamento de editais para concessão de obras e serviços e o perdão oficial de dívidas bilionárias das empresas com os Estados e União, por exemplo) através de concessões do dinheiro público. A prática de favorecimento, pelo lobby, do servidor público, a quem cabe a tarefa magnânima de cuidar do patrimônio e do dinheiro público, que deixa de fazer o seu trabalho ou o faz em outra direção, advogando pelo interesse privado, é definida com ilegal, corrupção ativa ou passiva, e prevista como crime no código penal. Posturas ilegítimas como essas desacreditam a função pública. No entanto, em sua origem, a prática de influenciar decisões pelo o lobby é uma atividade lícita e democrática. E se dá não só na Política, mas também em diversas outras áreas da vida social. Há, no Congresso brasileiro, projetos de lei aguardando discussão e pauta de votação com vistas à regulamentação da profissão de lobista. Projetos polêmicos que, diante de outras tantas prioridades da vida política, econômica e social dos cidadãos, vão ficando para trás.
Advocacy, por seu lado, é uma prática política ativa de cidadania. A palavra é inglesa e tem origem no verbo “to advocate”, cujo significado é advogar, algo como “falar por”. No entanto, o significado autêntico da palavra e da prática vem do latim “advocare”, mais próximo do sentido de ajudar. Nesse sentido, essa prática tão alinhada com a cidadania ativa se caracteriza pela defesa, por pessoas físicas ou grupos organizados, de causas e/ou direitos, com o claro objetivo de chamar a atenção de todos para uma determinada causa e, por conseguinte, torná-la presente nas políticas públicas, gerando os benefícios almejados.
Advocacy não faz lobby direto por uso do orçamento público, mas atua de modo que pode chegar lá, através da divulgação de informações cuidadosamente coletadas sobre determinada causa, chamando a atenção do maior número possível de pessoas, ampliando número de interessados no tema debatido e aumentando o “poder de fogo” junto aos definidores de políticas públicas. As esferas mais difundidas dos grupos/pessoas que fazem a advocacy citamos o meio ambiente, minorias raciais e de gênero, direito à educação, acesso a saúde básica e lutas contra a fome e violência. São temas que deveriam estar presentes em qualquer plano de governo, mas muitas vezes não estão, ou, se estão, não vão além do discurso de campanha. Decorre dessa ausência de temas tão fortes para o bem estar comum da maioria das pessoas, a exposição mais escancarada de nossas mazelas e a busca do olhar político para essas questões. O caminho seguinte, após a exposição clara e objetiva da situação de parte da humanidade no tema abordado, é conseguir chegar à alteração ou inclusão de leis que garantam o investimento nos assuntos advogados. Os movimentos mais comuns da advocacy são as palestras, encontros, abaixo-assinado, publicação de livros e, mais organizadamente, a criação de um fundo econômico para dar suporte às atividades desenvolvidas. Exemplos fortes de advocacy, mundo afora, são a paquistanesa Malala Yousafzay e sua luta pelo acesso à educação, a ativista sueca Greta Thunberg e sua jornada desde sempre pelo cuidado e respeito com o meio ambiente.
Lobby é mais silencioso e menos transparente em sua prática, transitando na esfera do interesse privado, e talvez por isso desperte suspeitas e olhares viesados; a advocacy é causa pública, transparente e por seu caráter acentuadamente humanitário despertam mais atenção e olhares mais complacentes e participativos. O lobby, mesmo sendo parte da Política, tem seu pé direito fincado na questão econômica, no direito do privado, no lucro. Por outro lado, a advocacy se esparrama pelo humanismo, na tentativa de diminuir as gritantes desigualdades sociais e sofrimento de parcelas enormes da sociedade e injustiças históricas, nos fazendo pensar que ainda é possível acreditar na humanidade.
Edson Gabriel Garcia, 2022, meados de julho esquentando os dias quase frios com o calor de nossas reflexões.
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Os (des)caminhos do dinheiro público
Eis aqui uma história interessante: somos convocados obrigatoriamente a formar um pé-de-meia coletivo (dinheiro público do orçamento), mas não somos chamados nem estimulados a acompanhar o uso/gasto/investimento desse dinheiro. Somos contribuintes compulsórios, através dos muitos impostos e taxas que pagamos diariamente, mas alijados da discussão e do acompanhamento do uso desse pé-de-meia. Passamos um “cheque em branco” para o Poder Executivo usar esse dinheiro. Sobre isto, vale o registro de duas considerações: a) quais os (des)caminhos do dinheiro público; e, b) como participar/acompanhar/cobrar a aplicação desses recursos.
Sobre os (des)caminhos do uso do dinheiro público temos que apontar, entre tantos outros, alguns problemas que saltam aos olhos nessa operação, tais como: a) corrupção (e suas diversas caras – já tratadas em texto anterior), b) o gasto mal feito, c) rubricas com gasto oculto ou não muito claro, d) contração de dívidas com custo alto, e e) a liberdade que o Poder Executivo tem para manusear o orçamento, sem muita cobrança ou acompanhamento, e usar o nosso dinheiro em ações politiqueiras às vésperas de eleições.
A corrupção é um dos descaminhos mais presentes na conjuntura econômica brasileira. Corruptores e corrompidos se reinventam e criam novos modos de corrupção com muita frequência. Mas nem só a corrupção é responsável pelo dinheiro público que vai para o ralo (ou para o bolso de saqueadores): o mau gasto também. Compras de produtos de baixa qualidade, excesso de compra de produtos com pouca demanda de uso, aquisição de produtos sem priorização ou com data de validade próxima do fim, precariedade no armazenamento dos produtos e compra de serviços caros e de necessidade duvidosa são alguns modos de se mal gastar o dinheiro público. O abandono de obras iniciadas em gestão anterior, perdendo o que já foi feito, é muito presente nos executivos brasileiros. Uma outra ação que vem se tornando frequente é a chamada privatização dos serviços públicos, com a contratação de intermediários, que ficam com boa parte do dinheiro, para prestação de serviços mais curtos, de menor prazo e com menor alcance. A conhecida contratação de “cooperativas” de trabalhadores exemplifica este problema: intermediários ficam com a parte mais rica da prestação de serviços e pagam salários miseráveis aos “cooperados”. A prática de precarização dos serviços públicos, para depois privatizá-los, vem sendo comum nestes últimos tempos. E, na maioria, das vezes, o serviço privatizado custa muito mais aos cofres públicos, não melhora e é extremamente reduzido. Outro descaminho é o orçamento oculto, secreto, escondido em rubricas que somente os executores sabem o que é e para onde vai o recurso. Como os orçamentos são feitos por contabilistas ou economistas, fazem desse documento, algumas vezes, um mapa cheio de hieroglifos e enigmas que poucos conseguem desvendar, entender e acompanhar. As tais emendas secretas do relator do orçamento são exemplos virtuosos de como alguns gastos são camuflados, sonegados ao grande público. Dinheiro público usado para comprar apoio de parlamentares. E os parlamentares beneficiados, cujos nomes nem a justiça, ainda, conseguiu dá-los ao público, levam estas emendas para seus apadrinhados. Um toma-lá-dá-cá vergonhoso. Um outro problema de ordem orçamentária é a contratação, sem planejamento aberto aos interessados, que somos nós, contribuintes, de assessorias ou prestação de serviços de consultorias, a preços exorbitantes, quando há no quadro do funcionalismo público servidores capacitados para fazer o mesmo trabalho comprado. O custo dessas assessorias é extremamente alto, pouco claro, e raramente mostram algo que não seja do conhecimento dos servidores públicos gabaritados. Nessa mesma esteira, podemos apontar o excesso do organizações não governamentais, as ONGs, que avançam sobre o orçamento, muitas vezes ocupando espaços de ausência do Estado, ausências estas calculadamente por omissão desse mesmo Estado. Por último, nesta breve abordagem dos (des)caminhos que levam nosso pé-de-meia coletivo para o ralo, vale citar a possibilidade que o Executivo tem para manusear o orçamento, sem dar maiores explicações ou com justificativas formais, transferindo receitas de uma rubrica para outra. Um exemplo disso é criação de gastos claramente eleitoreiros, proibidos pela lei eleitoral, às vésperas de eleições, com a reles justificativa de que o país está em clima de emergência. Com políticos dessa natureza, estamos eternamente à beira da emergência.
Há, a curto prazo, duas possibilidades de se tapar esses ralos, ambas de médio prazo e que demandam aprendizagem política: a) participação em orçamentos participativos, cobrando sua realização e sua presença nas plataformas de governo dos candidatos/partidos políticos e b) cobrando total transparência na execução do orçamento.
A realização de OP (Orçamento Participativo – tema tratado no texto anterior) teve vida curta nestas últimas décadas, mas mostrou vitalidade cidadã nos municípios onde aconteceu. Precisamos reviver esta prática, começando a cobrar partidos e candidatos que a coloquem em suas bandeiras, plataformas e planos de governo. O segundo ponto, a transparência na execução do orçamento, é mais difícil, mas extremamente necessária. Uma das coisas mais perversas na Política é o cipoal opaco que é a execução de um orçamento, principalmente no que diz respeito aos gastos: nunca se sabe com clareza quanto se gastou, como se gastou e em que se gastou, de modo simples e transparente e objetivo. Muito diferente e distante da clareza com que lidamos com nosso orçamento: quanto se tem e quanto e em que se gasta. Sem precisar criar uma CPI para investigar gastos e sem a necessidade de constituir uma banca de especialistas para desvendar o gasto de uma secretaria ou ministério. De tal forma que cada cidadão possa navegar no orçamento de um município ou estado ou da nação com a mesma facilidade com que acessa redes e mídias, seja para comprar algum produto ou serviço, seja para agendar uma consulta ou acessar extratos bancários. E entenda os caminhos do dinheiro público, que é, reforçando esta ideia que parece tão distante na atualidade, de todos nós.
Apostar, escolher e votar em candidatos/partidos que têm apreço pelo orçamento público participativo e que podem dar transparência e lucidez à execução do orçamento, tornando sua compreensão acessível a qualquer cidadão fazem parte do exercício da cidadania e da aprendizagem política.
Edson Gabriel Garcia, 2022, julho, pondo na mesa a definição dos candidatos e suas plataformas de governo, avança em meio a um inverno caloroso.
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Orçamento Participativo: de olho no pé-de-meia coletivo
O dinheiro público, o tesouro, o erário público, o pé de meia coletivo e outros mais, são nomes/apelidos do nosso dinheiro, coletado coletivamente, através de impostos, taxas, tarifas, etc, e que deve voltar para a sociedade como um todo em forma de investimentos em políticas públicas de educação, saúde, assistência, responsabilidade com o meio ambiente, entre outras. Este brevíssimo resumo tem o objetivo de chamar sua atenção para uma das coisas mais importantes da vida em sociedade: o gasto do dinheiro público. E da nossa responsabilidade em acompanhar a execução do orçamento público.
Uma das formas de se participar democraticamente da vida do país é pelo evento político chamado ORÇAMENTO PARTICIPATIVO. O OP é uma das formas cidadãs de se participar de modo decisivo da elaboração dos orçamentos públicos, principalmente no âmbito das prefeituras. A voz do cidadão pode influenciar ou até mesmo decidir os rumos do gasto do dinheiro público. Tradicionalmente a elaboração do orçamento público, com previsão de arrecadação e de gastos/investimentos tem ficado nas mãos da alta comunidade política, dentro dos gabinetes técnicos de planejamento, onde se ouvem apenas os distantes ecos da voz do povo. O OP vem quebrar essa tradição e se apresentar como modo justo e participativo de levar a demanda do povo para as “autoridades”, reforçando a vontade popular na execução das políticas públicas. Historicamente, tudo começou com a Constituição Federal de 1988, no Artigo 29, Inciso XII, que obriga os municípios a contemplarem na elaboração de suas leis máximas, a “cooperação das associações representativas no planejamento municipal”. Na sequência, o Estatuto da Cidade, Lei Federal 10 257/01, determina a obrigatoriedade da gestão orçamentária participativa, condição fundamental para que as Câmaras Municipais aprovem o orçamento. Também é da lavra deste documento legal sugestão de realização de debates, audiências e consultas públicas.
A primeira experiência registrada com boa repercussão aconteceu em Porto Alegre (RS) em 1989. Outros municípios também toparam a proposta e levaram o OP para suas bases. Os benefícios do OP, em uma comunidade, são muitos: a) reforça a aprendizagem de uma cultura política participativa; b) transfere a decisão para as camadas populares, geralmente afastadas das decisões políticas; c) obriga o poder executivo a prestar contas de seus gastos e investimentos; d) reforça a transparência no uso do dinheiro público; e e)ajuda a reduzir a corrupção e aumentar a confiança nos políticos democráticos.
Não há uma receita única para a realização do OP. Cada ente federativo organiza o seu OP do modo como entender melhor, desde que tome como pressuposto básico a participação do cidadão na elaboração da Lei Orçamentária Anual. De modo geral, inicia-se por a) convocatórias para as assembleias ou audiências públicas (em que a comunicação e divulgação das datas, com antecedência, são fundamentais); b) disponibilização de informações sobre o processo, demandas locais, recursos existentes, obras já iniciadas, tudo que puder dar o contexto das possibilidades de elaboração do orçamento, aqui incluída uma matriz orçamentária, de natureza informativa (hoje, com a evolução da tecnologia da informação, tudo isso fica facilmente acessível, desde que o governo assim o deseje e tenha vontade política para tanto); c) realização das audiências com explanação da autoridade governamental e processamento de audiência da população; d) após discussão e debates, deve-se chegar ao estabelecimento das prioridades locais (que serão encaminhadas à equipe responsável para dar a cara final do orçamento). Dependendo do tamanho do município, a participação pode ser feita através de delegados representativos eleitos, aclamados ou designados, mediante critérios prévios estabelecidos, em sua comunidade. Esses delegados/representantes levarão as demandas da população, extraídas em reuniões prévias realizadas entre representantes e representados. Também pode ser feito por setores/áreas das despesas, como por exemplo, saúde e educação, obras de infraestrutura, funcionalismo, etc. Não se descarta a realização de cursos/palestras/manuais para a formação mais qualificada dos representantes delegados escolhidos. O que importa mesmo no OP é a negociação direta entre o povo (com suas demandas e necessidades bem pé no chão) e o governo (com o contexto, disponibilidade orçamentária, limites legais e disponibilidade em ouvir as demandas e negociar). E, certamente, o OP não se encerra nessas audiências, pois a execução orçamentária do que foi “negociado” poderá -e deverá- ser acompanhado. Tão importante quando planejar e ser ouvido é avaliar o processo, para reordenação no ano seguinte, se for necessário, acompanhar e cobrar. Um OP nunca começa e acaba nele mesmo, pois as ações iniciais desdobram-se em outras que se seguem meses e anos adiante.
Uma aprendizagem muito rica para ambos os lados: aprender a governar para a população, dando sentido ao uso do dinheiro arrecadado, dividindo dificuldades, acertos e decisões, partilhando o comando político, de um lado; e, do outro lado, aprender a lutar por seus direitos, exercendo uma cidadania, ainda que em um nível não tanto decisório, ativa e participativa, como coprodutora do orçamento – e não meramente receptora.
Vale realçar o que já foi dito anteriormente sobre a “vontade política” do/a governante em abrir aos cidadãos a participação efetiva nos rumos do governo. Vontade política que vai contra a maré dos traços autoritários e centralizadores dos executivos brasileiros (municipal, estadual e federal). Somente com boa vontade, ou muita vontade política, o Poder Executivo abre sua plataforma de governo e mostra o conteúdo do cofre para a participação de mais gentes. Do outro lado dessa equação, cobrar espaços de participação nas decisões governamentais, principalmente no que diz respeito ao orçamento, é uma das características fundamentais do exercício da cidadania.
Transparência no exercício da lida com o orçamento: sem segredos, sem manobras fiscais, sem esconderijos, sem opacidades e pedagogicamente claro para o entendimento de todos.
Edson Gabriel Garcia, 2022, julho chegando, de olhos abertos nas escolhas partidárias e nos candidatos que se apresentarão para serem votados – ou não – por nós.
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Liberdade de Expressão
Eis aí uma questão que acompanha a humanidade desde sempre. O humano é livre? O que constitui essa liberdade? Pensamento? Linguagem? Sonhar? Planejar? Milhares de pensadores, filósofos principalmente, debruçaram-se sobre o assunto, tecendo milhares de páginas escritas e registros em outras mídias, sem ainda chegarem ao final da discussão. O conceito de liberdade tem inúmeros sentidos, conforme o olhar e os valores de análise de cada autor, sem se chegar a um significado consensual. Uma discussão que continua viva, sempre atual, e nos acompanha diariamente. Afinal, o que é liberdade? Seria um valor, um ideal, uma circunstância ou independência? Por outro lado, este substantivo gramaticalmente classificado como abstrato, é um dos que mais recebe adjetivos e/ou complementos: liberdade de ir e vir, liberdade de pensamento, liberdade de amar de todas as formas, liberdade virtual, liberdade pessoal, liberdade de agir, liberdade de escolha...
Esta ligeira introdução teve apenas a “liberdade” de contextualizar você sobre a dificuldade de se definir liberdade, palavra de origem latina “libertas”, que indica o indivíduo com capacidade de fazer escolhas e agir autonomamente. Enquanto você aquece seus neurônios pensantes (e se pergunta: sou livre?), falemos um pouco de “liberdade de expressão”, conceito tão presente em nossos dias, talvez pela dificuldade manter e exercer com responsabilidade esse tipo de liberdade.
Liberdade de expressão, conceito que é garantido em muitas decisões e documentos universais, é o direito de se expressar os pensamentos, opiniões e críticas, sem repressão, censura ou punições. Fruto de muita luta da humanidade contra autoritários, ditadores, censores e malucos de toda natureza, a liberdade de expressão data desde A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1789, em meio à efervescência da Revolução Francesa. Muito tempo depois, vem expressa e claramente definida na DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, um dos documentos mais decisivos sobre liberdades e direitos de toda a humanidade (assinada em 1948, em assembleia geral da Organização das Nações Unidas). Está lá, em seu famoso Artigo XIX: “Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar receber e transferir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”. Este artigo é uma clássica referência ao respeito pelas diferentes vozes, concordantes ou discordantes, de qualquer lugar de fala, sob qualquer ponto de vista. É uma das garantias sólidas de regimes democráticos: respeito e elogio à diversidade.
A história recente dos regimes de governo brasileiros registra dois períodos de regimes autoritários, com Constituição própria, outorgada pelo próprio governo, do seu modo, cuja caraterística principal foi a falta de respeito à liberdade. Falamos da ditadura de Getúlio Vargas, no chamado Estado Novo, entre 1937 e 1945, e na ditadura militar, entre 1964 e 1985. Talvez por esse histórico recente de ditaduras, tenhamos nos empenhado em construir uma Constituição Federal banhada pelo respeito aos direitos humanos. Esta Carta Magna, de 1988, se notabilizou pela defesa dessa garantia. Está lá, no Artigo 5º. E Inciso IX:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
Inciso IX: é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação independentemente de censura ou licença”.
E avança um pouco mais, ao afirmar, no Artigo 200: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observando o disposto nesta Constituição./É vedada qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.”
A liberdade de expressão, caracterizada pelo direito de expressar ideias próprias livremente, sem restrição ou punição, mas com responsabilidade pelo que se diz ou escreva vem sendo arduamente defendida pela maioria do povo brasileiro. Uma das principais marcas de um regime democrático é a liberdade de expressão, principalmente a liberdade de imprensa. Imprensa séria e livre é uma das sustentações da pluralidade de pensamento, críticas e denúncias. Ataques nervosos, violentos, propagadores de desinformações e fake news e desrespeitosos à imprensa partem tão somente de governos frágeis, sem sustentação popular, medrosos e intolerantes. O medo da exposição de suas fraquezas e o desejo de se fazer forte pelo autoritarismo abundam neste tipo de governo, que acabam fazendo dos diversos mecanismos da censura o seu principal projeto de governo. E atacam os principais porta-vozes da liberdade de expressão: os artistas, os educadores e a imprensa. Por esta razão, nos períodos mais duros de caloboquismo ditatorial (Ditadura de Vargas e Ditadura Militar), a censura prévia à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa, além do olhar agudo de fiscalização sobre a liberdade de cátedra de educadores, foram intensos e cruéis, com a criação de instrumentos de repressão muito fortes. Em Vargas, o DIP, Departamento de Imprensa e Propaganda, e, na Ditadura Militar, com instrumentos inconstitucionais, Atos Institucionais 2 e 5, centralização da censura no poder central e forte aparato de punição, em que a tortura e morte foram suas pontas de lança.
Finalizando estas anotações breves, temos que reforçar que à liberdade de expressão corresponde na mesma proporção e intensidade a responsabilidade pelas declarações. Apenas este é o limite da liberdade de expressão que, se fora dos eixos da verdade e do respeito, podem ser punidas pela lei. E também reforçar que, com o avanço expressivo da tecnologia da informação, cada vez mais teremos acesso a documentos e relatos históricos, ficando mais e mais difícil para os governos autoritários guardarem, por medo e por visão torta do que seja governar, segredos que pertencem a todos nós.
Recentemente, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, o cardeal brasileiro Don Leonardo Steiner, disse que “a Política deve voltar a ser assunto nos bares, nas escolas, na universidade, na Pastoral”.
Liberdade, abra as asas sobre nós. Sempre.
Edson Gabriel Garcia, 2022, junho abrindo espaço para um novo mês, em que acertos políticos começam a se definir com vistas ao exercício democrático e livre das escolhas de nossos representantes nos cargos públicos.
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Plataformas de Governo
A palavra plataforma é plurissignificativa, palavra que você ouve diversas vezes por dia com significados diferentes. A sua significação básica é algo como suporte, sustentação, base. Em Política, quando falamos de plataforma de governo, estamos nos referindo ao programa de governo proposto por um candidato, de um determinado partido, como a base ou o rumo de sua ação ao ganhar a eleição e depois governar ou legislar. É mais comum quando falamos de cargos do Poder Executivo: prefeitos/as, governadores/as e presidente. E, principalmente, se o que está em disputa é a presidência da República. Por sua importância no cenário geral, num regime presidencialista como o nosso, em que os poderes do/a presidente são maiores, com traços autoritários, e cujo orçamento é extremamente concentrado na União, colocar atenção no programa/plataforma de um candidato/partido é muito importante. Nesse sentido, em época de eleições gerais, temos que ficar de olho – e cobrar – um programa de governo em que os candidatos/partidos devem oferecer ao conhecimento do eleitor suas ideias e propostas de como governar, como conduzir as regras de comportamento político com os principais problemas do país e, sobretudo, como trabalhar com o orçamento (arrecadação e aplicação do arrecadado). Esta é uma das principais funções/tarefas de um partido político. Ideias para governar devem fazer parte, de modo amplo, do ideário de um partido político sério e decente, em seu estatuto. Da mesma forma que é com bons “quadros”, para formular os planos de governo e exercê-los com competência, se ganha a eleição. Em épocas de eleição, o que o partido tem a obrigação de fazer é apresentar e traduzir o seu ideário em propostas práticas e de fácil entendimento pelos eleitores. Evidentemente, aqui não cola, o deboche que “todos os políticos são iguais” ou que “todos são farinha do mesmo saco”, pois não são verdades. Os bons partidos se mobilizam, ouvem as demandas sociais e organizam sua plataforma. E tampouco deve colar a fala mentirosa de “que se Deus está no comando, o governo vai bem”. A Política é ciência dos homens para os homens e são os homens que devem resolver problemas, conflitos, desafios, demandas sociais, necessidades etc de seu povo.
Assim sendo, um programa de governo, estabelecido em uma plataforma política, passa a ser uma função de muito relevo para um partido político sério e deve ter as características, entre outras, a seguir enumeradas:
-uma plataforma política é pensada, discutida e formulada (não cai do céu, não se acha na rua e nem nos bancos escolares);
-a plataforma política de um partido é coerente com sua ideologia, seu sistema de valores, sua visão de mundo (se o partido se alinha à esquerda, certamente sua plataforma dará prioridade a projetos sociais, distribuição de rendas, ações coletivas de melhoria da vida da maioria do povo, cuidado com o meio ambiente, etc);
-a qualidade de uma plataforma política pode-se medir com sua relação direta na escolha dos assuntos: falar de guerras, atualmente, em nosso pais, é desviar de assuntos mais candentes tais como saúde, distribuição de renda, fome, trabalho, qualidade de educação, etc;
-a plataforma política de um partido sério costuma estar disponível para os eleitores no site do partido o tempo todo;
-a plataforma política de um partido sustenta seus planos de governo mas também a conduta de todos os seus membros;
-a plataforma precisa se apresentar de forma clara e bem escrita, sem armadilhas de linguagem, para que todos tenham compreensão exata do que sustenta (neste sentido, quanto mais genérica é a plataforma, mais ciladas e armadilhas ela pode sustentar. Um exemplo tosco pode ser dado pela “política de preservação ambiental” que, na prática, pode se constituir em ações de “fim da demarcação de terras indígenas sob o pretexto de protegê-los com a cessão de suas terras para garimpeiros ou invasão do agronegócio”. Outro exemplo pode ser “investimentos pesados em educação” que, na prática, se concretiza com dinheiro público desviado para as empresas privadas educacionais);
-uma plataforma política precisa ser debatida abertamente, para depois ser cobrada do candidato/partido eleito (candidatos que apresentam plataformas irreais, impossíveis de serem cumpridas ou ilegais cometem o que chamamos de estelionato eleitoral- crime de natureza ideológica em que mentem e ludibriam eleitores, com falsas promessas, que sabem certamente não poderão cumpri-las);
-plataformas decentes e honestas podem – e devem – estar disponíveis de forma transparente nos sítios dos partidos.
Neste sentido, na contramão dessas características, a ausência de plataformas políticas ou de planos de governo é postura de partidos frágeis e candidatos com perfil individualista e autoritário.
Fuja deles ou cobre deles uma plataforma, uma sustentação de suas ideias e propostas.
Edson Gabriel Garcia, 2022, junho, mês dos santos brasileiros mais amados, aquecendo na brasa das fogueiras juninas nossos olhares de interesse por plataformas sérias.
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Mandato Coletivo
Política é uma das ações humanas mais dinâmicas. Como já afirmou o filósofo Heráclito de Éfeso, que viveu entre 540 e 470 Antes de Cristo, “nada é permanente; exceto a mudança”, cabe bem esta afirmação nos caminhos da Política. Embora o ritmo das mudanças nem sempre seja tão rápido, quanto desejável, pode-se afirmar, sem dúvida, que mudanças estão sempre nesses caminhos. Algumas dessas mudanças são demandadas pela sociedade e outras são pensadas e propostas por grupos imersos na Política, a partir de sua visão de mundo e análise das circunstâncias. É o caso do chamado Mandato Coletivo.
O que é um Mandato Coletivo?
Fácil de entender a sua significação: mandato é o tempo de duração da ocupação política de um cargo (por exemplo, o mandato do presidente da República é de quatro anos) por um candidato eleito por votos em eleição direta e coletivo é um adjetivo que indica uma porção de pessoas, animais ou coisas. Mandato Coletivo, portanto, significa um mandato que pertence a um coletivo de pessoas.
A dificuldade está no entendimento do seu funcionamento. Em tese, todo mandato deveria ser coletivo, no sentido de que representa ideias de um grupo de pessoas, o que nem sempre é verdadeiro. Políticos outsiders, marginais, representam a si próprios, suas ideias e ponto. No entanto, reafirmamos que em teoria todo mandato, dada sua característica de representação, teria a obrigatoriedade de ser coletivo. Recentemente tem surgido no panorama político brasileiro o que se convencionou chamar de Mandato Coletivo, um tipo de mandato do qual faz parte institucionalmente um grupo de pessoas. Pode ser conhecido também como Bancada Coletiva.
Essa é uma história recente, resultante do questionamento da forma de representação atualmente estabelecida na Política e na legislação brasileira, que já vem fazendo parte da realidade da Política nacional, cuja característica principal é o compromisso do/a eleito/a em dividir as decisões com um grupo de pessoas. Um dos primeiros mandatos com essa característica surgiu no PSOL de Pernambuco, com a bancada coletiva JUNTAS. Hoje há muitos Mandatos Coletivos eleitos e nas eleições vindouras esta realidade estará fortemente representada, principalmente em partidos de esquerda.
Tentaremos abaixo caracterizar um Mandato Coletivo:
-há um ator político eleito, que representa institucionalmente um grupo na ação legislativa, ocupa o assento legislativo, mas compartilha suas decisões e ações com esse grupo;
-os demais participantes do mandato coletivo são os/as coparlamentares (covereadores/as ou codeputados/as), que, na maioria das vezes, ocupam cargo de assessores e participam ativa e compartilhadamente das decisões parlamentares;
-nem sempre os integrantes de um Mandato Coletivo são filiados a algum partido político e, quando são, não o são obrigatoriamente no partido que bancou a candidatura coletiva. O que os une em um mandato é sua militância política ativa em alguma área (educação, ambiente, assistência, luta contra o racismo ou machismo etc.);
-há um acordo informal, uma carta de princípios ou um estatuto próprio, que estabelece o compartilhamento das ações e respectivas responsabilidades entre todos os membros do coletivo.
Como tudo que é muito novo no cenário tem lá suas dificuldades práticas, as quais apontamos:
a) dificuldade em manter o acordo informal interno (regimento/estatuto) diante da necessidade de representação institucional de um só nome – o que foi colocado na urna para votação;
b) conciliação dos diversos interesses individuais de membro do coletivo que acaba desistindo por não aceitar a forma compartilhada das decisões e ação parlamentar ainda focada em um só membro
O tempo e a prática depuraram o modelo de Mandato Coletivo, certamente. Sem dúvida nenhuma, trata-se de uma das mudanças no cenário da Política, que aponta para o esgotamento da forma atual de representação, muitas vezes exageradamente personificada e outras representadas pelos fenômenos passageiros de personalidades midiáticas que vem e vão como chuvas de verão. Inquietos, politicamente, políticos de boa cepa, andam sempre de olho nas demandas sociais e procuram propor, pela via legal, alterações no regimento eleitoral. Lembrando, passageiramente, pois já falamos sobre isso, que discursos eleitoreiros de “novo modo de fazer política” nada têm a ver com essas mudanças. É possível que, brevemente, tenhamos a possibilidade de candidaturas fora do quadro partidário. É a Política avançando e caminhando com novas demandas de cada tempo.
No caso dos Mandatos Coletivos, o Tribunal Superior Eleitoral, comprovando a força dessa novidade, aprovou uma resolução (maio de 2022) em que permite colocar na urna eletrônica o nome de coletivos que disputem eleições, ainda que o nome principal seja apenas de um/a candidato/a. O nome do coletivo não pode substituir o nome do/a candidato/a, digamos, “cabeça de coletivo”, mas é um começo para introduzir esse modelo no arcabouço jurídico eleitoral. Candidatar-se por um coletivo, mais do que tudo, representa uma ampliação da participação democrática, e significa para seus membros, evidenciar o seu comprometimento com uma causa e seu engajamento na luta política por essa causa. E, nesse sentido, deixar bem claro ao eleitor o perfil da candidatura (e não exclusivamente do/a candidato/a).
Viver a Política e com ela as alterações eleitorais.
Edson Gabriel Garcia, 2022, junho no embalo das festas juninas aquecendo olhares para novos mandatos.
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Voto útil
Muitos de nós pensamos que a Política nada tem a ver com nossa vida. O direito de assim pensar é livre, mas, cá entre nós, nada mais falso do que pensar isso, pois a Política interfere cotidianamente em todos os nossos movimentos, espaços de ação, direitos etc. Cotidianamente, às vezes de forma mais perceptível ou, outras vezes, de modo mais sutil. Você participou da decisão de tornar obrigatório o uso do cinto de segurança nos carros? E nas cidades grandes, você foi consultado sobre o rodízio de carros? E sobre o uso da máscara em episódios pandêmicos, consultaram você? Certamente, não. E isso interfere em sua vida? Certamente, sim. É bom lembrar que estas decisões foram políticas, como parte de políticas públicas, tomadas e postas em prática por algum governante eleito pela maioria dos votos de uma eleição. Estes são apenas alguns exemplos de como a Política bate à nossa porta cotidianamente, querendo ou não, gostando ou não. Daí a importância do voto, da escolha dos governantes pelo voto, de modo direto, secreto, individual, sem cabresto, sem colinha, sem controle.
Já falamos em outras abordagens dos adjetivos que acompanham o substantivo voto: secreto, consciente, alienado, formal, etc. Acrescentemos mais um adjetivo à lista: voto útil. Falemos agora deste tipo de voto que ocorre quase exclusivamente em eleições majoritárias, com muitos candidatos e um só cargo em disputa. Este tipo de voto, também chamado de voto estratégico ou tático, é o voto dado a um candidato que não é o escolhido ideologicamente, mas é o voto endereçado a outro candidato que tem chance de tirar do páreo candidatos indesejáveis, com propostas desconstrutivas, antiprogressistas – ou sem plataforma de governo definida. Este voto não se confunde com o voto consciente, mas não se distancia dele, pois se embasa em outro tipo de consciência política, pode mudar o rumo de uma eleição.
Contra este tipo de voto, o argumento é que o voto útil falseia o perfil ideológico de uma eleição, pois leva o eleitor a escolher candidato que não é o seu preferido, a sua escolha primeira, inclusive enfraquecendo o partido do eleitor, reduzindo a representatividade de seu partido no parlamento. De certa forma, este voto atribui muita consideração às pesquisas prévias eleitorais. Ou, como num jogo, atende a demandas de outros partidos, nem sempre verdadeiras ou exatas. Também faz parte desse jogo prévio, a demanda de “votar em outro candidato que tenha chance já que o seu candidato está mal nas pesquisas e não tem chance de avançar para o segundo turno ou para buscar vitória num turno único”. Já vimos isso em algumas eleições em que o candidato próprio de um eleitor não deslancha e sofre o assédio de outros buscadores de votos para transferir o voto para quem tem real chance de ganhar ou derrotar algum candidato indesejável. Pesquisas já feitas em outras eleições mostraram que muitos eleitores podem mudar o voto, se sentirem que o candidato indesejável pode ganhar: mudariam para impedir a vitória do indesejado. É nesse sentido que esse tipo de voto é pragmático, útil, estratégico. Mudar o voto para não perder o voto. Votar no candidato que realmente tem chances de derrotar quem o eleitor não quer ver eleito de modo algum, sustentado por pesquisas que mostram o seu candidato de primeira opção abaixo da possibilidade de real disputa. Votar para ganhar, mudar o voto para não o perder, como se fosse num jogo em que tudo se faz para chegar à vitória, como prega o bordão popular “lá se vão meus anéis, mas ficam os dedos”. Há quem não goste de perder nem em disputa de palitinhos. O momento em que o eleitor faz esta opção (difícil?) é na reta final do pleito.
Finalizando estas breves anotações políticas sobre o voto útil, vale pontuar: a) não há consenso entre os estudiosos sobre a real utilidade do voto útil, pois uns acham que demonstra um raciocínio mais elevado do eleitor, voltado para o coletivo, que analisa o processo como um todo e aposta no cenário menos prejudicial, sendo, portanto, uma qualificação do eleitor e do voto; e alguns que defendem que esta escolha é ruim para o processo democrático uma vez que impedem o fortalecimento de outras tendências ideológicas e impedem o surgimento de novos nomes,
b) não se pode avaliar a presença do voto útil nas eleições como algo positivo ou negativo, mas apenas como uma instância do possível em eleições, e, por último,
c) a decisão pelo voto útil é individual e deve ser tomada com consciência, dada a importância do voto, um dos pilares básicos da democracia.
Escolher e votar é processo dos mais importantes na democracia e na escolha de nossos representantes, indiretamente, após a apuração dos votos. Acompanhar a execução das políticas públicas dos eleitos é tão importante quanto escolher os políticos futuros ocupantes dos cargos públicos.
Edson Gabriel Garcia, 2002, junho batendo ponto, anunciando para breve a real utilidade ideológica de um pleito eleitoral.
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Bastidores
Bastidores. O tema é dos mais escorregadios, sem deixar, no entanto, de ter presença garantida em qualquer roda de conversa sobre Política. Sempre vale, para um começo de conversa, voltar à origem da palavra, provavelmente vinda do dicionário espanhol. Originalmente, bastidor vem do verbo bastear, cujo significado é acolchoar, colocar bastas em um colchão, sendo que bastas são os pontos de amarração dados em um colchão ou almofada para manter o recheio no lugar, preso, amparado, seguro. De certa forma, podemos inferir, pedindo liberdade para o leitor para fazer inferências, que a importância de se colocar bastas se deve à necessidade de preservar o mais importante, o que fica visível e apresentável. Daí, um pulo e as bastas/bastidores avançaram para o teatro, significando os fios, panos e estruturas usadas na cena teatral, com o objetivo de resguardar a cena principal. Nesse sentido, bastidor trouxe consigo a forte significação de algo (panos, fios, estrutura de madeira etc.) que servia como suporte para a garantia da qualidade da cena principal. Mais recentemente, mas não tão próximo de nossos dias, bastidor se refere ao aparelho de madeira, com variações de forma, destinado a prender o tecido em que será feita a arte do bordado, mantendo o cenário do bordado bem ajustado e seguro para que tudo possa ser realizado com qualidade. Na arte teatral, ganhando cores de substantivo plural, bastidores continuou a significar as laterais da cena teatral de um palco, com a mesma significação ampla de dar sustentação a uma peça de arte. Com a complexidade dos modernos teatros, essa carpintaria passou a ser feita com mais equipamentos e materiais, toda a equipagem por trás da cena, que a plateia não vê, mas que garante o fundo para a forma final da arte representada. Desse significado literal, bastidores, agora mais próximo dos nossos tempos e da atualidade, evoluiu, conforme regra linguística passível a qualquer língua do planeta, para significados figurados, passando a significar privacidade, intimidade, enredos e tramas particulares, fofocas, mexericos, intrigas, preservando a significação de aquilo que não se vê ou que não vem a público. Como os bastidores da Política.
Hoje, quando falamos em bastidores, principalmente se a conversa é sobre Política, o que primeiro vem à mente é um significado pejorativo, de algo escondido, pérfido, traiçoeiro. É o que nos ensinam, nos forçam a pensar dessa forma, para que formemos ao longo dos tempos uma compreensão de Política como algo sujo, em que não se pode confiar em ninguém, em que a traição é o que mais predomina. Penso defender nestas breves anotações uma posição diferente e jogar novos focos de luzes sobre o significado de bastidores (na Política).
Bastidores (na e da Política). Também na Política, bastidores trazem consigo o significado de algo que não se vê, que se realiza por trás dos panos da cena central, mas podem ser qualificados tanto quanto a cena principal. O tempo político de cena (poderíamos chamá-lo de tempo político teatral) é rápido, curto e mais voltado à mise-en-scène (o que aparece de imediato). É, no entanto, nos bastidores que as conversas, os acordos, as decisões e encaminhamentos são tomados. O tempo de bastidor é maior, mais livre, menos enquadrador, mais solto e informal. É nesse tempo, tempo de bastidores, de coxia, que as conversas políticas vão se dando, se acomodando, as aparas acertadas, os acordos vão acontecendo. Claro que há divergências e posições diferentes, mas as conversas de corredores, de gabinetes, de café, de pé de ouvido e de tapinha nas costas vão ajeitando as abóboras (para lembrar de um provérbio popular que diz que é no balanço na carroça que as abóboras vão se ajeitando). Colégio de líderes, reuniões de bancadas, reuniões de lideranças, agendas do legislativo e executivo, agenda com grupos representativos da sociedade, audiência com filiados e ou comunidades etc. que não aparecem na boca da cena são determinantes para a ação política final. Na maioria das vezes estas costuras (chamo de volta a significação original de bastidores em que a costura com fios era tão decisiva) são feitas em longos tempos e tantas conversas para que as decisões possam amadurecer a partir de muitas vozes. Isso nem sempre vai significar que a existência desses bastidores leva a tomadas de decisões que interessem à maioria, mas evidenciam a relevância das conversas, intrigas, tramas e pluralidade de gestos e vozes dos bastidores. Bastidores na/da Política são deveras significativos e podem indicar os resultados que teremos adiante em votações, por exemplo, ou acordos para escolha de líderes, de presidente de parlamento, etc. Muitas vezes está nos bastidores o mapa dos encaminhamentos futuros, fofocas e intrigas e maledicências e folclore à parte. Parlamentares podem ser cassados por conversas desavisadas de bastidor ou por vídeos vazados nas redes sociais, que, a princípio, não eram para a cena principal.
Como forma de ilustração e não de argumentação, lembro aqui de escritas de Yuval Noah Harrari, autor do monumental SAPIENS, que divertem e instruem sobre a capacidade da linguagem que os humanos sapiens desenvolveram há mais de setenta milênios. Fala da linguagem como capacidade evoluída de partilhamento de informações sobre o mundo e poder pensar coletivamente sobre isso. E fala, também, provocativamente, sobre uma teoria da fofoca que se dá na maior parte do tempo em que os sapiens estão juntos. Nada pejorativo com relação às fofocas. Eu acrescentaria que os bastidores fazem parte importante dessa teoria da fofoca. Talvez isso explique o imenso sucesso de livros/séries/documentários/entrevistas/etc que relatam bastidores de vida, eventos, acontecimentos, descobertas...
Por isso que saber ler e ouvir bastidores quando estes são mostrados e falados e citados deve fazer parte da aprendizagem política.
Edson Gabriel Garcia, 2022, maio dando acenos de despedidas, com os possíveis bastidores da última pesquisa sobre a próxima eleição agitando nossas esperanças e fofocas. |
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Violência, cotidiano e Política
Falar de violência não é das coisas mais agradáveis. Mas... é preciso.
Comecemos por uma andança no dicionário para levantar o que cabe no conjunto do significado. E aqui cabem muitos verbos, cuja prática gera episódios isolados ou contínuos de violência, tais como: desobedecer, infringir, quebrar, transgredir (descumprimento), estuprar e violentar (estupro), desrespeitar, profanar (desrespeito), invadir, penetrar, ocupar, adentrar (entrada sem autorização), romper, arrombar, forçar (abertura forçada), agravar, devassar, fazer bullying, cancelar, difundir, apregoar, divulgar fake News (publicidade indiscreta ou mentirosa), desabonar, desonrar, macular, manchar (desabono pessoal), torturar e negar acesso aos direitos humanos básicos etc. Para nossa tristeza ainda cabem outros mais e ainda há o que se esperar da história da humanidade, tão pródiga em criar histórias de violência, desde os tempos dos bíblicos irmãos Abel e Caim, passando por Nero colocando fogo em Roma, os horrores das guerras, os abomináveis golpes de estado e seus regimes de exceção, holocausto, tortura e morte. Para além de nos horrorizarmos com isso, precisamos conhecer melhor com o que estamos lidando para produzirmos antídotos. Contra a violência, a cultura da paz.
Violência pode ser definida como todo e qualquer tipo de agressão sofrida por uma pessoa ou grupo de pessoas. Agressores são pessoas, grupos e instituições.
A violência pode se apresentar em forma de agressão física ao corpo, agressão psicológica, que mesmo não sendo vista é sentida como uma forma de pressão, de opressão, de mágoa. A violência pode ser social, principalmente quando é praticada por órgãos ou instituições públicas ou particulares, que discriminam, maltratam ou ofendem. Violência pode ser praticada pela ausência de respeito aos direitos básicos das pessoas.
A violência tem caras diferentes e quanto mais aprendermos sobre suas causas e razões, mais podemos combatê-la. E para combatê-la é bom que tenhamos conhecimento de sua aparência, de sua forma de se apresentar. A lista seguinte é longa, embora não seja definitiva nem tão pouco completa, mas incita a uma reflexão inicial:
*agressão física em casa contra os próprios familiares (contra as mulheres ou filhos, inclusive explorando crianças expondo-as a situações proibidas por lei como pedir dinheiro em faróis ou submetendo-as a sevícias sexuais e agressões)
*agressão física em órgãos policiais (tortura, por exemplo, em época de regimes políticos ditatoriais)
*toda forma de preconceito (principalmente contra as mulheres, população negra e pessoas do grupo GLBTQIA+ )
*uso de drogas (violência contra o próprio corpo)
*analfabetismo (impedir o acesso à escola ou não promover vagas em escolas de qualidade para todo cidadão)
*miséria (num país como o nosso, com o agronegócio altamente produtivo e rentável, muita gente passa fome)
*grupos de extermínio (sob a justificativa “injustificável” de melhorar a sociedade, matam sem lei e sem ordem)
*gangs, formadas por jovens bandidos, que perseguem, maltratam – e até matam – por preconceito e intolerância pessoas que pensam e agem diferente
*mau atendimento nos postos de saúde e boicote a consulta médicas, exames, medicamentos e hospitais
*discriminação no trabalho
*vandalismo (que é a destruição do patrimônio público: escolas, praças, prédios etc)
*censura (impedir que as pessoas manifestem livremente seus sentimentos e pensamentos)
*corrupção (desvio do dinheiro público para o bolso de pessoas particulares ou grupos privados em prejuízo do atendimento a necessidades básicas de cidadãos)
* lentidão da justiça (que demora para identificar e punir quem comete crimes, principalmente os crimes enquadrados na categoria das “violências”)
*bullying (ação covarde dos mais fortes contra os mais fracos, como o fenômeno chamado cyberbullying, muito presente nas redes sociais)
*estímulo ao armamento da população (quando a voz da ignorância prega ser mais importante comprar uma arma do que por feijão no prato)
As causas da violência são múltiplas, mas na base da maioria de todos os atos violentos está a Política – ou a falta de políticas públicas. Nem só a intolerância, embora esta seja a porta de entrada, é a causa da violência. Ideias preconceituosas, sentimento de superioridade, ignorância, excesso de individualismo, irresponsabilidade, falta de respeito pelos outros. Estas coisas todas se combatem com educação de qualidade, com liberdade de expressão, com estudos e conhecimento. Não só. Também e, talvez principalmente, com Políticas Públicas que norteiem que país queremos, tais como: Política para a Paz, Desarmamento, Campanhas de Esclarecimento, Fortalecimento da Educação Pública, Fortalecimento do Sistema Único de Saúde, Fortalecimento das Instituições de Controle do Gasto do Dinheiro Público, Programas Assistenciais, Política Sólida de Proteção ao Meio Ambiente, entre outros, e, sobretudo, o Fortalecimento do Regime e das Instituições Democráticas. Como prega um adágio popular norte-americano: “contra os males da democracia, mais democracia”.
Estas anotações sugerem a você pensar um pouco sobre isso, no seu cotidiano, em suas relações com os amigos e amigas, com os colegas de classe, professores, colegas de trabalho, familiares e outros grupos dos quais você faz parte. Isso só pra começar a conversa!
Edson Gabriel Garcia, maio, 2022, aprendendo com a natureza, novos ares climáticos nos ensejam a mudanças políticas.
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Outros conceitos que ajudam a entender melhor as eleições
Não se deixe enganar. Saiba um pouco mais do que está por trás de algumas palavras, conceitos ou ideias usados cotidianamente por nós, muitas vezes com desconhecimento ou imprecisão.
ELEIÇÕES MAJORITÁRIAS e ELEIÇÕES PROPORCIONAIS
Os adjetivos “majoritárias e proporcionais” dão a dica do que isso significa. Eleições majoritárias são aquelas cujo resultado é apurado pela maioria dos votos. Estará eleito o candidato que tiver mais votos (prefeito/a, governador/a, presidente/a e senador/senadora), no primeiro turno ou no segundo turno, se este for o enquadramento do município. Eleições proporcionais são aquelas cujo resultado é distribuído proporcionalmente entre o número de cadeiras e o número de votos conquistado pelo conjunto dos candidatos de um partido (vereadores/as, deputados/as). Quanto mais votos uma legenda e seus candidatos tiverem, maior será o número de cadeiras. A apuração das proporcionais se dá apenas no primeiro turno.
SEGUNDO TURNO
O segundo turno de uma eleição está regulamentado nos artigos 28, 29, inciso II e 77, da Constituição Federal de 1988. Conforme estabelecidos neste documento legal, o segundo turno somente poderá ocorrer em municípios com mais de duzentos mil eleitores se houver necessidade na disputa dos cargos majoritários. A definição de eventual segundo turno nesses municípios é pelo critério de “maioria absoluta” dos votos válidos no primeiro turno. Isto significa que um/a candidato/a a eleição majoritária, nos municípios com mais de duzentos mil eleitores, terá que disputar um segundo turno se não fizer cinquenta por cento dos votos válidos. A disputa dar-se-á entre os dois mais votados. Caso um dos candidatos obtenha esta maioria (cinquenta por cento dos votos mais um) no primeiro turno, estará eleito sem necessidade de segundo turno.
REELEIÇÃO
Reeleição é a possibilidade de concorrer mais uma vez, em sequência, ao cargo ocupado, renovando o mandato. O estatuto da reeleição já está presente no país desde o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, aprovado naquela época, e que permitiu sua reeleição, sob acusações de diversas trocas de favores e compra de votos dos parlamentares votantes. No Brasil, prefeitos/as e vices, governadores/as e vices e presidente da república e vice podem se reeleger, em sequência, apenas uma vez. Vereadores/as, deputados/as estaduais e federais não têm limite para a reeleição. Desde quando foi aprovada, a reeleição enfrenta fortes críticas, principalmente no sentido de que quem disputa nova eleição para o mesmo cargo, estando no exercício do cargo, usa a máquina pública em benefício próprio. A crítica procede. Basta ver o número altíssimo de prefeitos e governadores e presidentes que se reelegem. À boca pequena se comenta que só não se reelege quem não quer.
COLIGAÇÃO
O prefixo “co” tem o sentido de concomitância, companhia, simultaneidade. Coligação, assim como coalizão, tem esse sentido de companhia, de agrupamento, de conjunto. Coligação é, portanto, em Política, um agrupamento de partidos em uma eleição, com vistas a formarem um grupo de partidos que disputarão cargos conjuntamente. Uma coligação de partidos para disputar uma eleição proporcional significa que a soma dos votos de todos os candidatos que formam a coligação é que indicará quantas cadeiras parlamentares cada coligação terá. Se a soma de votos dos candidatos dos partidos da coligação der direito a cinco cadeiras, por exemplo, em uma Câmara de Vereadores, os cinco candidatos com mais votos na coligação ocuparão essas cadeiras. Atualmente, a coligação só é permitida na eleição majoritária, conforme a Emenda Constitucional 97/2017. Mas... tudo pode mudar a qualquer momento.
COALIZÃO
Coalizão tem o mesmo significado de coligação. A diferença, se existe é de ordem prática, uma vez que a coalizão se dá no sentido de tornar a governabilidade (ou governança) de um país, estado ou município coletiva e cooperativa, com a participação nesse governo dos vários partidos da coalizão.
FEDERAÇÃO PARTIDÁRIA
A Federação Partidária já vinha sendo discutida desde 2011, mas foi apenas em 2021 que virou lei (Lei 14,208/11) e, portanto, realidade. A Federação é uma associação de partidos, sem a perda de sua identidade. Tem caráter mais duradouro, permanente se esta for a opção, e deve durar pelo menos quatro anos, diferentemente das coligações que são eventos eleitorais. Unir-se em Federação impõe aos partidos federados afinidade programática, uma abrangência nacional e respeito a um tempo mais longo de duração. Desfiliando-se da Federação o partido sofre restrições, entre as quais a possível perda de mandato no caso de parlamentar que deixa um partido filiado à Federação e perda do fundo partidário. Embora seja um movimento político interessante, algumas análises dão conta de que a Federação é uma forma de se escapar da cláusula de barreira (exigência imposta legalmente que exige um certo número de votos e de candidatos eleitos para que tenham acesso ao sempre cobiçado fundo partidário).
BANCADA PARTIDÁRIA
Nos referimos à bancada partidária como o conjunto de parlamentares de um mesmo partido eleitos para um mandato legislativo. Legalmente, os mandatos pertencem ao partido, à sigla pela qual o parlamentar foi eleito. Nesse sentido, ele exerce o mandato, em nome do partido, de tal forma que segue as orientações partidárias e deve ser fiel a essas orientações. O Tribunal Superior Eleitoral tem entendimento que, por sermos um sistema representativo, o mandato pertence ao partido. O termo “bancada” também pode se referir a grupos de parlamentares não oficializados, de partidos diferentes, que atuam em conjunto por causas específicas. Exemplos disso são as chamadas “bancada da bala, bancada evangélica, bancada da educação, bancada do agronegócio, bancada ruralista etc.). Nesta mesma direção de agrupamentos, também podemos falar de bloco partidário, um agrupamento de partidos políticos com interesses comuns.
ESTELIONATO ELEITORAL
O estelionato eleitoral, o “giro político”, traz a mesma raiz significativa: ludibrio, engano, mentira para obter lucros. Caracteriza-se como o uso de uma plataforma eleitoral (promessas, declarações, programas de governo etc.) durante a campanha, para se eleger, e negar sua prática depois de ter conquistado o cargo. É o famoso “prometeu e não cumpriu”. Ainda que presente em nossos pleitos, não se tem notícias de políticos cassados por esta impropriedade.
Estes conceitos e ideias sustentam boa parte da estrutura política brasileira, via eleições. Nada mais necessário do que entender melhor esses meandros da teoria e prática das eleições. Como diz a sabedoria popular: o saber não ocupa lugar. A ignorância, sim.
Edson Gabriel Garcia, 2022, maio que avança rumo ao inverno, despertando em nós as vontades de aprender, sempre e sempre. |
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Pequeno e pouco exato dicionário preliminar de ideias políticas (1)
O significado de palavras, ideias e conceitos são construções históricas. O que antes significava uma coisa, com o tempo, pode significar outra. Algumas palavras e ideias, num mesmo tempo, podem ter interpretações diferentes. Isto certamente faz parte da compreensão do repertório de significados que temos a nossa disposição, cujos significados sempre conterão um pouco do olhar de quem define as palavras e as ideias e outro tanto do olhar de quem ouve ou lê. Em meio a este lamaçal escorregadio, mas gostoso e necessário, proponho algumas definições. Sua participação como leitor autônomo e crítico é bem-vinda.
VOTO CONSCIENTE
A história do voto no Brasil não é linear e vem recheada de remendos feitos aqui e ali. Desde os tempos do Brasil Colônia em que apenas os escolhidos para fazerem parte da Assembleia dos Homens Bons, votavam, até hoje, em que o voto é obrigatório e garantido a todos e todas, inclusive facultativo aos jovens a partir de dezesseis anos, completados no ano da eleição até poucos meses antes, que tiverem interesse em votar, numa clara e positiva tentativa de envolver a juventude na Política, conquista da Constituição Federal de 1988. A característica mais positiva do voto é o seu caráter de escolha pessoal e secreta. Em tese, ninguém fica sabendo em quem cada um de nós realmente votou. Como já falamos sobre a história do voto em outros textos, interessante agora é tentar qualificar o que deve ser um voto consciente. O que é um voto consciente? Voto consciente é o voto pensado, comparado, estudado, discutido e cravado na urna eletrônica como dever de se fazer uma escolha politicamente saudável e boa para a sociedade como um todo. Voto consciente é um voto que pede ao eleitor seja ele um estudioso, um conhecedor, um buscador de informações. Alguém que antes de escolher e votar se ponha em campo para saber mais da história do partido político, que muitas vezes troca de nome para livrar-se de sua história de parceria com as políticas ditatoriais, negacionistas, exploradoras de trabalhadores, omissos na defesa de avanços sociais. Para saber mais da história do político que se apresenta como novo, como justiceiro, como messias, apesar de ter negado tudo isso no seu trajeto.
O tema “voto” é tratado como cláusula pétrea em nossa constituição.
CURRAL ELEITORAL
A origem dessa expressão se reporta aos tempos da chamada primeira república em que os grandes proprietários de terra, os coronéis, exerciam poderes quase absolutos sobre a população mais pobre ou que moravam nas grandes fazendas. Em razão dessa dependência econômica esses oligarcas estabeleciam sua rede de influência e domínio, principalmente pelo controle da Política da região. As eleições eram manipuladas e fraudadas de todos os modos possíveis, com violência, se necessário, e valendo-se, também, da ignorância educacional e do analfabetismo dessa população, para que o poder das elites fosse mantido pelo mesmo grupo. O resultado dos pleitos eleitorais garantia aos grupos dominantes a manutenção da ordem estabelecida em seu favor. Verdadeiros currais onde o gado era mantido preso, cercado e dependente. Daí, a expressão curral eleitoral, num sentido pejorativo, designando um grupo de pessoas dominadas feito gado por um coronel que a ele obedece, cujo voto vai para onde o berrante indica. Ainda hoje, com a migração desses grupos rurais para a periferia das cidades, principalmente, ainda há resquícios de currais eleitorais. O gado não vota mais pelo cabresto, antes mantido pela ignorância, analfabetismo e dependência econômica, mas a dependência e a força ideológica de elites dominantes ainda cultivam seus currais eleitorais que votam pelo cabresto sutil da ignorância política ou, não menos sutil, pelo cabresto religioso. A compra de votos e a troca escancarada de votos por migalhas ainda fraudam a dignidade do voto.
VOTO DE CABRESTO
Essa expressão, de menor uso atualmente, deriva-se por semelhança com a condução do animal de um “gado”. Animais irracionais, sem o uso consciente da razão, são conduzidos por um cabresto, uma peça do arreio que prende o gado pela cabeça e pela boca. Ou seja: só um animal é conduzido por cabresto. Esse animal, que não usa sua consciência e raciocínio, diferentemente do homem, é conduzido pelo cabresto. Voto de cabresto, é portanto, coisa de gado, ação de votar que não passa pela consciência ou pensamento, mas obedece ao patrão, ao coronel, ao capitão, ao jagunço. A dependência econômica e o atraso intelectual são os ditadores do voto de cabresto.
INFLUENCIADORES/AS DIGITAIS
Sinal dos tempos: nossos votos também são dirigidos pelos influenciadores digitais. Carreira relativamente nova na praça, o/a influencer digital é a pessoa seguida por milhares de pessoas em sua rede digital e que pode exercer o poder de influenciar o grupo de seguidores. Sem entrar no mérito se o que produzem de conteúdo tem valor social ou não, esses profissionais podem – e fazem - influenciar a vida, o estilo, os rumos e as escolhas de seus seguidores. O voto também? Sim, o voto também, pois os/as influencers vendem produtos, comportamentos e ideias. E os mais desavisados, optantes pelo voto fácil, sem compromisso, podem seguir as dicas propostas por seus “mestres ideológicos”. Não é à toa que as redes sociais vêm tomando espaço das antigas formas de se fazer propaganda política. Sinal dos tempos, mais uma vez fica o registro de que o voto consciente é coisa séria e que precisa desligar-se do movimento digital consumista, aleatório, superficial. Voto não se compra e muito menos se vende, tampouco é mercadoria barata para consumidores frouxos.
URNA ELETRÔNICA
A palavra urna é plurissignificativa. Sua significação básica, no entanto, designa um objeto material onde se guardam ou depositam coisas, inclusive, modernamente, cinzas de corpos cremados em cerimônias de funerais. Urna eletrônica deriva da urna eleitoral antiga, geralmente um saco de lona onde os votos de papel eram depositados para serem conferidos. Uma operação grandiosa e custosa, nem sempre com resultados desejados, precisava ser montada para guardar a fidelidade e correção dos votos. Com a evolução acelerada da tecnologia, nos distantes idos de 1996, as primeiras urnas eletrônicas foram testadas em alguns municípios brasileiros, com vistas a dar maior praticidade, economia e segurança às apurações. O TSE – Tribunal Superior Eleitoral - foi o responsável por esta mudança no modo de cravarmos nosso voto, deixando para trás gigantes da tecnologia mundial, como os EUA e o Canadá, por exemplo. Em 2000, o país todo votou confirmando o voto pela urna eletrônica, processo exitoso até os dias de hoje. O sistema é frequentemente testado por especialistas, à vista dos partidos, da OAB e do Ministério Público. Apesar das controvérsias e acusações supostas de possibilidade de fraudes, o que nunca ocorreu, a urna eletrônica segue firme a caminho de sua maturidade.
RELAÇÃO DO VOTO COM A EDUCAÇÃO
Qualquer discussão séria sobre caminhos para melhorar aponta para uma única direção: educação. Uma educação de qualidade levará o povo ao patamar de mudança de comportamento e não mais a ser presa de coronéis, influencers digitais, líderes personalistas, caudilhos, salvadores da pátria, messias e políticos outsiders. Um povo banhado por educação de qualidade, verdadeiramente qualificada, saberá reconhecer falsidades, mentirosos de plantão, ler histórias pessoais e partidárias. E votará com consciência, cobrará de seu escolhido as propostas estampadas no programa de governo ou plataforma de atuação.
Edson Gabriel Garcia, 2022, maio vindo anunciar que conquistas sociais são frutos de lutas, compromissos e participação.
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Calendário Eleitoral
É provável que somente quem viveu os tempos sombrios da ditadura militar (1964-1985) saiba o que foi viver sem poder votar e escolher seus representantes no Poder Executivo Federal e Estadual, nas capitais e DF. Tempos de governantes biônicos apadrinhados pelo poder militar e a eles subservientes. Aos poucos, no caminho da redemocratização e na esteira da Constituição Federal aprovada em 1988, fomos ampliando o arco dos votantes e dos votáveis. Atualmente, a festa cívica do dia das eleições tem um calendário que começa muito antes da votação propriamente dita. A este período chamamos de calendário eleitoral.
Um pouco de história: lá pelos idos de 1932, o governo ditatorial de plantão criou, por decreto, a Justiça Eleitoral brasileira, com a responsabilidade principal de dar conta da realização das eleições, em todas suas circunstâncias. Adiante, em 1988, a Constituição Federal estabilizou legalmente, nos artigos 118 a 121, a Justiça Eleitoral. O Brasil é um dos raros países do mundo democrático que tem uma justiça específica para as eleições, com a concentração dos poderes legislativo, administrativo e judiciário. A maioria dos países deixa a realização de eleição para o próprio poder executivo ou para organismos externos aos três poderes. Basicamente, a Justiça Eleitoral, aqui, é composta pelo Superior Tribunal Eleitoral, de âmbito federal (formado por sete juízes, emprestados de outros poderes, com mandato de tempo determinado), e pelos Tribunais Regionais Eleitorais, de âmbito estadual, Juízes Eleitorais e Juntas Eleitorais. Ao STE cabe a tarefa maior de dar as diretrizes, seguindo suas competências, garantindo a lisura do pleito, conforme o Código Eleitoral e baixando instruções, por resoluções, ajustando o processo eleitoral às alterações e aos avanços sociais e políticos. A realização de um pleito eleitoral, no Brasil, a cada dois anos, para cargos diferentes, com o estabelecimento do calendário eleitoral, é o regramento que integra as funções da Justiça Eleitoral com o que estabelece o Código Eleitoral, criado pela Lei 4737, de julho de 1965, em pleno regime ditatorial, seguido, ao longo das décadas, por inúmeras outras normas legais, entre estas, a Lei 9096/95, Lei dos Partidos Políticos, a Lei 9504/97, que estabelece regras para as eleições, e a Lei 14 208/21, que permite a criação das Federações Partidárias, com o objetivo de incorporar novas discussões e procedimentos afeitos ao processo, entre os quais, a urna eletrônica. Faz parte desses documentos legais a Emenda Constitucional 97/17, que estabeleceu normas para o acesso ao fundo partidário e proibiu coligações em eleições majoritárias. Além disso, há um grande número de decretos e resoluções (STE) que complementam o arcabouço de normas legais a partir de que o calendário eleitoral é estabelecido.
Então, o que é um calendário eleitoral? Calendário (palavra originária do grego calendas que significava um livro de registro com o primeiro dia de cada mês) eleitoral é a agenda com o registro das principais datas nos anos com eleição. Um calendário eleitoral não é uma agenda definitiva, que serve para todo ano de eleição, visto que também o calendário, além dos partidos, eleitores e justiça eleitoral, deve se ajustar às mudanças legais. Vejamos algumas das datas mais importantes do calendário eleitoral.
JANELA PARTIDÁRIA. Por lei, seis meses antes do primeiro turno das eleições, parlamentares podem mudar de partido, sem perder o mandato. Geralmente a troca é volumosa e ocorre por diversas razões, a maioria, de ordem prática, quase nunca ideológica. Fora dessa janela, a troca é possível, mas é mais difícil. Claro, estamos falando de partidos existentes, já autorizados pelo STE.
PRÉVIAS ELEITORAIS. A escolha de candidatos para cargos majoritários (prefeito, governador e presidente) em um partido pode ser feita por acordo entre os dirigentes, filiados e interessados. Quando há mais de um interessado, o partido realiza escolha interna, prévias. Reza a lenda que prévias é a pior coisa para um partido, pois ocorre com frequência um racha entre os interessados na candidatura. O ideal, conforme a cartilha política não escrita, é que a escolha seja consensual.
CONVENÇÕES E HOMOLOGACÃO DA CHAPA PARTIDÁRIA. Chamamos de chapa o conjunto dos candidatos de um partido que concorrerão em uma eleição. A convenção é uma reunião em que a diretoria do partido, conforme seu regimento, aprova esta chapa com os nomes dos candidatos para ser registrada no Tribunal Regional Eleitoral. Devem seguir as regras de cada eleição, como por exemplo, cota de mulheres na chapa. Uma das questões mais complicadas é a eventual presença de candidatos/as-laranja, aquele/aquela que apenas dá o seu nome para atender regra eleitoral, mas que não atua como candidato/a e muitas vezes é cabo eleitoral de outro candidato.
PRÉ-CAMPANHA. A chamada pré-campanha nada mais é do que o famoso “jeitinho brasileiro” de se fazer campanha, sem estar com a candidatura homologada oficialmente e, mesmo assim, pedir voto de modo oficioso. Informalmente todos sabemos, pela mídia, quem são os candidatos aos principais cargos majoritários e estes entram em pré-campanha muito antes da campanha autorizada. Quem está ocupando cargos eletivos e tem a máquina institucional nas mãos faz uso disso sob a alegação insuspeita de que estão no exercício do cargo. Por exemplo, quando um secretário de educação, declaradamente pré-candidato, convoca diretores para falar sobre projetos da sua pasta está claramente usando a máquina a seu favor. Ou quando um presidente da República inaugura pequenas pontes e trechos de estrada, com discurso político sobre o passado ou o futuro do país, está evidentemente em pré-campanha. O que separa um evento de pré-campanha de uma campanha efetiva é uma linha muito frágil e pouco clara.
CAMPANHA ELEITORAL. A campanha eleitoral propriamente dita, já com os candidatos definidos, vem sendo limitada paulatinamente, principalmente por resoluções do TSE, tanto no tempo de rádio e televisão quanto na extensão temporal e nas formas de se veicular a propaganda. Cada vez mais restrita, as campanhas estão reduzidas a um tempo menor antes do dia da votação, algo em torno de quarenta e cinco dias, e a inserções em rádio e tevê proporcionalmente ao tamanho da representação de cada partido. Partidos com mais políticos eleitos têm mais tempo. Por outro lado, vem ocorrendo limitações de exposição dos nomes dos candidatos, como, por exemplo, cavaletes nas vias e passeios públicos. Showmícios também estão fora de possibilidade. De modo geral, vem sendo formado um consenso entre candidatos e os coordenadores de campanhas que as redes sociais estão se tornando o palanque das campanhas, deixando para trás ações como panfletagem pelo correio e panfletagem em concentrações de pessoas ou em locais de grande circulação.
ELEIÇÃO, APURAÇÃO E POSSE. O dia da votação, uma das maiores festas cívicas de um país democrático, é geralmente marcado (primeiro turno) para o primeiro domingo de outubro. O segundo turno, geralmente, onde ocorre (cidades com mais de duzentos mil eleitores e onde a apuração não registrou a vitória de candidato majoritário no primeiro turno, condição esta alcançada com cinquenta por cento dos votos mais um voto) é marcado quinze dias depois. A apuração, desde o advento das urnas eletrônicas (marcadamente eficazes e só contestadas por políticos retrógrados e autoritários), é rápida e, na maioria dos municípios, finalizada no mesmo dia. A posse de alguns cargos é em 01 de janeiro do ano seguinte. Outros em 15 de fevereiro e alguns em 15 de março.
Independentemente da data da posse, a vigilância, acompanhamento e cobranças de todos os leitos deve ser agenda eleitoral diuturna de todos nós. Calendário eleitoral tem começo, meio e fim curtos. Um mandato tem vida mais longa e todas as ações e políticas públicas dos eleitos interferem, para o bem ou para o mal, em nossa vida. Olho vivo e olhar atento, participação e cobranças: estas atitudes devem ser cravadas diariamente em nosso calendário político. Nada disso tem relevância se você não for um eleitor consciente.
Edson Gabriel Garcia, 2022, maio chegandinho, muito trabalho pela frente, regado a esperançamentos por tempos melhores.
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Redemocratização
Muitas palavras que começam pelo prefixo “re” trazem em sua significação uma retomada de alguma coisa. Assim, redemocratização traz a noção de democratizar novamente, outra vez. Na recente história política brasileira este termo é usado para indicar o período entre os anos 1975 e 1985, época em que o regime ditatorial militar, já exaurido e sem ter onde se sustentar, com inflação batendo na casa astronômica de 240% ao ano, diante da luta da oposição e de todos os movimentos políticos e sociais, iniciaram calculada e forçosamente uma “abertura lenta e gradual”. Ainda governado por generais, esse período teve a frente Ernesto Geisel e João Batista Figueiredo, este último dando mostras visíveis de que se irritava com o poder e preferia “o cheiro dos cavalos ao do povo”.
Um brevíssimo histórico dessa contextualização, de vez que já vão longe os tempos dos “anos de chumbo” e a memória pode trair os desavisados, nos leva de volta ao governo de Jânio Quadros, em 1961, já na nova capital, e sua famosa carta de renúncia em que se referia a supostas forças terríveis que impediam que governasse como bem entendesse. Líder populista, Jânio queria mesmo era ter o poder em suas mãos e governar concentrando poderes. Com sua renúncia, o vice João Goulart começou um governo difícil, com muitas disputas internas, vigiado pelos militares e por parcela reacionária de civis, e ameaçado pela narrativa do combate ao comunismo (é dessa época a narrativa de que comunista comia crianças). Apesar da pressão de alguns setores para que Jango pudesse levar adiante o seu governo, depois de um breve período de parlamentarismo forçado e volta ao presidencialismo, após plebiscito, ele foi sacado do poder pelo golpe de estado, dado na virada de 31 de março para 01 de abril de 1964. Não houve nenhuma revolução. O que houve mesmo foi um duro golpe de estado. Nessa ocasião, os únicos que pegaram em armas foram os militares. De lá até 1985, o Brasil foi governado pela linha dura dos militares, controlando com mão de ferro a liberdade de imprensa, política e a liberdade civil, com ações concretas de tortura, exílio, morte, fechamento de parlamentos, fim da pluralidade partidária e de eleições diretas e controle total da mídia, entre outras ações. Paralelamente exerciam forte controle ideológico e divulgavam um ilusório “milagre econômico”, graças ao endividamento colossal com os fundos internacionais.
Os brasileiros nunca deixaram de lutar contra este Estado de Exceção, pela volta do Estado de Direito, pela democratização do regime de governo. Artistas, intelectuais, professores, estudantes, parte do clero da Igreja Católica, jornalistas e profissionais liberais nunca saíram da trincheira de luta. À redemocratização formal proposta e iniciada pelos militares seguiu adiante com uma série de movimentos e lutas pela abertura democrática. Ao longo desse período, desde 1964, a oposição ao regime ditatorial foi se apresentando e ganhando espaços nos corações e mentes dos brasileiros: movimentos de rua, movimentos grevistas na Região do ABC-SP, maior parque industrial do país, movimento dos estudantes (forte em 1967), movimento pela anistia dos presos políticos e exilados que culminou com a edição da Lei da Anistia, que também interessava ao militares para proteger seus algozes (1979), fim do bipartidarismo (em 1982), movimento Diretas Já -Emenda Constitucional Dante de Oliveira (em 1984, pelo reestabelecimento da eleição direta do presidente, o que não ocorria desde 1960). Em 1985, os militares devolveram o governo aos civis, já com o satânico, perverso e autoritaríssimo Ato Institucional número 5 revogado em 1978. Em 1986 foi eleita uma Assembleia Nacional Constituinte para redigir uma nova constituição, em substituição àquela outorgada pelos militares. Dois anos depois, em 1988, tínhamos nova Carta Magna, com ideais claramente democráticos e respeito aos direitos humanos. Embora principiado pelos dois últimos generais, é a partir de 1985 que se pode falar verdadeiramente em redemocratização, com a volta do pluripartidarismo, eleições amplas e gerais, liberdade de imprensa, participação aberta a todo cidadão. No entanto, não se pode falar de uma abertura democrática ampla e irrestrita, pois muito do chamado “entulho autoritário” ainda permaneceu vivo, disfarçado, e camuflado nos esgotos políticos, tais como, a divisão da oposição de esquerda em muitos partidos e o perdão aos torturadores e assassinos da ditadura. Por um tempo, esta redemocratização foi conhecida como a Nova República, expressão que se desgastou ao longo dos anos, sobretudo por não apresentar quase nada de novo e ainda arrastar vícios anteriores.
Podemos falar que nosso país está “redemocratizado” e que vivemos em um regime plenamente democrático? Eis a questão que paira no ar, acima de nossas impressões. Se por um lado, o regime é democrático, ainda convivemos com um certo desconforto institucional, pois com frequência o regime é atacado por autoritários ignorantes com louvor à ditadura militar e seus torturadores, de triste memória, pela manifestação jocosa de desprezo à Constituição e aos poderes constituídos, em especial à instância máxima da justiça, e pelo estímulo estúpido ao armamento da população, como forma de “defesa”. Por outro lado, a saída para a solidificação da democracia, para além da redemocratização e desses insultos institucionais, é o fortalecimento cotidiano do regime democrático e da Constituição que o desenhou e que o garante. Como o regime democrático, com suas imperfeições, não é uma dádiva divina, o que temos pela frente é a eterna vigilância e a pronta defesa pela participação. A história do nosso país é escassa em exemplos de épocas democráticas plenas. Imperadores, militares, ditadores civis, oligarcas e elite sempre estiveram prontos para dar golpes e assumir o comando da vida política, mantendo assim seus muitos privilégios. Os inimigos da democracia, desde sempre, agem incessantemente, muitas vezes, em silêncio e dentro das normas estabelecidas; outras vezes por suas declarações estúpidas, por suas atitudes e tentativas de alterar a divisão do poder.
Democracia não cai do céu, muito pelo contrário, se constrói cotidianamente no chão de nossa pátria. Ruidosamente.
Edson Gabriel Garcia, 2022, abril que avança célere sem deixar tempo para para titubeios e hesitações.
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O encontro da Ética e da Moral na Política
Política e Ética são como irmãs siamesas: nasceram grudadas, como a cara e a coroa de uma mesma moeda. Não se faz Política sem Ética, como não se faz um edifício sem o alicerce, sem a base. Então, se a Ética é tão importante no exercício da Política, o que devemos entender por Ética?
Ética é uma área do conhecimento humano que se encaixa nos ramos da Filosofia e é, sobretudo, uma disciplina de reflexão. No dicionário, a Ética é definida como um substantivo feminino que significa o “Estudo dos juízos de apreciação referentes à conduta humana suscetível de qualificação do ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente a determinada sociedade, seja de modo absoluto.” Tentarei traduzir este conceito do dicionário para uma significação mais palatável... Ética é um conjunto de princípios e valores (os tais juízos de apreciação) que orientam o comportamento humano, as relações dos humanos na sociedade, qualificando essa conduta com os conceitos universais do bem e do mal. A Ética deve ser universal: seus princípios devem valer para todos os povos e orientam a reflexão na direção do bem comum. Os princípios éticos devem valer para todas as pessoas e para sempre. A Ética é formulada por valores que nem sempre são evidentes, que valem por si próprios e para os quais não precisamos fazer nenhum esforço para entende-los e defendê-los tamanha a sua evidência e importância. Por exemplo, o valor da vida. Não é preciso ser filósofo, nem político, nem religioso, nem sábio, para se entender que a vida é o bem maior de todos nós. Daí decorre que matar será sempre uma atitude condenada pela Ética. Você deve estar se perguntando “mas e a guerra?”. Bem, estamos falando de situações de equilíbrio social. A guerra é uma exceção nas relações humanas. Se houvesse permissão para a guerra, o canibalismo, o genocídio sustentado pelo preconceito e outras formas de assassinatos, a sociedade não sobreviveria diante desse caos, dessa barbárie.
A palavra “ética” vem da palavra grega “ethos”, que significa “costume”. Costume é a forma cotidiana de se comportar. Por isso Ética tem a ver com comportamento, com atitude diante da vida. É também por isso que podemos pensar na ética como a moradia humana, o lugar onde se mora. Cada um de nós tem uma moradia e ocupa parte do tempo em melhorar essa moradia. Como se cada um de nós quisesse morar no melhor lugar do mundo, onde o bem estar e a qualidade de vida estivessem presentes.
Ética é isso: nossa postura diante da vida, os valores que garantem o bem estar das pessoas, os valores que nos fazem mais humanos. É o estudo da Ética que nos faz aprender sobre os valores que nos levam a compreender melhor quem somos, nossas relações com os outros e com o ambiente, tendo sempre à vista o bem estar comum.
É a Ética que nos leva a defender a vida, a entender e respeitar as diferenças, nos permite saber que ao nascer temos direitos universais. É a Ética que nos põe em diálogo constante para buscar entendimento entre pessoas, entre povos, entre grupos étnicos. Sem a reflexão ética, provavelmente a humanidade já não existiria mais, pois teria se autodestruído.
Ética e Moral
Ética e Moral quase sempre são confundidas, como se fossem sinônimos, mas não são a mesma coisa, embora ambas tenham o mesmo significado original de “costumes”. A Moral é mais particular e representa os valores, as regras, o modo comportamental de um grupo humano dentro da humanidade toda. Por exemplo: os jovens de uma determinada religião podem não assistir programas de televisão por entenderem que isso faz mal ao caráter deles. É um modo particular de se comportar, que eles acham válidos e assumem. Isso faz parte da moral deles. Outro exemplo: um grupo de políticos, de um determinado partido, acha correto arrumar bons empregos públicos, sem concursos e com ótimos salários, para os seus parentes. Enquanto a maioria não acha isso correto, na moral deles isso é válido e se comportam assim. Ou então: pessoas muito ricas se acham superiores às outras e se comportam no trânsito, com seus veículos importados e caríssimos, como se fossem os donos das ruas, avenidas e vias. Ou os supremacistas brancos que pensam fazer parte de uma raça superior...
A esta altura, você deve estar se perguntando: a moral de um grupo dá direito às pessoas se comportarem como prega essa moral, mesmo que seja ruim para as outras pessoas? Um grupo particular e pequeno tem direito de se comportar como prega a sua moral?
Pois bem... é aí que entra a Ética e se estabelece a diferença com a Moral. A Ética aparece aqui como a reflexão que devemos fazer sobre o comportamento da moral. É como se a Ética fosse um juiz e pudesse julgar a Moral dos grupos, condenando ou absolvendo, sempre pensando que uma Moral tem que ser boa não só para um grupo, mas todos os humanos. Essa reflexão, esse pensamento com crítica, faz com que a Moral de um grupo possa ser mudada ou até extinta. Se a Moral que determina um comportamento é boa só para um grupo e prejudicial aos outros, essa Moral não é ética. Tem que ser mudada, aperfeiçoada ou extinta. Não sem razão, não podemos aceitar uma moral política que aceite condutas tais como “rouba mas faz”, “é dando que se recebe”, “tudo acaba em pizza”, “vamos todos morrer mesmo” ou “para os meus amigos, tudo, e para os outros, a lei”.
Ética e Política
A relação da Ética com a Política se dá no sentido de que os políticos são eleitos, nas condições normais e de sociedade equilibrada, para buscar o bem estar comum, a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos. Política sem Ética não é aceitável de modo algum. Assim, se um político é eleito e no exercício do seu mandato mente, engana, rouba, alicia, promete e não cumpre, é notório que sua atuação é rigorosamente antiética. A história oficial do nosso país tem nos mostrado que infelizmente isso tem acontecido aos borbotões e que algumas vezes conseguimos tirar o mandato de políticos imersos na sujeira da podridão e da corrupção.
Desse modo, é a Ética que nos faz pensar, politicamente, em uma humanidade que lute coletivamente por princípios e valores como “justiça social, igualdade entre os homens, vida digna para todos, respeito à vida, respeito aos direitos universais, cidadania e bem estar comum nas cidades e nas nossas moradias, solidariedade entre os humanos, cultura da paz contra a violência, entre outros.”
E aí é bom lembrar de um pequeno detalhe, uma coisinha quase esquecida e pequenina, mas de importância fundamental, chamada DEVER. O dever é o irmão siamês do DIREITO. Estão sempre juntos, grudados, um tem dificuldade de viver sem o outro. Se temos direitos é porque os outros têm deveres. Por outro lado, são os nossos deveres que garantem os direitos dos outros. Aqui, a Ética aparece outra vez: para nos lembrar que a garantia dos direitos só pode acontecer se cumprimos nossos deveres. O dever é algo que sempre devemos aos outros. É como se fosse uma dívida eterna que nunca acabamos de pagar. Enquanto estivermos vivos, devemos deveres às outras pessoas. E quanto mais deveres pagamos, mais teremos crédito em direitos. Parece um jogo de palavras, mas não é: o respeito aos direitos está na mesma proporção do cumprimento dos deveres.
E você pode apostar numa coisa: é muito bom sentir a satisfação do dever cumprido, tanto quanto sentir o prazer de ter o direito respeitado.
Edson Gabriel Garcia, 2022, carimbando abril, mês em que alguns dados começam a rolar, exigindo mais atenção de todos nós.
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Diálogo e participação: pilares da vida política
Se há duas atitudes que sustentam e dão corpo à natureza política humana, estas são o diálogo e a participação.
Diálogo
Diálogo, na língua grega diálogos, e na língua latina dialogu, significa um punhado de coisas: conversa entre pessoas, fala de personagens no teatro ou nos textos literários, entendimento, busca de solução para um problema. Em todas as significações, um diálogo só pode ser realizado entre duas ou mais pessoas. Se for a fala de um só não é diálogo; é monólogo. Diálogo, quando se pensa no entendimento, exige que os interlocutores – as pessoas que conversam – precisam ouvir um a fala do outro, devem respeitar a fala do outro e tentem chegar a um entendimento. O entendimento, fruto dessa negociação, será sempre um ganho. Se apenas um dos interlocutores fala e quer impor a sua fala, isso não é diálogo: é um monólogo autoritário.
Dialogar dá trabalho. É preciso paciência e tolerância para levar adiante um bom diálogo. Mas é o jeito melhor de buscar entendimentos quando há ideias, vontades e jeitos de pensar e agir diferentes. Dialogar exige também que tenhamos alguns comportamentos: saber ouvir, pensar e falar quase ao mesmo tempo, pensar rapidamente sobre o que o outro fala. Exige também que tenhamos respeito pelo outro e pelo que o outro fala. Mas é pelo diálogo com os outros que aprendemos. Aprendemos ouvindo, pensando, falando, ouvindo novamente, pensando novamente e falando. As ideias expostas em um diálogo se misturam e é essa mistura que nos faz aprender um pouco mais. É através do diálogo que mostramos um pouco do que somos e é pelo diálogo que conhecemos um pouco mais as pessoas com quem convivemos.
Dialogar é viver, pensar, botar pra fora ideias e sentimentos. Sócrates, filósofo grego que viveu no século IV Antes de Cristo, difundiu um método, conhecido como maiêutica, que trazia à luz o conhecimento interno de cada um através do diálogo.
Participação
Participação é o ato de tomar partido, de fazer parte de alguma atividade, de algum grupo, de alguma instituição. Claro, você há de concordar que desde que nascemos vivemos em grupo e participamos de um grupo. Há dois significados diferentes na ideia de participação. Uma é a ideia de pertencer a um grupo. Quase todos os seres humanos pertencem a grupo, fazem parte de um grupo. O outro significado é viver no grupo, discutir a vida do grupo, dar opiniões, responsabilizar-se por sua parte no grupo. Pense, por exemplo, na sua sala de aula. Você faz parte desse grupo de alunos, mas pode ficar “na sua”, chegar quieto e sair calado, não se preocupar com os problemas da classe, não palpitar, não cobrar ninguém de nada, deixar tudo como está. De outra forma, você pode participar realmente da vida desse grupo: discutir, fazer propostas e sugestões, responder e fazer perguntas, conviver com os colegas, trocar trabalhos e figurinhas, fazer amigos, brincar e conviver no intervalo, trocar informações, tarefas e livros.
Há grupos mais organizados dos quais só podemos participar se fizermos inscrição ou filiação, como é o caso dos partidos políticos ou um curso. Atualmente, pela Internet podemos participar de vários grupos e discutir virtualmente diversas coisas.
Enfim, participação é um diálogo que você estabelece com as pessoas com as quais vive em um grupo. A lista destes grupos que permitem e pedem a sua participação é grande e vai longe: família, grupo de amigos do prédio, do bairro, da rua, grupo da igreja, turma da escola etc. Bom lembrar que há níveis de participação que vão desde ser simplesmente consultado para dar uma opinião até fazer parte do grupo coordenador responsável pela execução das decisões tomadas. Como o diálogo, a participação dá trabalho. Exige respeito, atenção, boa vontade, exercício do pensamento, vontade. No mundo de hoje, tudo tão corrido, rápido e superficial, quase nunca temos tempo para dialogar ou participar, ficando embrenhados na solidão, na preguiça, no desânimo, no individualismo, a superficialidade. Dialogar e participar é apostar num jeito de se viver mais humano e mais rico. Se dialogar favorece o aparecimento do conhecimento; participar é, sampleando o Pequeno Príncipe, que entendia ser eternamente responsável pelas pessoas que cativava, tornar-se responsável pela execução das decisões tomadas.
Aristóteles, outro craque da Filosofia Clássica grega, discípulo de Platão, que viveu entre os anos 384 e 322 Antes de Cristo, propôs e defendeu a ideia de que o homem é um animal político, com forte tendência natural a viver em grupo (pólis), dada sua dependência de outros humanos para sobreviver, viver e construir-se como cidadão. É, pois, pelo exercício do diálogo e da participação que os humanos reafirmam sua natureza política, de construção de histórias coletivas, de pactos socais de convivência global feitos ou refeitos quando necessário.
Edson Gabriel Garcia, 2022, abril avançando pela primeira via de tempos melhores.
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Alguém tem que fazer alguma coisa
Alguém tem que fazer alguma coisa!!! Esta frase é uma das que mais ouvimos ou lemos, manifestação legítima de forte lamento diante de qualquer descalabro político (CPIs que não dão em nada, desvio de verbas, superfaturamentos, nepotismo, crimes ambientais, desacertos econômicos, posturas preconceituosas etc.). Não há como discordar desse manifesto. Mas é preciso sobrepor a esta afirmação uma indagação: alguém quem? Eis a questão: ao falar ou escrever desse modo, ficamos com a impressão que o/a autor/a da exclamação está terceirizando a responsabilidade de se fazer alguma coisa. Algo como: alguém – que não eu – tem que fazer alguma coisa. Uma postura como a do comandante Pôncio Pilatos que, diante da condenação Jesus Cristo a morrer crucificado, “lavou as mãos”, isentando-se da responsabilidade. Ao afirmar que alguém tem que fazer alguma coisa, o que se está fazendo é lavar as mãos e transferir a responsabilidade para outrem.
Ao longo das últimas décadas, principalmente dos tempos da ditadura até quase os dias de hoje, fomos sendo despolitizados, desacostumados a pensar a Política como uma atividade essencial e necessária na vida de todos nós. Falamos de Política como se ela fosse algo fora de nossa vida, que ocorre em outra dimensão que não a da vida cotidiana de cada um. Os sentimentos que acompanham a Política, os políticos e suas ações, são, em sua maioria, negativos: medo, desânimo, desinteresse, nojo, desconfiança. Fomos levados a aprender a engolir esses sentimentos. Afinal, ficamos décadas sem poder falar ou discutir política e com medo de posicionamentos críticos, distantes da aprendizagem e da vivência política cotidiana. Os grêmios foram abolidos das escolas, substituídos por insossos centros cívicos, o movimento estudantil, fonte de energia jovem, foi debelado, partidos políticos extintos e políticos críticos cassados, ação burocrática de uma censura burra e intolerante, movimentos sociais reduzidos, entre outros. Ao lado dessa ação de controle, censura e penalidades, a massificação feita na grande mídia funcionava como controle social pela via da inculcação ideológica, bombardeados que fomos por desinformações e falsidades históricas, como chamar de revolução o golpe militar, e pela veiculação massiva de slogans do tipo “Brasil: ame-o ou deixe-o”. Como se amar um país significasse ter que renunciar à crítica, ao diálogo, à participação e às liberdades.
O estrago foi grande e pagamos caro por isso até hoje. O sumiço de jovens lideranças fora desse controle foi e é ainda visível. O desânimo diante de problemas e a justificativa mal cheirosa de que “não adianta” ou o descrédito introjetado que “tudo acaba em pizza” são ainda fortes em nosso cotidiano. E a presença desse lamento, que terceiriza a responsabilidade política, é outro exemplo pungente desse custo. Nesse sentido, nem percebemos que “fazer alguma coisa” para mudar o que é ruim na Política também nos diz respeito e é de nossa inteira responsabilidade. Não dá pra lavar as mãos ou fechar os olhos ou sonhar com algum messias fora de tom e de contexto que venha nos salvar. Não há tempos para terceirizar essa reponsabilidade, sob pena de nos enfraquecermos mais e sem forças para as medidas precisadas. Sendo assim, ao proclamar “alguém tem que fazer alguma coisa” é preciso que nos coloquemos dentro dessa afirmação, que nos saibamos sujeitos obrigatórios desse fazer. Cada um de nós está presente neste “alguém”. Não há como apenas terceirizar para outros. É claro que temos representantes eleitos para isso, que assumem esta responsabilidade. Poucos é verdade, em muitas instâncias, nos parlamentos, nos sindicatos, nas associações, mas esta é a situação em que o “quanto mais, melhor” se aplica com exatidão. As instâncias representativas existentes não têm dado conta da demanda que, ainda bem, vem crescendo. Pois que assim seja: cada um de nós é um “alguém”, um sujeito na/da história, com voz própria para “fazer alguma coisa”. Podemos e devemos fazer alguma coisa, por pequena e insignificante que possa parecer, dando voz ao nosso sentimento de repulsa aos maus políticos e suas ações desprezíveis em redes sociais, em círculos de amigos e conhecidos, no ambiente de trabalho, nos sindicatos, nas esferas da Política, nos jornais, na justiça, nos atos públicos e políticos, nas manifestações de rua, seja por palavras escritas, gritadas ou faladas, por charges, por abaixo-assinados, por cartas, por ações na justiça, por carreatas, buzinaços e panelaços.
O que o mau político e o corrupto mais temem é a voz do povo e a pressão popular. E isto, sabemos, só vai acontecer quando o “alguém” embutido dentro de cada um sair e se juntar a outros “alguéns”, formando o “nós”. “Nós podemos e temos que fazer alguma coisa”!!
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer, cantou G. Vandré, há mais de cinco décadas. O que pareciam apenas versos de uma canção vencedora de festival, ganhou nossas mentes e corações, como um chamamento eterno para o exercício da cidadania ativa.
Edson Gabriel Garcia, 2022, abril de peito aberto, que nos convida às lutas para que a liberdade mantenha suas asas abertas sobre nós.
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No mapa dos rótulos ideológicos: esquerda, direita e centro
O campo é minado. Há uma gama muito grande de significações para cada um desses conceitos. Há também, por conveniência, quem negue essa rotulação. No entanto, toda mídia, pequena ou grande, usa com frequência esses termos, com a naturalidade com que se usa palavras inseridas na cotidianidade. Mesmo sendo campo minado, arriscarei transitar neste terreno.
Os termos “esquerda” e “direita” pertencem à categoria gramatical conhecida como adjetivo. Ou seja: são nomes que atribuem qualidades aos seres e objetos. Nesse sentido, qualificar uma pessoa, uma ação ou um partido político de esquerda ou de direita é atribuir-lhes qualidades.
Esses termos, dentro das ações políticas, uma vez que fora delas têm outros significados, foram criados há muito tempo, mais exatamente na época da Revolução Francesa, nas proximidades do finalzinho do século XVIII. A França vinha imersa em uma grande crise econômica e precisava de reformas urgentes. Para isso o Rei Luiz XVI convocou uma Assembleia Nacional Constituinte, com a finalidade de votar medidas duras e necessárias. Como seria de acontecer, em todo cenário político, o jogo de interesses de grupos entra em cena buscando prevalecer sobre o interesse coletivo. Nesse sentido, os eleitos foram se agrupando por interesses que representavam e ocupando lugares próximos no plenário onde ocorreriam as votações. Do lado direito do plenário, ficaram os representantes do funcionalismo real, da nobreza, do clero e dos grandes proprietários de terra. Ou seja, à direita do plenário agrupavam-se os políticos conservadores, os que não queriam mudar nada para não perder os seus privilégios. À esquerda, estavam a classe média baixa, a massa camponesa e os políticos que queriam reformas, acabar com privilégios de poucos, e atender as demandas das classes menos favorecidas. Pois bem, é dessa história que a História foi construindo os conceitos de esquerda e direita.
Daquela data até hoje, muita água passou debaixo da ponte e muita coisa mudou. Entre a esquerda e a direita há posições difíceis de serem identificadas. Além disso, nos dias bem atuais, partidos de esquerda, muitas vezes, ao assumirem o poder, praticam uma política de direita ou se aliam, por interesse, ou em nome da governança, a políticos de direita, que antes eram inimigos ferrenhos. O inverso é também verdadeiro. A extensa massa partidária brasileira, mais de trinta partidos registrados, ajuda ainda mais a confundir esse quadro. Slogans, discursos e programas de governo de quase todos os partidos misturam esses conceitos. Basta estar atento: da esquerda à direita, por exemplo, todos os que pleiteiam governos colocam a Educação como prioridade, embora não o façam na prática.
No entanto, ainda é possível atribuir um ideário às pessoas que se postam mais à esquerda, como aquelas que prezam os direitos humanos, o coletivo, a solidariedade, a fraternidade, lutam por reformas mais amplas, como a reforma agrária, distribuição de renda, taxação das grandes fortunas, por mais verbas para a saúde e educação, posicionam-se contra políticas preconceituosas e elitistas, são favoráveis às políticas de assistência aos mais pobres, pela inclusão social, entre outras causas. Politicamente as pessoas de esquerda, progressistas, se veem nos partidos de esquerda, partidos considerados comunistas ou socialistas. Olham o mundo por este foco, com esta visão: somos todos iguais, temos o mesmo direito a toda riqueza produzida ou encontrada na natureza e, sobretudo, sonham com e lutam por um mundo socialmente mais justo. Ser de esquerda é ter consciência de que se pode mudar o mundo pela Política.
No ideário da direita, cabem as pessoas que prezam a liberdade individual, a meritocracia, a propriedade privada, a privatização de empresas e serviços públicos, liberdade econômica, com liberdade do fluxo do capital estrangeiro entre nós, privatização da educação e da saúde por megaempresas. Pregam um Estado mínimo, enxuto, de pouco ou nenhum alcance para as questões sociais e coletivas. Alinham-se com os partidos defensores do liberalismo. E olham o mundo por este foco, com esta visão: somos livres, diferentes e cada qual tem, independente do seu contexto, origem e classe, que correr atrás do seu sucesso. São práticos e pragmáticos e, modo geral, avessos a mudanças e transformações. Pregam que o mundo é injusto porque diferenças individuais e de etnias determinam. Base de um pensamento ideológico que sustenta vários preconceitos. Ser de direita é ser cético quanto às mudanças na estratificação social e ver a Política apenas como um modo de manter a sociedade como é e de se beneficiar em proveito próprio.
E, entre ambas as categorias, cabe o ideário escorregadio das pessoas de centro, estas mais difíceis de serem caracterizadas, uma vez que tentam conciliar as posições antagônicas da esquerda e da direita. Costumam “ficar em cima do muro”, sem se definir e esperando oportunidades, de um lado ou de outro, para efetuar pequenas reformas e ajustes. O muro parece ser seu lugar de origem mais apropriado e seu porto seguro. Como os políticos dos partidos enquadrados no Centrão, força política que, conforme seus interesses, serve a deus e ao diabo.
Duas observações finais. Primeira: há um modo prático de se observar os comportamentos de esquerda e de direita, pela comparação do discurso com as atitudes. Geralmente o discurso está em um lugar e a prática está em outro. Os gabinetes de ódio falam por si só e deixam bem claro de que lado estão, por exemplo. Os movimentos sociais, como o feminismo, a luta contra o preconceito, movimento por terra e moradia também dizem claramente de que lado estão. A segunda: nem sempre é fácil identificar esses matizes ideológicos exatamente pelo trânsito disfarçado entre um e outro. Por isso a necessidade de se conhecer bem o histórico dos políticos. A ARENA, partido que apoiou todos os horrores da ditadura virou PDS que depois virou PFL, PP, Democratas... e hoje estão filiados em uma sigla nova, escondendo seu passado de direita.
E você, leitor/a, de que lado está? Por qual óculos de leitura você lê o mundo. Só não vale dizer que é apolítico...
Edson Gabriel Garcia, 2022, entre o fim do verão e o início do outono, março caminha abrindo espaços para nossas lutas esperançadas. |
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Estado, país, nação e povo: é tudo a mesma coisa?
Não são conceitos sinônimos. Apesar da proximidade de significação, cada um tem uma definição. Nem sempre há concordância exata na definição desses termos pelos estudiosos, mas há aproximações de significados que facilitam o seu entendimento. A seguir, faremos algumas considerações e relações de cada um desses conceitos.
Estado
O Estado é o nome que damos ao conjunto das instituições de comando de um país. É formado pelo território geográfico, pelas instituições dos três poderes, pelos valores e tradições. O Estado sempre será um agente de poder, de mando, de dominação. Representa o poder político e se impõe sobre os cidadãos (democraticamente ou autoritariamente). Não é a mesma coisa que governo, pois este significa o conjunto de políticos que por eleição ou por indicação, ocupam cargos nas instâncias dos três poderes. O Estado é duradouro (pode ser mudado, mas não é com frequência); os governos são passageiros (um mandato ou mandatos permitidos por reeleições). Modernamente, após a revolução francesa, e com a progressiva eliminação das monarquias e oligarquias, mas em tempos distintos, os Estados foram se constituindo em dois modelos fundamentais: parlamentarismo ou presidencialismo. Em ambos os casos com harmonia e dependência entre os poderes, para se evitar a concentração de poderes em uma pessoa ou grupo de pessoas. Quando falamos em Golpe de Estado, estamos nos referindo a uma mudança brusca de forma de governo, saindo de um Estado Democrático de Direitos (em que os direitos políticos, civis e sociais deixam de ser respeitados) para um Estado Ditatorial (em que todos os poderes são concentrados na mão de uma pessoa, civil ou militar, autoritariamente e os direitos são abolidos). Chama-se “golpe” porque é uma ação de força, que causa ruptura. Foi por exemplo, o que aconteceu no Brasil, em 1964, o Golpe de Estado dado pelos militares, com apoio de parcela da elite brasileira, sob o pretexto esdrúxulo de impedir o comunismo na país. No ápice do autoritarismo, em 1968, baixaram o Ato Institucional no. 5, o mais cruel instrumento de poder e mando autoritário, roubando liberdades políticas, de expressão, de imprensa, impondo silêncios, cassações de liberdade, censura pesada, tortura e morte a quem ousasse enfrentar o regime militar. Páginas de histórias que não queremos mais viver. Somente lembrar para conhecer e repudiar.
País
País é o território geográfico, aquele que é indicado nos mapas, a terra onde as pessoas vivem. Um país tem um traçado geográfico com os limites de sua terra, as fronteiras com os outros países, onde acaba um e começa o outro. O Brasil, por exemplo, está geograficamente localizado no continente América do Sul e faz fronteira com muitos outros países, de um lado, e com o Oceano Atlântico, de outro lado. Esses limites e fronteiras, como de resto no mundo todo, foram se constituindo pela posse, pela conquista, pelo enfrentamento, por tratados, trocas, conflitos bélicos etc. De modo geral, a divisão geopolítica do mundo atualmente sofre raras alterações. As que ainda ocorrem são fontes permanentes de conflitos bélicos.
Nação
Nação é o conjunto de características culturais (língua, tradições, costumes, folclore etc.) que compõe a identidade de um grupo de pessoas. Uma nação é anterior ao Estado, pois surge ao longo de períodos extensos da história em que as pessoas vão se agrupando e criando identidades. Nem sempre uma nação tem um território próprio ou um Estado. A nação cigana, por exemplo, fortemente identificada, sem território próprio, cujos indivíduos vivem em diversos territórios. Há casos de diversas nações que vivem em um território, sob o comando de um Estado, e que buscam sua independência. É o caso do povo basco e catalão, que vivem no território e Estado espanhol, ainda lutam por sua independência e autonomia. Outro forte exemplo é a nação judia que, esparramada pelo mundo, apenas em 1948, no final da Segunda Guerra Mundial e seus horrores, como os campos de concentração, em acordo questionado até hoje, teve o seu território conquistado (Israel) e seu Estado constituído. O conceito mais próximo de nação é o popular “povo”.
Povo
A palavra povo tem mais de uma significação. Pode significar o conjunto de pessoas que moram em um determinado país, como por exemplo, o povo brasileiro. Pode significar também apenas as pessoas de uma determinada nacionalidade, independentemente de onde morem ou vivam. Por exemplo, o povo brasileiro, o conjunto dos brasileiros que vivem aqui no Brasil ou em outros países. Povo pode, também, significar o conjunto das pessoas mais simples, humildes e sofridas de um país. Nesse caso, tem como sinônimo “povão”. A palavra “povinho”, existente em nosso vocabulário, tem uma significação maldosa, preconceituosa, significando “pessoas de menor valor e de pouca importância”.
Soberania
Soberania é a qualidade concedida a alguém ou instituição de ter poder e domínio superior em comparação com outros. Em Política, a soberania nacional significa o poder que um Estado tem sobre o seu país, sobre seu povo. Atacar a soberania de uma nação é ignorar o seu poder, interferindo em sua autoridade sobre o povo, dentro dos seus limites territoriais. Nenhum Estado pode interferir na soberania nacional de outro Estado, sob pena de deflagar conflitos políticos.
Estado Federativo
O Brasil é um Estado Federativo, formado pelo conjunto dos estados (com letra minúscula, para não confundir com o Estado/nação). São os entes federativos, os estados-membros, equivalentes a entidades subnacionais, cada qual com sua autonomia e responsabilidade. Nem sempre os entes federativos e a federação se entendem, haja vista as recentes disputas entre governos estaduais e federal pelo comando das questões relativas à política de saúde para controle da pandemia (ou a ausência de uma política pública para esta ação). Reformas tributárias (criação e extinção de impostos) também são objetos de desentendimentos entre os entes federativos. Quando essas disputas chegam ao limite, o Supremo Tribunal Federal é acionado para apaziguar constitucionalmente.
Edson Gabriel Garcia, 2022, março correndo rapidamente em direção a abril. Águas rolam com parcimônia enquanto o povo faz vigília por um Estado de Direito mais democrático. |
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Impeachment, Cassação e Renúncia de mandatos
Os movimentos da Política são sempre muito dinâmicos. Nada em Política é definitivo ou para sempre. Nem mesmo os mandatos eletivos são garantidos. A pressão popular pela renúncia ou a ação jurídica e política pode interferir em mandatos eleitos e interromper o direito conquistado pelo voto. Ultimamente estes termos/conceitos voltaram a fazer parte de nossas conversas, mesmo que muitas vezes com muitas imprecisões.
Impeachment
Impeachment significa Impedimento (mania de colonizado de usar termos na língua dos imperialistas). Como o próprio termo diz, significa o impedimento de um chefe de executivo (Presidente, Ministros, Governador – prefeitos também podem ter o seu mandato cassado pela Câmara dos Vereadores) de continuar no cargo. É um processo jurídico que acontece no âmbito do legislativo. Se o presidente da Assembleia Legislativa Estadual, no âmbito estadual, ou o Presidente da Câmara Federal, no âmbito do governo federal, acata um pedido, que pode ser feito por qualquer cidadão, com base em um crime de responsabilidade (diferentes de crimes eleitorais, cuja responsabilidade de cassação é do Supremo Tribunal Eleitoral), convincentemente comprovado, é aberto o processo de impedimento.
Processos de Impeachment são abertos, geralmente, na esfera federal. Os dois últimos processos na recente história da democracia brasileira registram a interrupção do mandato de dois presidentes (Fernando Collor, em 1992, e Dilma Rousseff, em 2016). Via de regra, no âmbito federal, o processo começa com a leitura da acusação em plenário. Em seguida uma comissão faz a análise do pedido e das provas, ouve defesa e acusação, emitindo parecer. Se favorável, com dois terços de votos dos deputados, o pedido é encaminhado ao Senado Federal, recomendando o impedimento. De igual modo, o Senado institui comissão para análise e aprofundamento. No Senado, após os trâmites regimentais (cada casa legislativa tem seus próprios trâmites, tais como andamento, tempo, comissões, pareceres, votação etc. definidos em seu regimento interno) o parecer é encaminhado para votação. A votação é feita com a presença de maioria simples, metade mais um dos senadores/senadoras, para que seja decidida a abertura ou não do processo. Aberto o processo, o/a presidente é afastado por cento e oitenta dias. Nesse tempo, o Senado, por nova comissão constituída, aprofunda a análise e leva o parecer, se o/a presidente deve ser julgado ou não, para ser votado, também por maioria simples. Aprovado o parecer, o/a acusado vai a julgamento final em sessão presidida pelo presidente do Supremo Tribunal Federa-STF. Desta feita, o impeachment é decidido por maioria qualificada de dois terços dos/as senadores/as. Se julgado culpado, o mandato é interrompido e o/a presidente fica inelegível por oito anos (no caso do impeachment da presidente Dilma Rousseff, ela não perdeu a condição de concorrer a outro cargo elegível – uma decisão diferente que muitos analistas reputam a uma decisão envergonhada, um golpe parlamentar). Terminado o julgamento, se o/acusado é condenado/a, perde o mandato e o vice assume. Se absolvido, retoma imediatamente suas funções.
Impeachment de governador/a segue processo semelhante e ocorre no âmbito de cada Assembleia Legislativa. Há exemplos recentes de governadores que perderam mandato por corrupção.
Prefeitos e prefeitas podem ser cassados (não há impeachment) pela respectiva Câmara Municipal. Ministros e secretários de governo também podem sofrer processo de impeachment.
Cassação
Cassação, no dicionário, significa anular ou tornar sem efeito alguma ação. Na Política é um ato político relativo ao Parlamento, com estas mesmas significações. Quem pode sofrer cassação são os parlamentares membros da Câmara Federal, das Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais (senadores/as, deputados/as e vereadores/as). A cassação do mandato parlamentar se dá em razão de um crime cometido pelo/a titular (de natureza econômica, moral, institucional, crime civil, contábil etc) e significa basicamente a) perda do mandato para o qual foi eleito: e b) suspensão dos direitos políticos. Na prática, o mandato é perdido de forma cabal, mas os direitos políticos (votar e ser votado) são suspensos por oito anos. O processo de cassação segue mais ou menos o mesmo processo, com pequenas alterações em cada casa parlamentar, começando sempre pelo Conselho de Ética do respectivo parlamento. A maior distinção entre impeachment e cassação é que, no primeiro, o/a ocupante do cargo é afastado/a e, no segundo, o processo ocorre sem o afastamento do/a acusado/a. O artigo 15 da Constituição trata do assunto. Regimentos Internos de cada casa legislativa também.
Renúncia
Renúncia, na Política, significa abrir mão de modo voluntário, sem processos, de um cargo político ou mandato eleito pelo voto. As razões que levam a uma renúncia são muitas e a decisão é ou será sempre pessoal, embora saibamos todos que uma renúncia a um cargo duramente conquistado – e desejado por muitos – tem diversas naturezas subjacentes.
Via de regra, os políticos à beira de uma iminente cassação de seu mandato optam pela renúncia. Renunciando, escapam da perda do mandato por cassação e a consequente perda do direito à legibilidade.
Vale lembrar, para efeito de registro de memória, a renúncia mais famosa, por suas desastrosas consequências, foi a do autocrata, com pendores absolutistas, Jânio Quadros, em 1961, pouco tempo depois de assumir a presidência, eleito por maioria significativa. Até hoje, esta renúncia emblemática, seguida pela posse conturbada e breve exercício de seu vice, em meio a um parlamentarismo meia boca, João Goulart, e pela cruel ditadura militar. Vale, aos interessados mais leituras sobre o assunto,
Um último e breve comentário: de todos esses movimentos políticos fazem parte duas condições: a) são processos com intenso envolvimento dos eleitores, algumas vezes com manifestações de rua; e b) Impeachment e cassação são processos lentos e de tramitação morosa. Há sempre a possibilidade de ampla defesa e movimentos políticos dentro dos respectivos parlamentos que nem sempre são claros para os eleitores.
Edson Gabriel Garcia, 2022, março caminhando nas águas poucas com esperanças muitas de reconstrução do país. |
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Necropolítica: licença para tirar vidas
A vida é o maior bem de cada um de nós, humanos e humanas. Pode até ser um chavão dos mais gastos, mas é a mais pura constatação. Nada há de mais importante do que a vida. A história da humanidade nem sempre registra esse respeito: mata-se em nome do poder, da paz, da ordem, da segurança, de territórios, da água, de deus (qualquer que seja o deus amado ou adorado), da riqueza. Os conflitos políticos, desde os gerados pela sobrevivência na pré-história até os mais complexos instaurados pela cegueira humana das tidas grandes potências, estão presentes em cada página da história oficial da humanidade. O descuido e descaso pela vida (dos outros) parece ser o fio da meada que amálgama a história da humanidade.
Foi o estudioso da Política, intelectual e filósofo camaronês (República dos Camarões – África) Achille Mbembe quem primeiro sintetizou e introduziu nas reflexões o termo “necropolítica”, como um termo capaz de dar entendimento e compreensão para a postura dos Estados Modernos e Contemporâneos que usaram ou ainda usam a violência da força, ocasionalmente, em nome da segurança da população, legitimando essa força através de discursos ideológicos, impondo sua visão de mundo. Em muitos casos, como mostra a história da humanidade, o uso dessa força acaba por validar estereótipos, segregações, preconceitos, inimizades ou o extermínio, na maioria das vezes covarde, de determinados grupos. Em nome da segurança de alguns (supremacia alegada ou pretendida por uns) ou em nome de ideias (supremacia de grupos étnicos sobre outros) ou em nome da ordem política, referendam essa “licença para matar”. A Escravidão e o Colonialismo são exemplos. As ideias de ameaça, medo e ódio ao inimigo, já existentes desde muito, foram preservadas entre nós, sustentadas pela ambição do domínio, do poder, do imperialismo. Se em épocas passadas, as guerras eram iniciadas para preservar terras, ampliar territórios e defender soberanos, nos últimos tempos, os conflitos pela hegemonia imperialista se revestem de crueldade e desprezo pela vida sem precedentes. Massacres, extermínios e o violento poder dos regimes totalitários recentes, como o stalinismo e o nazifascismo ou a ditadura militar brasileira, aprofundaram o desprezo pela vida, o culto e os mecanismos de morte e se estendem a outros campos do comportamento, para além das guerras.
Eis a cara nua e crua da necropolítica: “licença para matar” concedida ou obtida ou imposta pelo Estado.
Nos atuais regimes políticos autocratas, dada a complexidade da sociedade, os discursos são muito mais fortes do que em tempos anteriores, a necropolítica se instaura entre nós pela difusão de narrativas de poder. E o poder vai construindo por suas narrativas esparramadas em muitas instâncias (redes sociais, discursos políticos, leis aprovadas, escolas desprovidas de criticidade, famílias, igrejas etc), calcadas no medo, na ameaça, no ódio ao diferente, de tal forma instalados no pensamento e comportamento da maioria de nós, que molda o direito de o Estado ter “licença para matar”. Exatamente o contrário do que pressupõe nossa vã filosofia do bem comum da maioria.
E assim vai se construindo a necropolítica: a definição do “corpo matável” (outro conceito proposto nos estudos de A Mbembe), a definição de quem pode ser morto sem que faça falta à sociedade, sem que cause espanto ou revolta. Nesse segmento estão grupos apartados pelo preconceito (da suposta supremacia branca), pela miserabilidade, pelas péssimas condições de vida e saúde, pelo não acesso aos direitos humanos mínimos e pelo modo de ser, pensar, sentir e agir diferentes (LGBTQIA+, entre outros).
Os discursos expostos frequentemente pelos chamados gabinetes do ódio são um exemplo disso. Embora não façam parte necessariamente de um determinado governo estão, sim, a serviço de uma ideologia, um modo de pensar o governo e a ordem da sociedade. Cooperam, colaboram e difundem ideias de desprezo ao respeito, às minorias, a determinados grupos sociais. Incitam a inimizade, a segregação, o preconceito e apoiam “licenças para matar”. Qualquer estatística sobre a violência policial no país, por exemplo, aponta a prisão e o assassinato de negros em número muito maior do que de brancos. O culto às armas e o armamento indiscriminado da população também se alinham nesta postura.
Mas não só os negros. Quanto mais frágil for determinado grupo (em classe, raça, gênero, etc.) – sejam mulheres, pessoas de orientação sexual diferente, indígenas ou outras minorias – maior o desequilíbrio entre o poder da vida e da morte sobre esse grupo. Eis uma das razões da presença de inúmeras discussões sobre estruturas pré-concebidas de poder na sociedade que, direta ou indiretamente, criam “zonas de morte” aceitáveis e produzem práticas e relações sociais desiguais, cujos efeitos são notórios.
Finalizando estas breves considerações sobre o assunto, que merece ser mais aprofundado, vale lembrar que o sentido da existência de um Estado organizado é deixar claro os limites entre os direitos e a violência e a morte. Ou será que W. Shakespeare tinha – e ainda tem – razão ao escrever, via voz da personagem Rei Lear, que “o mundo é liderado por loucos seguidos por cegos”?
A busca do bem estar comum, sentido da Política, deve guiar as reflexões de todos nós, afastando e criticando visões de adoradores da morte, de loucos por guerra, de influenciadores do ódio, de negacionistas, preconceituosos e supremacistas. Somos todos portadores dos mesmos direitos. É isso ou a barbárie!
Edson Gabriel Garcia, 2022, as águas de março ainda esperadas poderão banhar de luta esperançosa nossos dias vindouros. Dias melhores virão. |
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Brevíssimo e sempre útil manual para eleitores (pre)ocupados com eleições
Sem ser definitivo, posto que em matéria de Política nada é para sempre, arrisco pensar precocemente sobre um manual para eleitores e sugerir duas ou três coisinhas, que até podem passar de meia dúzia de dez, sobre este assunto tão próximo de nosso cotidiano.
1.Regra essencial: interesse-se por Política, sempre e não só em ano de eleição. A Política está cotidianamente presente em nossa vida, querendo ou não, gostando ou não. As regras de votação mudam quase em todas as eleições, uma razão suficiente para você se antenar no assunto. Horário gratuito, regras de publicidade, dinheiro do fundo eleitoral, urnas eletrônicas... tudo isso se deu muitas vezes nos anos anteriores e, se você pegar o bonde andando, correrá o risco de entender as coisas apenas parcialmente.
2.Regra básica: atente-se ao histórico dos partidos políticos e dos candidatos. A história nunca é apagada. A trajetória política dos partidos e dos candidatos ajudam na escolha melhorada do voto. Não importa tanto reclamar que temos partidos políticos em demasia. Pela história dos partidos, dos nanicos e de aluguel aos mais sérios, você terá um caminho recheado de informações necessárias ao voto. Por exemplo: desde a ditadura, que criou a figura bizarra do bipartidarismo, pra onde foram se instalar os políticos do ARENA, partido que sustentou o governo militar e suas atrocidades? PDS, PFL, PP, Democratas...
3.Regra complementar à regra básica: consulte os programas de governo dos partidos e de seus candidatos. Os programas de governo devem ser claros, objetivos, com propostas bem definidas. Programas de governo apontam a direção para onde o candidato, se eleito, quer conduzir o país. Se um candidato expressa seu programa em privatizações, você pode deduzir que sua proposta é acabar com o patrimônio público, construído ao longo dos anos, vendido na bacia das almas. Tampouco se deixe enganar por slogans e discursos generalistas. É comum, por exemplo, que todos apontem investimentos em educação (quase um clichê), mas isto deve ser cruzado com outras ações do partido em governos anteriores ou em votações de legislação pertinente.
4.Regra básica número dois: cuidado com candidato outsider, marginal, oportunista ou arrivista, que promete fazer tudo diferente "do que aí está", pregando um novo jeito de fazer Política. Estes, com certeza, sãos os primeiros a voltarem atrás em suas declaradas intenções políticas. Temos exemplos escancarados e recentes na história brasileira: um presidente que renunciou, um que foi deposto por impeachment e outro despreparado sem nenhum plano de governo.
5.Regra da sociedade líquida: atente-se às fake news. Os tempos têm um manto opaco cobrindo nossa lucidez, essas tais mentiras virtuais que se esparramam em velocidade espantosa. Há muito ficou para trás o senso comum estabelecido no provérbio “a mentira tem perna curta”. Não tem mais: sua perna, ou melhor, os seus tentáculos avançam aceleradamente, mais e mais do que as verdades. Negacionistas, membros dos gabinetes do ódio, homofóbicos, fascistas e necropolíticos, muitas vezes financiados por empresários nacionais ou estrangeiros, contaminam as redes sociais com seus textos, mensagens e imagens mentirosas, preconceituosas e negacionistas. Não repasse mensagem da qual você não tenha efetivamente uma fonte credenciada, confiável e capaz de comprovar a mensagem.
6.Regra geral: discuta sempre política. Diferentemente do que prega um ditado popular (Futebol, religião e Política não se discutem!), a Política tem que ser pensada, comentada, ouvida, discutida e decidida. Em todos os espaços possíveis. Da Igreja à Escola, principalmente nesta. É na escola que estão os jovens e estes, mais do que todos, precisam saber sobre política, sobre os conceitos da política e sobre seu funcionamento. Os ignorantes e atrasados politicamente tentaram impor um projeto chamado Escola sem Partido, mas foram derrotados em todas as instâncias. Escola sem discussão viva da Política é uma escola fora do seu tempo.
7.Regrinha adjetivada: se você for adjetivar o seu voto, que o adjetivo escolhido seja “consciente”. Não troque nem venda seu voto. Ampare-se nas regras anteriores e decida-se. E lembre-se (apenas para sua informação): votos nulos e brancos, mesmo em forma de protesto, pouca serventia têm uma vez que o seu percentual é mínimo. O voto consciente é um dos pilares sólidos da democracia.
8.Regra de alerta: odeio Política. Descontamine-se deste sentimento. Mantendo o distanciamento odioso da Política, o que se faz é entregar a Política nas mãos dos maus políticos.
9.Regra de encanto: perfume-se com seu aroma preferido, vista uma roupa de prazer e vá às urnas.
10.Regra de conexão: nunca se desligue da Política. Ela não se desliga de você. Depois de votar, acompanhe o seu candidato e cobre dele, pelos canais de participação, coerência com seu programa de partido, com as políticas públicas necessárias, com a ética na Política.
Isto não é tudo. Votar é parte da ação cidadã de cada um de nós. A outra parte é a participação cotidiana na vida política de nosso país.
Edson Gabriel Garcia, 2022, fevereiro apontando para as águas de março fechando o verão, com promessas de lutas em nosso coração. |
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Políticas públicas e Programas de Governo
Política pública, como o próprio nome diz é uma ação política voltada para todos. De certa forma é uma redundância, pois toda ação política é pública, toda decisão política tomada e colocada em prática é dirigida a todos os membros de uma coletividade. Política pública é um conjunto de ações pensadas, organizadas e colocadas em prática pelos governos tendo em vista objetivos e metas definidos. Toda política pública é pensada para durar muito tempo, muitas vezes passando de um governo para outro, sem ser interrompida. Aí estão duas características de uma política pública: é decisão ampla e de longa duração, geralmente proposta e encaminhada por um determinado governo tendo em vista objetivos e metas a serem atingidos. Ou seja, nenhuma política pública séria, de um governo minimamente sério, é praticada ao acaso, de qualquer jeito, sem planejamento.
Uma política pública responde a alguma demanda social, uma necessidade nova, alguma dívida social que governos passados e a própria sociedade tenham deixado para trás, que impede que os cidadãos tenham seus direitos atendidos. Como é o caso da política das cotas raciais de acesso à universidade. Faz parte do modo de pensar de alguns partidos políticos (o que chamamos de “ideologia”) corrigir dívidas sociais que o país tem com determinados setores de sua população. Essas chamadas injustiças sociais, transformadas em dívidas sociais, são corrigidas através de políticas públicas compensatórias, de modo a se corrigir injustiças.
Uma política pública pode atender a todos os cidadãos, como, por exemplo, tornar o direito ao voto um direito extensivo a todos os cidadãos com idade igual ou superior a dezoito anos. Essa política pública é conhecida como universalização do voto (sufrágio universal) e vem estendendo o direito ao voto aos jovens, inclusive os menores entre dezesseis e dezoito anos, facultativamente, às mulheres, que antes não tinham o direito de votar, aos idosos e mais recentemente aos analfabetos. Uma política pública também pode se referir a grupos específicos (como idosos, menores, moradores de rua, negros, homoafetivos, etc.). Mesmo assim, agir de conformidade com o que propõe uma política pública diz respeito a todos os cidadãos de um país onde a política pública está sendo implantada. Você pode discordar, por exemplo, do casamento entre parceiros ou parceiras do mesmo sexo biológico, mas terá que respeitar essas decisões, tomadas por lei e que encaminham práticas diferentes de pensar.
Quanto mais longa e duradoura for uma política pública, mais comprometida ela será, e mais garantias uma sociedade terá de que essa política será implantada de vez. Ao longo dos anos de implantação de uma política pública, a força de imposição da lei vai sendo incorporada à prática de tal forma que passe a ser algo natural, como se fosse um acordo ou um pacto existente entre os cidadãos de um país.
Uma política pública, depois de sentida, pensada, decidida e planejada é colocada em prática com várias ações, entre as quais, citamos: exposição em rede nacional de telecomunicação, campanhas na mídia, debates, aprovação ou alteração de documentos legais (desde mudança da Constituição Federal até decretos e circulares internas), previsão de verba no orçamento, repasse de verba, construção de equipamentos. Uma das políticas públicas mais eficientes posta em prática em nosso país, apesar dos muitos problemas na área da saúde pública, é a política pública de prevenção e tratamento de pacientes com AIDS, levada pelo SUS (Sistema Único de Saúde). O SUS é outra política pública exitosa, em que pese aqui e ali atuação desastrosa de um ou outro governo federal. Do ponto de vista preventivo, a distribuição de preservativos e a divulgação de pequenos comerciais nas grandes redes de televisão têm conseguido resultados. Do ponto de vista médico, a distribuição de remédios de ponta no tratamento da doença vem prorrogando a vida, com melhoria da qualidade de vida, de muitas pessoas acometidas pela síndrome. O Plano Nacional de imunização faz parte da política pública do SUS, outro bom exemplo. Independente do governo que esteja no comando da nação, essa política, de apoio ao SUS, tem sido contínua e vem se mantendo ao longo dos anos. Graças também à sociedade civil, cujos membros de ongs, fundações, hospitais públicos etc batalham por sua manutenção.
Uma política pública é construída a partir de demanda da sociedade, da população, do povo. De suas necessidades, de seus direitos, do exercício da política no seu sentido mais amplo: busca do bem estar coletivo. Uma política pública não pode servir ao interesse único de um indivíduo, não importa a sua origem, a sua condição social e a sua importância no cenário nacional. Se isto acontece, algo está errado. Trata-se de uma picaretagem, lembrando a metáfora com o instrumento “picareta”, que cava buracos para uma só pessoa. Assim, uma política pública é o resultado da ação de muitas pessoas, em função de suas necessidades. Nascem, pois, de movimentos sociais coletivos. A expansão da escola pública gratuita, laica e de boa qualidade para todos os brasileiros é resultado de uma luta de muitos anos, de muitos movimentos sociais organizados e de alerta constante. Os movimentos sociais organizam a demanda e levam a luta adiante.
Uma política pública também pode surgir da formulação programática dos partidos políticos. Ao ser criado, um partido político sério é organizado em torno de suas ideias, do modo como pensa e sonha construir uma sociedade. Sua ideologia, o seu modo de pensar o mundo pode determinar suas principais “bandeiras”, que depois serão transformadas em lutas, em princípio do programa governamental, quando concorre à eleição, e, se assumir o comando de governos, transformam essas “bandeiras” em políticas públicas. Participação popular, por exemplo, sempre foi bandeira dos partidos progressistas. Ao assumirem o poder, transformaram essa bandeira em política pública, no “orçamento participativo”, ação de democratização de acesso ao dinheiro público e de tomada de decisão no gasto desse dinheiro.
Nesse sentido, por trás de uma política pública, haverá quase sempre:
a) um modo de pensar o mundo, a sociedade, a cidadania (o que chamamos de ideologia);
b) um grupo de cidadãos organizados em torno de uma ideia, de uma luta, de uma proposta, sempre em sintonia com as necessidades do povo (um movimento social);
c) uma história de lutas;
d) formulação concreta da ação;
e) previsão orçamentária;
f) execução da política pública.
Duas observações finais, sem concluir tudo o que há de se falar sobre o tema: nenhuma política pública avança sem o investimento de recursos, seja para divulgação, seja para compra de equipamentos ou de preparação para os agentes públicos que implantarão ou acompanharão a execução das ações de uma política pública. E conhecer os programas partidários, nas eleições, principalmente, mas antes delas também, é um bom caminho para se escolher em quem votar e a quem passar o bastão da representação política nos futuros governos. Está em nossas mãos conhecer para escolher entre políticas públicas armamentistas ou políticas de apoio total à educação pública, entre políticas que destroem o ambiente ou políticas de sustentabilidade ambiental, entre políticas públicas que privilegiam os mais ricos ou políticas públicas que apostam na divisão da riqueza humana.
Como sempre, a decisão dos rumos da sociedade em que vivemos passa também por nossa vontade política de participar.
Edson Gabriel Garcia, 2022, fevereiro andante, sem carnaval, o que nos anima é o que nos leva adiante. |
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O jogo político, o xadrez e a caixa de pandora
O jogo político, comparação frequentemente feita, pode ser comparado ao jogo de xadrez? Pode, embora o jogo político seja muito mais, muito mais mesmo, complexo do que o jogo lúdico. As milhares de peças postas em jogo (os atores), as variantes contextuais e suas infinitas possibilidades de “mexidas” no tabuleiro, além da possibilidade de sempre poder voltar para trás no tempo, fazem do jogo político algo extremamente dinâmico, cotidiano e com reflexos na vida de todos os cidadãos.
Por outro lado, comparar o jogo político ao mito grego da Caixa de Pandora (mito que narra a chegada da primeira mulher, enviada à Terra pelo deus Hefesto, a mando de Zeus, o todo poderoso, para se vingar da humanidade. Pandora trouxe consigo uma caixa. Ao abri-la, deixa sair muitos males e desgraças da humanidade, mas ao fechá-la rapidamente consegue preservar a esperança), não na razão de sua criação, mas nas consequências da abertura da caixa. Caberia uma comparação do jogo político com a abertura da Caixa de Pandora? Teriam sido libertados todos os males supostamente encontrados na Política na abertura da caixa? Seria o exercício da Política, em nosso país, nada mais do que a vivência de muitos dos males liberados pela Caixa de Pandora? Podemos também refletir sobre isto e apontar duas premissas: o jogo político é complexo e o jogo só fica completo com a participação de todos os atores.
Refletindo sobre a primeira premissa, temos que apontar, que há muitos interesses no jogo: dos políticos, dos partidos, dos três poderes, das igrejas, dos sindicatos, dos trabalhadores, das associações, das mídias, das corporações, ongs e dos cidadãos todos. E quando há muitos interesses em jogo, a disputa é intensa e favorece quase sempre os que têm maior pode mando e decisão, nesse caso representado prioritariamente pelos políticos detentores de cargos nos poderes (entendemos que o Poder Judiciário também joga o jogo político ao tomar decisões). Quando a participação nas decisões que afetam a todos é restrita, evidentemente a decisão favorece o lado mais forte na disputa. Você já se perguntou por que os bancos nunca perdem e que seus maiores lucros acontecem justamente em épocas de crise? Você já se perguntou por que os programas de refinanciamento de dívidas com os entes federativos são sempre oferecidos às grandes empresas, que quase nunca pagam impostos, à espera do perdão da dívida e dos juros? Você já se perguntou por que o agronegócio é altamente lucrativo e por que os trabalhadores desse mega empreendimento (que, entre outras coisas devastam o ambiente, usam agrotóxicos proibidos nos países de origem e são aquinhoados por taxas baixíssimas de juro nos empréstimos de dinheiro) ficam sempre com a parte mais cruel que é a legislação trabalhista? Você já se perguntou a quem interessa o desmonte do serviço público e a privatização do patrimônio nacional, muitas vezes a preço de “banana”? Você já se perguntou por que você paga tantos impostos e as grandes empresas, nacionais ou estrangeiras, vivem recebendo concessões e abrandamento de impostos? Você já se perguntou a quem interessa todo o favorecimento legal para o crescimento das indústrias de armas? Pode ser que a resposta a resposta para estas e outras centenas (sem exagero) de perguntas levem ao desencanto com a Política, como se o jogo político fosse a própria Caixa de Pandora. Muitos cidadãos, sem o entendimento da necessidade de compreensão melhor desse jogo, se afastam atrás da ignorância política ao se declararem “apolíticos”, como se isso fosse possível. Essa apatia, aqui entendida como falta de interesse pelo assunto, Do jogo político, entre tantos outros, fazem parte a troca de favores; a manutenção dos poderes (a federação de partidos, aprovada em 2021, é o tipo de mudança que não muda a essência, mas pensa primeiro em manutenção de privilégios); a criação de leis que beneficiam os mais próximos do poder; superação da ideologia de olho nos privilégios e as conversas para a governabilidade; os discursos políticos; o alinhamento das grandes empresas de mídia (que certamente não são isentas); o discurso político da igreja, alguns falsamente religiosos, subliminar ou escancarado, alinhando-se a esta ou aquela tendência política; os gabinetes do ódio em seu exercício cotidiano de espalhar negacionismos e preconceitos, entre outras mentiras; as grandes federações, entre elas a federação dos bancos; os sindicatos e respectivas confederações com capacidade de mobilizar políticos e trabalhadores na defesa deste ou daquele interesse; o discurso intelectual e científico das universidades e pesquisadores; a ação dos agentes culturais; a conversa cotidiana nas escolas entre profissionais da educação e estudantes (apesar do cerco que se faz à escola para que esta fique à margem da conversa política)...
A segunda premissa não é tão complexa, mas é, certamente, muito difícil: o jogo político só fica completo com a participação de todos. Isto é possível? De certa forma, isto já acontece, ainda que de forma pouco substantiva e menos intensa. As decisões políticas afetam a todos nós e cada um reage de um jeito, criticando, comentando, perguntando, dando opinião, cobrando o político em quem votou, etc. As redes sociais, quando sérias, são um exemplo dessa participação. O que defendemos é que a participação ocorra em um grau mais próximo, mais decisivo, mais objetivo: nas escolas, organizando grupos de estudos políticos e debates; nos sindicatos, lutando por direitos para os trabalhadores; nas redes sociais, expondo seriamente e com fundamento as opiniões; nos partidos políticos, militando por seriedade e respeito ao dinheiro público; nas campanhas políticas eleitorais, defendendo o voto consciente e a pesquisa de currículo dos candidatos; em debates; em associações; em abaixo-assinados; em organização de grupos operativos de luta por objetivos locais, entre outros. E, sobretudo, paralelamente, constituindo-se como leitor, no sentido freiriano, leitor do mundo e da palavra, superando o senso comum e construindo um nível de repertório político que permita entender, discutir, opinar e participar.
Como escreveram futuristicamente os baianos Gil e Caetano, na deliciosa Divino Maravilhoso, “é preciso estar atento e forte/não temos tempo de temer a morte”.
Nesse jogo, em que se misturam regras, em que o xeque mate só derruba o mais poderoso com participação popular intensa e em que a esperança tem que sair da caixa de pandora e se vestir de lances bem jogados, é preciso estar atento e forte e participante!
Edson Gabriel Garcia, 2022, fevereiro, esperançamentos faremos surgir de novas caixas de pandora. |
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Freios e Contrapesos: os limites dos Três Poderes da República
A noção de freios e contrapesos, na formulação de regimes políticos do poder dividido em três (Executivo, Legislativo e Judiciário) vem de longe na história da construção da democracia. Foi o filósofo francês Montesquieu, que viveu a plenitude de sua vida e obra na primeira metade do século XVIII, em seu seminal livro O Espírito das Leis, que formulou a teoria dos três poderes, independentes e harmônicos. Em sua análise dos sistemas de governo, à época, identificava três formas: o despotismo, a monarquia e a república. Sua proposta, presente até os dias de hoje, tinha o claro princípio de combater as formas autoritárias de governo (despotismo e monarquia) e pleitear, como a melhor forma, a república, em que a liberdade era fundamental e tirava das mãos de uma única pessoa ou de um grupo pequeno a concentração do poder político em uma nação. Na sequência, sob a influência dessa teoria, em 1789, a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, em seu artigo 16, consolidava o mando tripartido. Baseia-se, certamente, na colocação de limites (freios) e na proposição de equilíbrio (contrapesos) para a ação política dos três poderes. Há de se acrescentar a esses dois atenuantes um terceiro, que embora não esteja explícito, talvez seja o mais apropriado: a necessidade de diálogo entre os poderes, com base no respeito às atribuições constitucionais e na responsabilidade que o poder de decisão impõe.
A separação das funções estatais (o exercício do poder em nome do Estado), nos regimes de direito democrático, dá a cada um dos poderes estabelecidos, eleitos ou escolhidos conforme determina a Constituição Federal, autonomia para o exercício do poder e impõe harmonia entre si, evitando-se assim que ocorra abuso de cada um deles. Em nosso país, cuja história é tristemente marcada por abusos de poder, seja na época do colonialismo e mesmo depois da independência (na monarquia, o poder concentrado nas mãos do imperador e na república por sucessivos golpes de estado, do getulismo à ditadura militar, passando pelo golpe parlamentar de 2017), tivemos na Constituição Federal de 1988 uma grande conquista: o princípio da separação dos poderes, uma cláusula pétrea, dispositivo constitucional que não pode ser alterado nem mesmo por uma PEC -projeto de emenda constitucional. As cláusulas pétreas estão descritas no Artigo 60 da Constituição Federal, referendando o que já está estabelecido no “Artigo 2:- São poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Talvez valesse a troca dos adjetivos “independentes e harmônicos” por “autônomos, mas interdependentes e obrigados ao diálogo e respeito mútuo”, mas isto é conversa para outra ocasião. De qualquer forma, estão estabelecidas as funções básicas de cada poder: ao Poder Executivo cabe a função típica de governar o povo e administrar interesses públicos, conforme determinam as regras constitucionais e demais leis; ao Poder Legislativo cabe a função típica de propor e aprovar leis, observar o seu cumprimento e fiscalizar as ações do Executivo; e, ao Poder Judiciário, a função típica de garantir direitos coletivos, individuais e sociais, mediar e solucionar conflitos entre cidadãos, grupos, organizações civis e instâncias políticas do Estado.
Evidentemente estas funções aqui sumariamente descritas são pormenorizadas por outros tantos documentos legais, nem sempre facilmente identificado pelos cidadãos. E também os freios e contrapesos nem sempre são claramente identificados ou percebidos, mas têm sido, nestes quase quarenta anos de vigência da atual Constituição Federal, uma forma de assegurar o estado democrático, em que pesem os traços autoritários do Poder Executivo estabelecidos legalmente (conversas de bastidores dão conta de que foi necessário ceder para que se pudesse aprovar alguns avanços das discussões da Assembleia Nacional Constituinte que aprovou a atual carta magna). Por outro lado, parte do desencanto de muita gente com a Política nacional se deve à pouca valorização que o próprio Poder Legislativo dá a si próprio, abrindo mão de sua função típica de fiscalizar ações do Poder Executivo para se constituir em mero cartório carimbador de todas as ações deste poder, em troca de emendas, cargos e outras regalias, enfraquecendo o uso dos freios e contrapesos. Nestes tempos atuais, em que a necropolítica, o negacionismo, o deboche aos direitos sociais e das minorias e o namoro escancarado com o autoritarismo dançam seus passos macabros diante dos nossos narizes, a função típica do Poder Judiciário, de resguardar o cumprimento de nossas leis fundamentais, entre as quais a Constituição Federal, tem sido fundamental, principalmente pelo Supremo Tribunal Federal, corte suprema brasileira, que tem se posicionado de modo firme contra esses abusos, mostrando-se um bom exemplo do que são os freios e contrapesos. O impeachment é outro exemplo de freio, ainda que o último deles (2016) tenha a cara lavada de golpe parlamentar político.
De qualquer forma, a ideia dos freios e contrapesos, mais do que mostrar os poderes e suas prerrogativas, muitas vezes aponta um isolamento vociferante e inútil e provocador, quando, na verdade, deveria ser o convite perene ao diálogo dos três poderes e o fortalecimento de suas decisões favoráveis à democracia. Uma vez que a animosidade entre os poderes, acima de evidenciar “quem pode mais”, cumpre função de desestabilizar nosso estado democrático de direito.
Conhecer e respeitar os freios e contrapesos, para poder entender e cobrar os políticos, escolher bem em quem votar e estar atento/a aos lances do jogo político são requisitos do cidadão ativo.
Edson Gabriel Garcia, 2022, fevereiro, apostando no conhecimento da autorregulação do poder. Conhecer para intervir. |
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Principais características de cada sistema político
A república, forma de governo democrático, tem o seu mando político organizado em um de três formatos básicos: o presidencialismo, o parlamentarismo e o semipresidencialismo. É possível apontar algumas características de cada um deles, em que pese haver diferenças no sistema adotado por diferentes repúblicas. O presidencialismo daqui pode ser diferente do presidencialismo de lá, cada qual, com seu formato definido constitucionalmente. A monarquia parlamentar é diferente de outros parlamentarismos.
PRESIDENCIALISMO
-o presidente é eleito por voto popular (e não pelos deputados)
-o presidente acumula as funções de Chefe de Estado (diplomacia) e Chefe de Governo (administração do governo)
-o tamanho do mandato é definido em cada constituição
-o presidente não pode destituir os eleitos deputados e senadores
-da mesma forma, os parlamentares não podem demitir o presidente (salvo se houver processo de impeachment)
-a equipe de ministros é escolhida pelo próprio presidente (o número de ministérios é definido pelo governo)
-o presidente e seus ministros implementam as políticas públicas do governo
-o presidente pode interferir na produção de legislação, vetando parcial ou totalmente documentos legais aprovados nas casas legislativas
-em algumas formas de presidencialismo, o presidente tem poderes legislativos também (lei orçamentária, por exemplo, é prerrogativa do presidente).
Presidencialismo está muito presente no continente americano. Exemplos mais fortes são o brasileiro e o norte-americano.
PARLAMENTARISMO
-a principal característica do parlamentarismo é a divisão de chefias e atribuição a pessoas diferentes: Chefia de Estado (mais ligado à diplomacia) e Chefia de Governo (com as atribuições relativas à implementação das leis aprovadas e das políticas públicas)
-o Chefe de Governo, cuja atuação interfere mais de perto na vida dos cidadãos, é escolhido de forma indireta pelos parlamentares eleitos (que podem também demitir o escolhido conforme maior ou menor aprovação da população e maior ou menor confiança do Parlamento que o elegeu). É fundamental que o governo escolhido seja nomeado, apoiado e, se for o caso, dispensado pelo voto parlamentar
-não há tempo exato para o exercício da Chefia de Governo, pois o Chefe de Governo pode ser demitido a qualquer tempo
-O Parlamento (Assembleia) também pode ser dissolvido se não conseguir um consenso na escolha do chefe de governo (cada Parlamentarismo define essas condições). Novas eleições são realizadas
-há mais integração entre o Poder Executivo e o Legislativo
-vale realçar que as relações do Chefe de Governo com o Parlamento são diferentes conforme a composição do Parlamento. Se um partido faz maioria é capaz de sozinho escolher o Chefe de Governo. As relações serão diferentes quando não há um partido predominante e qualquer escolha passa por diálogos entre todos. Um partido com maioria no Parlamento escolhe um Chefe de Governo com poder de indicar ministros e demiti-los, se necessário
-o Chefe de Governo escolhido em um Parlamentarismo com bipartidarismo forte é também mais forte do que o Chefe de Governo escolhido em Parlamentarismo multipartidário
-ressalte-se que a característica democrática do Parlamentarismo está exatamente no impedimento de concentração do poder nas mãos de um único político, como é o caso do Presidencialismo.
Com vários formatos, o Parlamentarismo está muito representado nos governos europeus.
SEMIPRESIDENCIALISMO
- Chefe de Estado pode ser eleito diretamente ou indiretamente
-o mandato tem tempo determinado
-Chefe de Estado (presidente) e Chefe de Governo (primeiro ministro) dividem atribuições
-o Chefe de Governo (primeiro ministro) é nomeado pelo presidente
-o Chefe de Estado (presidente) tem o poder de dissolver a Assembleia, após consultar o Chefe de Governo (primeiro ministro) e os presidentes das Câmaras
-O Chefe de Estado (presidente) pode evitar uma decisão do Governo, submetendo-a a veto ou referendo popular.
A França é exemplo de semipresidencialismo.
Duas observações finais.
Chefe de Estado e Chefe de Governo têm funções diferentes nos diversos países do mundo, mesmo quando dividem poderes. Ao Chefe de Estado cabem mais as funções diplomáticas e cerimoniais, e ao Chefe de Governo cabem mais a aplicação das leis e execução das políticas públicas.
De modo geral, os três sistemas têm prós e contras. Esses pontos fracos ou fortes estão relacionados à estabilidade de cada sistema, à sua capacidade de administrar conflitos entre os poderes e à eficiência de cada um. Adicione-se a isso a compreensão que nenhum sistema funciona equilibradamente e de forma eficiente sem a vigilância popular. A participação do cidadão e o jogo político ético são a base da estabilidade de qualquer sistema.
Edson Gabriel Garcia, 2022, janeiro findo e com ele os recessos parlamentares. As peças do jogo político não param de se mexer. |
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Sistemas de governo: a organização do poder político
As modernas, e complexas, sociedades organizam o seu poder político, a forma de governar o país, de modos diferentes. Em razão da história política de cada Estado (Estado, aqui entendido como o conjunto do território geográfico, as dimensões do poder, as instituições, os valores e o comportamento do povo), a organização definida na respectiva Constituição é diferente, de um país para o outro, em muitos aspectos: forma do Estado (democrático ou autocrático), duração dos mandatos, código eleitoral, regulamentação dos partidos, formato de escolha dos políticos com cargos, cálculo da divisão de cadeiras no Legislativo, modos de se lidar com a formulação de legislação, freios e contrapesos (controle dos poderes entre si).
Esses poderes de mando do Estado estão, de modo geral, organizados em um sistema de governo que pode estar a) nas mãos de uma pessoa (monarquia ou tirania/ditadura); b) nas mãos de um grupo de pessoas (aristocracia ou oligarquia) ou c) nas mãos da maioria do povo, através de democracias representativa e participativa (repúblicas). Aristóteles, filósofo da época de ouro da Filosofia Grega, fundador da Escola Peripatética, que viveu entre 384 e 322 a.c., foi um dos primeiros a refletir sobre a organização do poder de mando, propondo três formas de governo: a) democracia – governo de todos os cidadãos portadores de direitos à época; b) monarquia – governo de um só homem; e c) oligarquia –governo de alguns poucos homens. “Democracia”, o que nos interessa discutir, é o regime político que tenta dar voz, voto e participação nas decisões ao maior número possível de pessoas. Democracia é o regime de governo do povo, pelo povo, para o povo. O poder sendo exercido pela “soberania” do povo. Um regime democrático pode ser caracterizado, entre outras facetas, por: igualdade entre as pessoas, liberdade de expressão, ausência de censura, liberdade de imprensa, alternância de ocupação dos postos de governo, pluripartidarismo, defesa dos direitos humanos, construção de códigos de cidadania, participação, eleições e voto direto.
Nos estados democráticos, a forma de organizar o mando está dividida em três poderes distintos, independentes e harmônicos: Executivo, Legislativo e Judiciário. Desses, o Executivo é eleito por voto majoritário e o Legislativo pelo voto proporcional (em que as cadeiras são divididas entre os partidos de modo proporcional, conforme os votos recebidos pela legenda e pelos candidatados). No Legislativo, apenas o Senador é eleito com voto majoritário. Os três poderes, e suas funções típicas (governar, legislar e fiscalizar e mediar conflitos) são controlados entre si pelo mecanismo chamado freios e contrapesos. A base teórica que justifica e sustenta a opção pela divisão dos poderes em três é evitar a concentração dos poderes nas mãos de uma só pessoa (autocracia/tirania/ditadura) ou nas mãos de poucos (aristocracia e oligarquia). A busca pela consolidação desse formato de sistema de governo vem ocorrendo há alguns séculos, com alterações aqui e ali, e cada país/nação buscando o sistema que mais se ajusta à sua história.
A república, forma de governo democrático, com divisão dos poderes de mando estabelecidos em Constituição própria, tem o seu mando político organizado em um de três formatos básicos, ainda que tenhamos que afirmar que não há Constituições nem tampouco sistemas iguais: o presidencialismo, o parlamentarismo e o semipresidencialismo. Basicamente, o PRESIDENCIALISMO se constitui na concentração das atividades de Chefe de Estado (funções de diplomacia e representação do Estado) e Chefe de Governo (funções de administração do governo) na mesma pessoa, eleita pelo voto direto e secreto. Este é o caso da república brasileira em que o presidente é eleito pelo voto secreto e direto, assumindo com poderes de representar politicamente o Estado brasileiro e administrar as políticas públicas do Estado. Não por acaso, o presidencialismo brasileiro é considerado um dos de maior concentração de poder no Executivo (que muitas vezes avança nas funções típicas do Legislativo, por exemplo). O Estado brasileiro é um estado federado em que a União e os entes federados (Estados, Municípios e Distrito Federal) têm relações de interdependência e relativa autonomia. O PARLAMENTARISMO, por sua vez, é diferente do Presidencialismo, na importância que dá ao Parlamento, pois é dessa casa legislativa que sai a indicação da chefia de governo, o primeiro ministro (também chamado premier, chanceler, rainha). No Parlamentarismo, o chefe de governo é escolhido (e destituído a qualquer tempo) por acordo entre os parlamentares eleitos. No Presidencialismo o Chefe de Governo e do Estado, o Presidente, é eleito em eleição diretamente pelo povo; no Parlamentarismo, o Chefe do Governo é escolhido pelos parlamentares, legitimados por representação indireta. O Chefe de Estado no Parlamentarismo pode ser também escolhido pelo Parlamento ou eleito pelo voto direto. O SEMIPRESIDENCIALISMO, o menos comum dos três, é uma mistura de ambos, com o chefe de estado e chefe de governo dividindo funções entre si. Importa realçar que cada país tem sua forma peculiar de organização do mando, ligada à sua história política e ao amadurecimento da consciência política do seu povo, algo que passa obrigatoriamente pela educação.
Aristóteles, em sua obra A Política, afirma que um governo vai bem quando os três poderes estão acomodados e vai mal quando as diferenças e atritos entre os poderes estão presentes de modo intenso. Essa anotação aristotélica, apontada há séculos, pede nossa reflexão sobre o que embrutece a força da democracia, nos chama à defesa das instituições democráticas e ao fortalecimento da consciência política de todos nós. Neste fortalecimento da consciência política cabem, entre outras causas, a presença da memória política (não esquecer das atrocidades da última ditadura brasileira) e a desvinculação, na governança, entre religião e política (exemplos históricos recentes evidenciam como são nefastos, na defesa de seus ideais, os governos pautados por posturas morais discutíveis de crenças religiosas fanáticas).
Uma observação final: não podemos deixar de pensar que talvez não haja um sistema, um regime ou uma forma de governo pronto, acabado, tipo receita testada e pronta para ser usada, sem erros, feito a pizza preferida encomendada pelo i-food. O que a história da humanidade mostra é que nos regimes autoritários a força e a violência estão a serviço da ignorância, do atraso, do desrespeito, dos favorecimentos aos amigos, da tortura e fim da liberdade de expressão. A história mostra também que os regimes democráticos avançam no respeito aos direitos, na direção da cidadania, do diálogo, do progresso social e da liberdade. Deixa claro que nada se constrói sem esforço, sem responsabilidade e sem participação. E deixa para todos nós outra lição, parecida com aquele comercial “não basta ser pai, tem que participar”, que o Estado democrático precisa ser constantemente vigiado e cobrado. E este Estado democrático não cai do céu. É construção cotidiana de todos. Não há sistemas políticos ou regimes políticos para sempre estáveis. O que há, sempre houve e sempre haverá, é o jogo político e os diversos interesses postos na mesa. Cada um de nós, como jogador interessado, tem que se gabaritar para participar desse jogo. E uma das formas de fazer isso é através do pensamento e da aprendizagem.
Edson Gabriel Garcia, 2022, janeiro calorento a caminho de novas lutas políticas. |
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Eleições: voto facultativo ou obrigatório
O voto, no Brasil, tornou-se obrigatório desde 1932, com a promulgação do Código Eleitoral, cuja tradição foi mantida pela atual Constituição Federal. Trata-se, sem dúvida, de uma das matérias mais polêmicas da vida política brasileira, seja no Congresso Nacional, seja na opinião pública. O que está jogo nessa polêmica é a soberania: quem é soberano para determinar a obrigatoriedade ou não voto, o Estado ou o povo?
Sem ainda entrar no mérito da polêmica, seguem alguns pontos levantados nas discussões vigentes favoráveis ao voto obrigatório e outras favoráveis ao voto facultativo.
A favor do voto obrigatório:
-o voto é tanto um direito como um dever cívico;
-a maioria do povo participa do processo eleitoral (as possibilidades de justificativas são fáceis e a multa é quase irrisória);
-o voto chama o povo à discussão e participação da política mais intensamente e corrobora para sua educação política (a educação política no país quase não existe e em muitos espaços educativos isso é até proibido – veja-se por exemplo, a aberração chamada Escola sem Partido);
–o Estado brasileiro, com traços autoritários previstos na Constituição Federal, vira-e-mexe flerta com o autoritarismo e não proporciona nem incentiva plenamente a democracia, condição que não permite a comparação com outras democracias mais avançadas que optaram pelo voto facultativo;
-voto obrigatório é tradição brasileira e latino-americana, como se fosse uma regra constitucional não escrita;
-o voto obrigatório não eleva, mais do que o facultativo, o custo do processo eleitoral;
-por ser secreto, o voto obrigatório não constrange nenhum eleitor;
-a obrigação de votar e exercer o direito de escolha, é responsabilidade coletiva, visto que é decisão que afeta a todos. Possíveis grandes abstenções deixa a decisão nas mãos de minorias e isso fere um princípio basal da democracia, comprometendo ainda mais a fragilidade da democracia.
A favor do voto facultativo:
-o voto é um direito e não um dever (cabe ao cidadão a liberdade de escolher se quer votar ou não, pois este é um direito subjetivo);
-o voto facultativo é adotado por países mais desenvolvidos e de tradição democrática (países d Europa Ocidental, da Comunidade Britânica e EUA, entre outros são exemplos);
-o voto facultativo eleva a qualidade política do processo pois fica restrita a eleitores mais conscientes e motivados;
-participação da maioria, em razão da obrigatoriedade é mais um mito do que verdade (este argumento é sustentado pelos número de ausência somado ao de nulos e brancos – que alcança quase a metade do eleitorado. O alto número de votos brancos e nulos mostram um posicionamento contra o voto obrigatório. Além disso, o voto obrigatório pode constranger eleitores com limitações intelectuais);
-pensar que o voto obrigatório torna os cidadãos mais conscientes politicamente é mera ilusão (ilusão pensar que o fto de votar, obrigatoriamente, transforma uma pessoa e a faz acreditar que a partir do voto pode mudar a história);
-o momento político do país não é propício ao voto facultativo (argumentam que o brasileiro tem formação política frágil e por isso não teria condições de votar e votar bem. Pensam que o Estado deveria preparar melhor o cidadão para o exercício pleno da democracia e do voto facultativo.
O tema é, sem dúvida, polêmico, ainda que nestes últimos tempos não apareça tanto, uma vez que estamos mais preocupados com a corrosão da democracia.
Finalizando, cotejando os argumentos, podemos pensar que:
a) o voto facultativo ou a ausência de votos interessa sempre aos regimes autoritários e à elite dominante. Com a força do poder estatal e do poder econômico também dominarão o resultado das urnas, com a volta triunfal do voto de cabresto. A filósofa Marilena Chauí escreveu, certa vez, que o diálogo do nadador é com a água. Nada mais exato. Parafraseando-a: o diálogo do eleitor é (também) com as urnas, tendo a certeza que é votando que se aprende o caminho das pedras do exercício da Política;
b) o voto obrigatório ou não é o menor dos problemas: a questão maior é manter os pilares democráticos de pé, entre os quais, a liberdade de expressão, o direito reconhecido de participação, criação de canais de participação direta nas decisões políticas, incentivo à educação política, principalmente nas escolas etc.;
c) o sistema de justificativas de ausência no dia da votação e a multa pela não justificativa são tão leves que praticamente favorecem a ausência de quem não quer votar; e
d) votos brancos ou nulos não representam argumento favorável ao voto facultativo, mas tão somente um indicador de que alguma coisa desagrada os eleitores.
Fica claro, mais uma vez, que estas questões polêmicas passam pela qualificação da vida política brasileira. E essa, pela educação política.
Edson Gabriel Garcia, 2022, janeiro de novos ares esperançado na luta das pessoas de bem. |
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Eleições: o direito de votar como expressão da democracia
Eleições e seu complemento imediato, o voto, sempre nos remetem a discussões tautológicas: quem escolher, baixa confiança nos políticos e partidos, voto nulo, etc. Discussões absolutamente necessárias e pertinentes, às quais podemos acrescentar outras não menos importantes: há outros modos de se exercer a democracia representativa? Por que votar é importante? Qual o nível de amadurecimento democrático de cada um de nós? Urnas eletrônicas são confiáveis? É correto financiar campanhas eleitorais com dinheiro público? O que fazer depois de votar? A lista é imensa.
A democracia representativa, embora atualmente venha se mostrando insuficiente para garantir a democracia, ainda é um instrumento poderoso de escolha de nossos representantes, através do voto direto. Poderosíssimo instrumento democrático, em algumas democracias, o mais valioso. Tão poderoso que alguns presidentes ou primeiros-ministros, mesmo eleitos democraticamente, acionam uma agenda de cerceamento do voto impondo restrições ao cadastramento de eleitores, sob a égide de uma suposta “integridade” do eleitor, diminuindo o número de eleitores -geralmente os eleitores de minorias potencialmente votantes em programas sociais – e obrigando-os a uma identificação burocrática que os impede de irem às urnas. De modo indireto dificultam o acesso às urnas por temer esse voto ou por posição ideológica, por exemplo, por questões de preconceito racial ou por serem contra a imigração, entre outras. Cercear ou desencorajar o voto é postura antidemocrática.
Atualmente, as democracias apostam no sufrágio universal, o direito do voto secreto concedido a todo cidadão maior de idade. Nem sempre foi assim. No Brasil, por exemplo, há um histórico de exclusão do direito ao voto que vem sendo modificado ao longo dos últimos cem anos, não sem muita luta, desde o voto censitário, cujo direito de votar e ser votado estava vinculado à renda dos cidadãos, até a Constituição Federal de 1988, que estendeu os votos também para os analfabetos e tornou-o facultativo aos jovens de 16 a 18 anos, chegando ao sufrágio universal.
O voto secreto é o símbolo da liberdade democrática na escolha de nossos representantes institucionais no Poder Executivo e no Legislativo. Houve épocas em que o voto era aberto e o eleitor saía com um comprovante de identificação do seu voto, certamente para provar ao seu “tutor eleitoral” ter votado conforme as ordens recebidas. Voto de cabresto é o nome disso, fora de nossa aceitação, mas ainda pipocando aqui e ali, com formas diferentes de controle. Bem sabemos que há votos de toda a natureza, dos mais descompromissados (voto obrigatório; voto decidido em boca de urna – proibida, mas ainda presente na maioria das secções de votação -, voto burocrático – vota-se para não ser punido pela justiça eleitoral) aos mais conscientes (voto ideológico e voto consciente da responsabilidade da escolha), passando pelos discutíveis votos nulo e voto em branco. A facilidade para se justificar a ausência de voto no dia da votação e a insignificância da multa por não justificar a ausência talvez contribuam para a qualificação do voto como pouco importante. Registre-se também o chamado “voto útil”, de natureza pragmática: um voto dado a um candidato majoritário, diferente da primeira opção pessoal, com o objetivo de unir forças e derrotar candidatos adversários, visto o candidato de primeira opção ter poucas ou nenhuma chance de vitória.
Eleições são precedidas por assembleias dos partidos políticos para a indicação de seus candidatos (chapa eleitoral). Quando há mais de um interessado em representar o partido nas disputas majoritárias (presidente, governador e prefeito), os partidos democráticos realizam o que se chama de “prévias”, em que os filiados escolhem o representante. Há quem argumente que, embora democráticas, as prévias racham o partido nessa escolha. Quem ganha leva a indicação, mas não necessariamente o apoio dos derrotados.
O dia da votação é precedido, depois do registro dos candidatos oficiais no Tribunal Regional Eleitoral, pelas campanhas eleitorais. As campanhas são financiadas pelo Fundo Especial de Financiamento de Campanhas, criado em 2017, ante a proibição de financiamento empresarial, esses valores recebidos, conforme regras estabelecidas pelo Superior Tribunal Regional, são empenhadas em atividades de campanha. As campanhas, cada vez mais, estão se restringindo às redes sociais e a espaços gratuitos, cada vez menores, nas redes de canais de televisão aberta e nas emissoras de rádio. Partidos mais estruturados e maiores compram outros espaços na mídia. Tempos atrás, as campanhas eram feitas também com faixas estendidas em inúmeros locais, cavaletes, showmícios e ainda, até hoje, pelos indefectíveis “santinhos”. Dentro dos limites estabelecidos, a imaginação é posta em ação, com total liberdade criativa.
Votar é, antes de tudo, uma liberdade democrática de escolha (que não isenta ninguém da responsabilidade de escolher bem e acompanhar a atuação do representante eleito) que só os regimes democráticos proporcionam Regimes autocráticos odeiam a liberdade de escolha pelo voto (entre outras liberdades odiadas pelos autocratas).
Tão importante que no voto, para além da festa cívica, convivem o direito e o dever. Como direito, deve ser livre; como dever, tem que ser obrigatório.
Edson Gabriel Garcia, 2022, de um janeiro dos mais esperançosos pela chegada de tempos novos urgentes. |
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O fortalecimento da democracia
A pergunta que tem sido feita em várias partes do mundo é sobre o avanço de regimes de governo autocráticos (governos ditatoriais, despóticos, autoritários, com o poder centralizado em uma pessoa ou poucas) contra os regimes democráticos (governos baseados na liberdade, no diálogo, no respeito às instituições e com o poder dividido em mais de uma instância, com mais pessoas tomando decisões). Essa preocupação mundial se mostra pertinente considerando-se o expressivo aumento de governantes, mesmo os eleitos sob a democracia, em eleições democráticas e diretas que, chegando ao poder, o exercem de modo autoritário, contrário aos princípios democráticos: restringindo liberdades e direitos civis; atacando os adversários, desqualificando-os, punindo-os ou perseguindo-os; desrespeitando a Constituição ou tentando mudá-la para atender seus interesses ditatoriais; apoiando a violência ou ignorando-a, fazendo vistas grossas; censurando e limitando a liberdade de expressão da mídia, seja por ameaças ou por sufoco econômico. Servem-se para isso, de um punhado de seguidores sem consciência política, de fake news numerosamente espalhadas por redes sociais, de acordos políticos manobrados com partidos de índole política rasa, cujos representantes eleitos têm interesses particulares que superam os interesses da nação. De modo geral, o comportamento político contrário à democracia, mesmo antes de ser instalado no poder, é manifestado em pessoas demagogas, outsiders (fora da casinha, como se diz popularmente). Muitos veiculam um discurso antissistema, como se fossem “salvador da pátria”, o messias, o que, sozinho, produzirá as mudanças que muitos aspiram. Demagogos e superficiais, vendem um discurso fácil de futuro diferente, mas quando chegam ao poder fazem tudo para aniquilar as liberdades civis, o diálogo, as representações políticas e as instâncias de participação. Certamente, nós brasileiros, conhecemos políticos dessa estirpe, em nossa história recente. Mais de um, inclusive. E no mundo, esparramados pelos cinco continentes, há sólidos exemplos dessas figuras bizarras que afrontam liberdades, impõem vontades únicas, concentram em si próprios os poderes de legislar, executar e julgar, distribuem o medo como quem solta pipa ao sabor de um bom vento.
O que nos leva a defender a democracia, os regimes democráticos?
A democracia combina com a natureza humana: livre, criativa, falante, produtora de cultura, plena de fantasias imaginativas, rica em sabedoria. Esses são valores caros à natureza humana e à democracia. Mas nem por isso – ou talvez exatamente por isso – a postura democrática de valores e atitudes exige dois comportamentos dos democratas: apreço ao saber e sabor pela responsabilidade. Apreço ao saber, pois é o conhecimento que nos afasta da ignorância, do silêncio, do embrutecimento, da covardia, do negacionismo. Sabor pela responsabilidade, pois valores e atitudes democráticos são construídos – e não nos são dados por receita ou por carta ou por transferência cartorial. A defesa e a atitude democrática demandam trabalho, conhecimento e participação. E responsabilidade de cada um de nós. A cidadania democrática não é dádiva: é construção diária e coletiva.
Dito isto, penso que é mais interessante apostar no fortalecimento da democracia. Assinalamos, a seguir, algumas propostas:
-ficar alerta, denunciar e combater todo e qualquer movimento de enfraquecimento da democracia (pois nem sempre o golpe vem de uma única vez e de forma violenta: golpes contra a democracia podem acontecer aos poucos, e dentro da lei, contribuindo lenta e silenciosamente para a debilidade da democracia);
-identificar pessoas, políticos ou não, que pregam a ideologia do autoritarismo e negam as liberdades civis, sociais e políticas, para denunciá-los e combatê-los;
-acompanhar, na medida do possível, a vida partidária e as escolhas dos políticos partidários, principalmente dos que detém cargos na estrutura legislativa ou executiva (bom lembrar que não há democracia sem partidos políticos e quanto mais sérios forem os grandes partidos, mais forte será a democracia);
-acompanhar e cobrar os representes eleitos para nos representar nos Poderes Executivo e Legislativo (eles estão no exercício desses cargos para representar os interesses do povo e devem satisfação de sua conduta aos eleitores e cidadãos todos -sob pena de termos que eng | | | |