PÉ DE MEIA LITERÁRIO  
  Os textos seguintes fazem parte das publicações do blog da Associação dos Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil, Regional São Paulo, e versam sempre sobre questões da leitura e da literatura e seu contexto. Alguns textos já foram publicados e outros estão sendo publicados pela primeira vez. Use-os à vontade e não se esqueça de citar a autoria.  
     
 

A POLÍTICA PÚBLICA COMO MEDIADORA DA FORMAÇÃO DE LEITORES

O conceito de mediação vem sendo usado largamente nos últimos tempos para os assuntos ligados à formação de novos leitores. Trata-se, evidentemente, de conceito antigo, já utilizado em outras áreas do conhecimento nas ciências humanas. O ato da mediação, algo que existe desde os tempos primórdios da humanidade, sempre esteve presente em qualquer ação que envolva pessoas. Nesse sentido, é possível afirmar que toda a história da humanidade foi uma história “mediada”, pois a construção da civilização conhecida pressupôs pessoas em comunhão, em ação mediada por uns e outros. Mediar, nesse sentido, é estabelecer relações entre um e outro, uma ponte, uma senha de passagem.

A formação de leitores, algo com que os brasileiros temos nos preocupado mais proximamente nos últimos tempos, talvez porque a informação – adquirida pela leitura – seja uma das mercadorias mais valiosas, vem se utilizando desse conceito à exaustão. Mediar, nesse caso, seria a atuação de uma pessoa, em relação com outra, no estabelecimento de uma ponte, de um caminho de acesso para a formulação de nova significação. Como as árvores, que buscam crescer para cima, para o alto, os leitores também buscam crescer para cima e para o alto, de modo lento e gradual, com a parceria e proximidade de um mediador.

Do ponto de vista mais amplo, podemos falar que as instâncias mediadoras não se resumem a isso, pelo contrário, se arquitetam em várias possibilidades inter-relacionadas em diálogos possíveis. Uma dessas instâncias, talvez a mais ampla e a mais fundamental, é o estabelecimento de política pública para a formação de leitores. Uma política pública é uma ação intencional, planejada, duradoura e amplamente indicada em  programas de governos, estabelecida em sua carta programática e depois colocada em ação, objetivando chegar a camadas maiores da população. Responde a uma demanda social sentida pelo político ou apontada pela sociedade civil organizada. Nesse caso, uma política pública para a formação de leitores responderia à demanda por mais consumo de leitura, em seus vários níveis e significados – e por melhor desempenho na lida com os textos estabelecidos nos diversos suportes de leitura. Estaríamos pressupondo que dessa forma, alcançando êxito nessa política pública, o desempenho dos brasileiros na questão da leitura – e por extensão na escrita – levaria a população a uma compreensão melhor do seu tempo e da sua história, podendo, a partir daí, intervir de forma mais qualificada na vida do seu país.

Em sendo assim, uma política pública para a formação de leitores deveria centrar-se em alguns aspectos fundamentais: a criação de espaços de leitura (bibliotecas, salas de leitura, pontos de leitura, etc.), na formação de acervos diversificados e na formação de mediadores de leitura. Esses três aspectos devem ser sustentados por princípios de democratização das relações, descentralização das ações e do uso das verbas, participação efetiva dos sujeitos envolvidos na condução do seu projeto e continuidade dos programas de formação. Essas ações não devem ser confundidas com marketing, com a centralização das decisões e compras, com a repetição das parcerias e com o entendimento que os parceiros da ponta, onde os processos acontecerão, são meramente executores de decisões tomadas em esferas “superiores e mais iluminadas”. Nada mais desastroso para uma política pública, em qualquer área do conhecimento e da atuação política, do que centralizar decisões e compras e eliminar desses processos os sujeitos responsáveis pela atuação direta. Esta forma de encaminhamento de uma política pública é tendenciosa, ruim e não serve à maioria dos envolvidos.

Num país como o nosso, com uma avaliação baixa do desempenho dos brasileiros no quesito leitura e com um nível de atuação política dos mais baixos, é de se pressupor que esta forma de implantação de uma política pública é altamente perniciosa e que pouco contribuirá para a formação de leitores competentes. Estamos longe de poder acompanhar, por falta de instrumentos e instituições gabaritadas para tanto, as decisões, o uso das verbas, a distribuição de material e a efetividade dos projetos e programas onde eles devem acontecer. É assim que essa falácia vai se instalando e comendo o próprio rabo  justificando as críticas feitas às escolas, às bibliotecas e aos pontos de cultura de todos os tons e matizes. Com essas críticas, na maioria das vezes, parciais e enviesadas, justifica-se a manutenção de uma política pública centralizada e autoritária.

Por que não nos perguntamos qual a razão (ou razões) de bibliotecas estarem às moscas, de escolas não terem bibliotecas ou salas de leitura, de pontos de leitura minguarem? Serão todos esses profissionais incompetentes a ponto de sistematicamente naufragarem em seus projetos? Ou falta a eles – e aos mediadores com os quais dividem a aflição – verdadeiras condições de espaço, de formação continuada, de oportunidade para a decisão e criação de seu próprio projeto de atuação? Porque estas decisões, respaldadas em críticas que, se analisadas bem de perto poderão ser consideradas verdadeiros bumerangues, sustentam a manutenção da centralização.

Política pública na formação de leitores deve envolver muita gente, estimular ideias e projetos próprios, chamar a responsabilidade local para o uso da verba e para a proposição de sua ação. Este tipo de envolvimento facilitaria a troca de informações regionais, a busca de soluções coletivas, o surgimento de um diálogo permanente entre os parceiros, de uma mediação em que o mediador seja ele um parceiro, uma ponte, uma alavanca e não um feitor que tudo sabe, que tudo decide, que responsabiliza e sai fora da responsabilidade. Quanto mais democrática for uma ação de política pública, mais gente envolverá nessa responsabilidade de fazer dar certo. Talvez aí esteja o ponto exato que diferencia uma política pública efetiva de uma grande e ampla ação de marketing que beneficia os governos de plantão e seus parceiros.

Estamos longe ainda de nos sentirmos como uma nação leitora, como um povo que tem na leitura um modo de vida, um jeito de aprender e viver, uma saída para a qualidade de vida melhorada para todos, em que pesem a atuação pontual qualificada de muitos educadores de muitas escolas, de esforçadas organizações não-governamentais e de agentes culturais de ponta. É muito pouco.

Não é sem razão que recente levantamento aponta que apenas cerca de doze por cento das escolas públicas do Estado de São Paulo, o estado mais rico da federação, tem bibliotecas ou salas de leitura. Não é preciso dizer mais.

Resta-nos apenas lutar por mudanças e pelo estabelecimento de uma política pública para a formação de leitores mais vigorosa, mais saudável, mais democrática e mais descentralizada.

 
     
 

O LUGAR DO LIVRO NA ESCOLA

Muito se tem falado (e escrito) sobre a importância da leitura na vida e na escola. Por extensão sobre a presença dos diversos suportes que sustentam a palavra escrita no espaço social de aprendizagem por excelência, a escola. Entre os suportes, o livro, como o carro chefe desse leque de opções. (Não me refiro, nesse caso, aos milhares de livros que chegam via programas centralizados de governos, artificiais na sua essência e de quase nenhuma importância para a formação de leitores.) E qual é a importância do livro no universo escolar? Tenho pensado, nos últimos tempos, a respeito desse tema: há um lugar de efetiva importância para o livro na escola? Se há, qual é esse lugar?
Tenho pensado a esse respeito principalmente pelo avanço das novas tecnologias no espaço de aprendizagem da escola. As novas gerações, cada vez mais, são introduzidas na tela, antes e em detrimento do papel. Mas, apesar disso, penso que pode haver um espaço para o livro na escola como ela está constituída hoje. No entanto, algumas reflexões e mudanças são necessárias nesse contexto.
Começo a refletir sobre dois aspectos, ambos reportando-se a valores simbólicos. O primeiro aspecto é uma suposta escala de valores que há dentro da escola, formada  pelos que nela trabalham. Em que lugar, nessa escala, estaria o livro? Viria antes dos itens de sobrevivência (salário e jornada, por exemplo)? Ou antes dos itens que compõem as condições de trabalho (prédio, equipamentos, etc)? Ou antes das questões mínimas de segurança? Penso que não. Estes itens têm feito parte reiteradamente da pauta de reivindicações dos educadores que conseguem ter voz e se manifestar, de norte a sul do país. Podemos até considerar, em tese, que uma coisa não implica anular a outra. Em tese. Na prática,  quem conhece o universo escolar sabe muito bem que as coisas não são assim. Na prática, tendo a pensar que o livro não está, nessa suposta escala de valores, à frente dos itens apontados.
O outro aspecto diz respeito ao valor, assim no singular, que o livro merece fora da escola, por parte da comunidade escolar que procura a escola como espaço de aprendizagem. Não por culpa sua, mas por obra e responsabilidade exclusiva de programas de governos, que se alastrou feito praga para a maioria dos governos, de qualquer espectro político, da esquerda à direita, do vermelho ao amarelo pálido, que fizeram da escola um imenso balcão de negócios assistencialistas. Nas duas últimas décadas, vem crescendo assustadoramente o investimento em programas assistencialistas de doação de toda sorte de penduricalhos de baixa qualidade, os chamados kits, principalmente os de uniforme e  de material didático. Esses kits são marcados por duas características principais: a) são, em sua maioria,  de baixa qualidade e nem sempre adequados à faixa etária e à necessidade pedagógica real de quem se destina; e b) são, descaradamente,  super faturados. Acostumados a isso, a essa peregrinação assistencialista, principalmente no início do ano letivo, a comunidade escolar se irrita não com a falta de professores e com a falta de bons programas de formação dos professores,  não com a falta de prédios bem estruturados e nem com a falta de bons materiais didáticos coletivos, mas com a falta do material assistencialista que, imagina, seja fundamental e decisivo na lida com a aprendizagem. Vem sendo acostumada a receber essas esmolas de baixa qualidade e de necessidade duvidosa em vez de receber o essencial: uma escola bem preparada e organizada com qualidade para o exercício, não do assistencialismo, mas da educação, da construção do conhecimento. Assim acostumada vai à mídia e reclama disso, sem perceber que isto é uma máscara que esconde a baixa qualidade do ensino oferecido. Nesse panorama, a preocupação com o livro está longe, distante, e vai formando um valor, inconsciente, no seu imaginário, que o importante é começar o ano escolar com os kits de uniforme, de material escolar insuficiente e de baixa qualidade, com as latas de leite, etc.
Acrescente-se a isso, a frágil política pública de distribuição de livros selecionados e comprados de modo centralizado, interessante apenas para quem se enriquece com ela, e pouco interessante para quem poderia se beneficiar com os livros na escola. As escolas e os educadores não são consultados, como se isso não fosse necessário, e os livros chegam às escolas, que não se prepararam e não foram preparadas para receber esse material escolhido de modo frio e distante do seu cotidiano. Apenas alimentam estatísticas. Quem conhece bem a ciranda dos números, sabe que a estatística serve a qualquer senhor.
Nesse sentido, respondendo à minha indagação aflitiva no início do texto,  é quase impossível pensar um lugar de destaque para o livro na escola pública brasileira nas condições atuais. Corremos o risco de pularmos uma etapa: sair da escola em que o livro deveria ocupar lugar de destaque pedagógico no universo escolar e passarmos para outra etapa em que telas luminosas tomarão o lugar do papel impresso.
No entanto, se ainda queremos ver o livro como valor simbólico de cultura de aprendizagem no universo escolar ainda há tempo para inverter algumas condições: acabar com o vicioso balcão de negócios assistencialistas  que a escola virou  e transformá-la  em um espaço público de construção social do conhecimento e de produção do seu projeto pedagógico.

Neste espaço haverá um lugar de destaque para o livro no universo escolar.
 
     
  A DUPLA FORMAÇÃO DO EDUCADOR: LEITOR E MEDIADOR

Há muitas relações entre a escola e a leitura e a literatura. Qualquer análise breve dessa relação será sempre uma análise parcial e incompleta, tantos são os aspectos aí presentes. Um desses aspectos é a presença do educador como mediador de leitura, atuação obrigatória por força do currículo escolar. Sem aprofundar a discussão do que seja e como se constitui o currículo escolar, cabe lembrar que a escola é o "lócus" por excelência onde a aprendizagem da leitura, em toda sua amplitude, dar-se-á. Não é por outra razão que a escola está sempre na berlinda, para o bem e para o mal, quando falamos e tratamos da leitura e, mais especificamente, da leitura da literatura. Ousaria afirmar que, na atual conjuntura do país, a escola, com todos os erros e acertos, é, sem dúvida, a única instituição em que a leitura se dá por força de sua vocação e da obrigatoriedade curricular. Se isso é bom ou ruim, se está bem ou mal, a história é outra.

Por conta disso, vale uma conversinha sobre a presença do educador nessa história. E a conversa começa com a afirmação de que a sua estrada, no sentido de ensinar os alunos e alunas a leitura e o gosto pela leitura, tem mão dupla: ao mesmo tempo em que vai se desenvolvendo como leitor, aprende e repassa o que aprendeu na formação de outros leitores. De um lado caminha o leitor e do outro lado caminha o mediador. Aprendendo a ler, o educador vai se fazendo leitor; descobrindo os caminhos da mediação, vai se fazendo um mediador. Um determinando o outro.

Como leitor, o educador vai acumulando experiência de saborear textos, de encontrar saberes guardados, de lidar com o desejo e com a escolha. Sobretudo, o educador vai se fazendo leitor descobrindo o convite ao prazer da aprendizagem que todo texto faz, desenvolvendo comportamentos de leitor: ver, vasculhar, procurar, escolher, sentir, projetar planos de leitura, tecer a sua história de leitura, ler, rascunhar ideias, comparar, anotar, gostar, fazer sentidos, guardar saberes, acumular sentidos da paixão, etc.

Como mediador, o educador vai encontrando caminhos, formas e jeitos de se colocar entre o leitor aprendiz e o texto. Primeiro, bem perto, bem próximo, quase no meio, entre o leitor e o texto, de forma a sentir a respiração do aprendiz em seus contatos com o texto. Depois, ligeiramente mais distante, mas ainda quase ao lado, ouvindo o compasso dos olhos do leitor aprendiz. Finalmente, distante, ausente, mas ainda próximo, acompanha a precisão do tato na escolha feita pelo leitor, agora mais do que um aprendiz, do próprio caminho no diálogo com o texto. E vai desenvolvendo comportamentos de mediador: criar a presença ausente, desenvolver o olhar de apoio, querer projetar planos de ação, pensar a leitura no coletivo da escola, lidar com escolhas e indicações, naquilo que elas têm de ações fluidas, participar de outros projetos, ser um sujeito ativo da escolha do seu jeito de trabalho e do acervo de trabalho.

Em ambas as vias da estrada de mão dupla, escolher o livro e o acervo, seja da sua história como leitor, seja da sua história como mediador, é determinante. Impossível pensar a escola, o leitor e o mediador sem pensar sua atuação como personagem que pensa o seu método de trabalho e o objeto do seu trabalho e prazer.

Na vida é assim: a gente aprende e ensina. Aprende com quem já sabe um pouco e ensina quem sabe outro pouco. Aprende com o colega educador do lado, com o recado no mural, com a página marcada do texto lido antes por alguém, aprende com o jogo de olhares dos aprendizes. E aprende consigo próprio. Além de aprender, o educador, leitor e mediador, ensina quem sabe pouco e quem sabe muito. Sabendo pouco ou muito, sempre há espaço para aprender com alguém por perto. Quem ainda não percebeu essa condição da vida, precisa pensar sobre isso. Quem acha que sabe tudo, sabe pouco. Quem acha que sabe pouco, está pronto para aprender muito. E vai descobrindo, aprendendo, prestando atenção, ensinando, tomando cuidado. De repente pensa que está aprendendo, mas está mesmo é ensinando. E quando pensa que está ensinando, ah! está mesmo é aprendendo.
Aprender e ensinar. Ser leitor e mediador ao mesmo tempo solicita ao educador carinho pelo texto, olhar de curiosidade, persistência e paciência na acomodação constante dos novos sentidos. Solicita ouvidos atentos para a diversidade e pluralidade e demanda amorosidade na dose certa para acompanhar perguntas, dúvidas e indecisões.

Para encerrar esse dedo de prosa, fica um mote para você refletir, na esteira do pensamento pra lá de conhecido de Guimarães Rosa, que escreveu e disse, por entre sertões e veredas "mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende": educador mesmo é aquele que se faz leitor e se dispõe à mediação.

 
     
 

30 ANOS DO PROGRAMA DE SALAS DE LEITURA

O Programa de Salas de Leitura das escolas municipais de ensino fundamental de São Paulo completam neste ano (2013) trinta anos de existência.
Na década de setenta, a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo tinha um projeto chamado Programa Escola Biblioteca em prática em algumas escolas. Era um programa centrado em fichas de leitura, dezenas delas para cada livro. Os leitores liam um livro, que fazia parte do acervo, e respondiam durante a leitura a dezenas de fichas com centenas de perguntas. A leitura, do ponto de vista técnico, era bem feita, mas o prazer de ler passava muito longe.
Em 1983, há trinta anos atrás, algumas mudanças começaram a acontecer no ensino municipal paulistano. Ventos democráticos sopravam na política nacional, a ditadura dava seus últimos suspiros e a educação discutia alguns dos princípios de antes. Um deles, o gosto pela leitura e a organização dos espaços de leitura nas escolas.
Uma equipe destacada pelo novo comando da secretaria de educação foi encarregada de avaliar o programa anterior e propor mudanças, em ritmo acelerado. A equipe, assessorada por professores das universidades públicas, estudou, avaliou, sentiu o momento e propôs: do programa centrado em fichas de leitura o passo seguinte era colocar a literatura no centro da leitura prazerosa. Para isso era necessário desmontar o programa anterior e apresentar uma nova proposta. Isso foi feito, acompanhando novas visões do ensino da língua na escola, ampliando a questão da leitura para a escola como um todo. Foi feita a proposta, baseada em três pontos: criar espaços adequados e amplos, formar permanentemente os professores responsáveis pelas atividades de leitura nesses espaços e ampliar o acervo. Estava assim criado o Programa de Salas de Leitura das escolas municipais de São Paulo.
Algumas coisas foram deixadas para trás e outras precisavam ser feitas. De cara, entendeu-se que os espaços para as atividades de leitura não poderiam mais ser adaptados, escondidos, apertados. A Sala de Leitura merecia uma sala própria, do tamanho de uma sala de aula. Uma sala que pudesse acomodar mesas e cadeiras, prateleiras, muitos livros e... alunos e professores. A disposição dos móveis e dos livros ficou por conta da criatividade da equipe escolar. Os móveis novos começaram a chegar e os livros em boa quantidade também.
Também ficou entendido que cada Sala de Leitura deveria ter um – ou mais – professor responsável pelo espaço, pela organização e pelas atividades ali desenvolvidas. Não mais um professor qualquer, alguém afastado da sala de aula: um professor com perfil apropriado para o novo trabalho, principalmente alguém que fosse ou quisesse se formar como leitor. Escolhidos, esses professores tinham curso de formação inicial e, depois, permanentemente encontros bimestrais para troca de experiências, discussões, leituras, palestras, etc. A formação dos professores orientadores destas salas de leitura focava o prazer da leitura, a qualidade do material e das atividades, a diversidade de atividades, a freqüência semanal dos alunos ao espaço, o professor das classes como leitor parceiro e a visão da leitura como poderoso instrumento de aprendizagem.
O acervo foi o outro ponto desse tripé que teve um tratamento especial. Paralelamente ao boom da literatura infantil e juvenil de autores brasileiros, os acervos começaram a crescer, a ter reposição anual e contar com a participação dos professores na indicação de livros para a compra. Variedade, diversidade, atualidade.
Ao longo dos anos seguintes, o Programa de Salas de Leitura foi crescendo, cada ano com mais e mais escolas recebendo acervos, mobiliário e professores bem formados. O bicho pegou!
Hoje, trinta anos e diversas administrações municipais depois, chuvas, trovoadas, raios, relâmpagos, nada abalou o programa, que continuou crescendo e se fortalecendo. É, certamente, o programa de incentivo à leitura e formação de leitores em redes de ensino públicas mais longevo de que se tem notícias.

Sabe por que eu sei essas coisas? Porque eu estava lá, coordenando a equipe que legou para a história da educação municipal de São Paulo e do Brasil uma das experiências mais ricas, interessantes e duradouras.

E, neste 2013, quando muitas redes públicas de estados ricos ainda patinam e não têm propostas minimamente razoáveis para a questão da leitura, eu troco a saudade pela certeza de que quando se quer é possível fazer e fazer bem feito. Os caras que descobriram – ou inventaram – o Brasil já sabiam: em se plantando tudo dá!
Parabéns ao Programa de Salas de Leitura das Escolas Municipais de São Paulo e a todos os que de um jeito ou de outro contribuíram para essa história de sucesso.

 
     
 

O QUE CABE EM UMA SALA DE LEITURA!?...
(Ainda a propósito dos 30 anos do Programa de Salas de Leitura)

O título deste texto sugere uma pergunta. Ou uma exclamação. Ou ainda uma afirmação. Será? Pode ser. Ou talvez (não) termine com reticências... Prefiro esta última alternativa.
Reticências, pensando com os neurônios gramaticais, indicam "interrupção do discurso, da fala, do pensamento...". A interrupção, pensando com os neurônios da Psicologia, nunca é um ato final e, dessa forma, abre uma janela para o infinito. Assim, o título que melhor cai bem é este: "O que cabe em uma Sala de Leitura..."
Começo imaginando que em uma Sala de Leitura cabe tudo o que está do lado de fora de suas paredes.
Como, por exemplo, as perguntas. Muitas delas. Todas adjetivadas: perguntas incultas, populares, destrambelhadas, malucas, sinceras, receosas, confusas, objetivas, irônicas, retas e tortas, curtas e secas, guardadas, escondidas, envergonhadas, cansadas, espertas... E, claro, as perguntas bestas (qual o problema com a pergunta besta?). Paulo Freire passou anos nos ensinando sobre a importância das perguntas na educação (e, portanto, na vida!!). Uma pergunta bem perguntada é metade do caminho para as respostas. Ou então, uma pergunta bem perguntada, desperta múltiplas respostas, algo que é sempre melhor do que o pensamento único. Quantas vezes, leitores atentos não se pegaram perguntando se "Capitu realmente havia traído Bentinho". Nesse e em outros tantos casos, as perguntas são mais interessantes do que as possíveis respostas. Respostam brecam e as perguntas aceleram.
Em uma Sala de Leitura cabem também as formas do silêncio. Silêncios inquietantes, contemplativos, reflexivos, profundos, superficiais, amenos, ligeiros, andarilhos, alegóricos, pleonásticos ou... simplesmente os silêncios mais simples. Nos silêncios, aqueles que começam no brilho dos olhos e caminham até os nós e apertos do coração, cabem os ditos, os não ditos, os provérbios, os verbos e os editos. Cabe o desvio das entrelinhas; cabe o jeito de dizer sim dizendo não; cabe o olhar que pergunta, sem nada dizer; cabem a voz emudecida vazada de espanto e a voz aquecida pelo calor da descoberta. E cabe o abraço do encontro, embora o poeta tenha nos alertado dos tantos desencontros vida afora. Talvez porque deva ser no silêncio que se constrói a perspectiva do reencontro.
Penso também que em uma Sala de Leitura cabem fotografias. Fotografias de instantes alegres ou tristes, leves ou pesados, dos modos de vida descritos pela narrativa ou narrados pela descrição da galeria das personagens tantas e muitas e todas. Fotografias de fadas que lembram a realidade; fotografia de monstros que sacodem nosso cotidiano; fotografias de aventureiros que insistem em mostrar outros caminhos; fotografias de piratas que sucateiam nossa imaginação nada ousada, de caçadores que fervem corações em caldeirões desanimados e de bruxas que saqueiam nossas ilusões. Cabe, sem dúvida, fotografia de anões blindados, menores do que suas microcâmeras digitais, que nos ensinam que fotografar a realidade, sob qualquer ângulo, é tão bom quanto fotografar o mais escondido dos nossos guardados impenetráveis. Revelar fotografias é dar vida à vida.
Em uma Sala de Leitura, cabem, também e certamente, os muitos saberes. Desde os populares, estampados nos ditados da boca do povo, até os mais elaborados. Os saberes poéticos, os saberes filosóficos, os saberes literários, os saberes corriqueiros. Os saberes que entraram e ficaram em nossas vidas e os saberes descartados, à espera de outras formas de significação. Saberes que norteiam rumos e que desnorteiam sentidos; saberes que oferecem portos de seguranças e saberem que tiram os pés do chão. Saberes que desvelam a lucidez da emoção e nos põem a caminho da Pasárgada pessoal de cada um.
Ah, antes que me esqueça, na pressa de acomodar as amarrações finais desse texto: em uma Sala de Leitura também cabem leitores, estantes, livros, jornais, revistas, vídeos, CDs, computadores, mesas, cadeiras... E tudo o mais que o sonho, a vontade e o prazer de fazer a própria história assim disponibilizarem.
Leitores são a versão mais moderna de encantadores do mundo.

Sampa, abril de 2013

 
     
 

SOBRE MEDIAÇÕES

No breve espaço de tempo de sua leitura, tratarei de ocupar sua leitura com a discussão de alguns aspectos de um conceito muito em trânsito entre nós: reflexões sobre as questões da leitura e sua fluência e a formação de leitores. A mediação de que aqui tratarei, de forma rápida, pode ser definida como o ato de se colocar no meio, entre pessoas, abrindo espaço para o entendimento e o diálogo. Embora ultimamente bastante difundida na esfera jurídica, como o espaço para a solução de conflitos, a mediação é muito mais amplo do que esta forma reducionista que vem ganhando espaços e corações em tantas instâncias. A mediação a que nos referimos é abrangente e pressupõe o diálogo como o cerne de sua definição.
Penso que é possível afirmar que desde sempre a humanidade se "humanizou" conversando, trocando ideias e experiências, narrando, contando, falando um para os outros, ouvindo. A conhecida dependência que os humanos têm dos seus familiares para sobreviver nas duas primeiras décadas de vida guarda em si uma dualidade contraditória: dependemos dos outros – e talvez não gostemos disso - , mas fazendo dessa dependência uma experiência prazerosa de convivência. Nesse sentido, desde o distante narrador à beira da fogueira até moderno terapeuta, das lições de aprendizagens às transmissões de conhecimento, essa convivência expõe nossa necessidade de mediarmos e sermos mediados, tomando a língua, escrita ou falada, como instrumento fundamental desse processo. A única diferença, dos tempos ancestrais aos dias de hoje, talvez seja a diversidade das mediações. Se antes, o mais velho do grupo era praticamente o único responsável pela ação objetiva e cultural da mediação, hoje, há uma diversidade muito grande de mediações, mediações ocorridas em múltiplas instâncias e em diversas situações. Somos mediados e mediadores em tempo pleno.
No campo das questões ligadas à leitura, à leitura da literatura e a à formação de leitores, falamos de uma mediação que pressupõe leitores e livros, e uma situação de aprendizagem do gosto pela leitura. Essa situação, à moda vygotskyniana, implica em leitores mais maduros e autônomos que se colocam entre o livro e os leitores em desenvolvimento e os "mediam" para dar o salto qualitativo. Simples assim: quem já caminhou um pouco e passou pelo caminho estende a mão e apoia o menos experiente para o passo de avanço, da qualidade, na busca do que está mais alto, mais à frente. A mediação é a ponte que se constrói entre um e outro; é o meio, que por estar no meio, se apresenta como elo entre uma e outra ponta. Assim, a mediação e os mediadores se apresentam de muitas formas e em várias situações: as mediações familiares, as mediações institucionais, as mediações escolares, as mediações feitas pelos veículos de comunicação social (jornal, televisão,redes sociais, etc), entre outras. Em outra oportunidade, em outro texto, tratarei dessa matéria.
Uma mediação, de cuja natureza faz parte a aprendizagem, sempre implicará um espaço de relação entre pessoas, que ensinam, que ajudam, que mostram, que oferecem, que abrem e ampliam visões, que sugerem... No entanto, há que se registrar que o limite entre "mediar" e "fazer por" é tênue, delicado, quase sempre tentado a ser rompido. Sem dúvida, na maioria das vezes, é mais fácil e mais rápido e menos aborrecedor, fazer pelo outro, fazer no lugar do outro.
Tomemos como exemplo de nossa breve investigação, o caso das mediações escolares. E dentro deste recorte atentemos especificamente para a questão do sujeito leitor, e um dos aspectos do comportamento leitor, que é a seleção de livros. Por razões que todos nós conhecemos, pelo menos a maioria das razões, o espaço escolar é por excelência o espaço do diálogo, o espaço do encontro entre pessoas, o espaço da aprendizagem, o espaço do trânsito do conhecimento, enfim, o espaço das mediações. Pois bem, essa condição elevou o espaço escolar como o espaço onde as mediações entre o leitor e o livro devem acontecer com freqüência, com qualidade, com intensidade e com propriedade. Em decorrência disso, a burocracia estatal, plena de boas intenções, chamou para si a responsabilidade de selecionar, comprar e distribuir acervos para milhares de escolas públicas brasileiras. (Não vou particularizar agora a discussão sobre este tipo de atuação da esfera pública e os desvios que vêm causando na produção e publicação de livros, pois isso merece uma discussão mais ampla). Ao fazer essa compra (milionária) de livros para montar acervos para as escolas, bem intencionados politicamente, os burocratas da educação cometem um erro fundamental, caro a qualquer processo de mediação da leitura: se colocam no lugar do sujeito e fazem por ele a seleção do acervo.
Os educadores responsáveis pela mediação da leitura na escola são descartados da primeira etapa do processo de mediação: escolher o seu material de trabalho. Se um dos pressupostos de toda mediação é o salto de qualidade e a autonomia, como pode um educador crescer como sujeito pedagógico dentro de um processo de mediação se é alijado de parte substantiva de sua formação? Essa postura colonialista impede que educadores, errando e acertando, construam sua autonomia como educador/selecionador de textos para o seu trabalho, e nesta trajetória vivam etapas fundamentais de sua formação como sujeito leitor e formador de leitores. Receber acervos prontos e pré-selecionados significa a mesma coisa que dizer que ele não tem capacidade para escolher o material de trabalho. Como escreveu, e defendeu o filósofo da educação Paulo Freire, o educador deve ser sujeito do seu projeto pedagógico e esta subjetividade passa certamente pela escolha do seu material de trabalho. Que tipo de mediação ele vivenciará com os seus alunos, futuros leitores autônomos, se não teve o direito de escolher os livros de acordo com o seu projeto pedagógico, com o seu interesse, com o contexto de sua realidade escolar? Tenderá a reproduzir o mesmo comportamento, confundindo mediação com o processo mais fácil que é o de se colocar no lugar do outro e escolher para ele?
Inúmeras são as razões que sustentam esse processo centralizado de seleção, compra e distribuição de acervos para escolas públicas, mas certamente são muitas também as razões que nos obrigam a respeitar a construção do processo de mediação de leitura nas escolas, entendendo de uma vez por todas que o educador deve ser respeitado como sujeito "selecionador" do seu material de trabalho. Por mais que isto signifique tirar do processo pessoas gabaritadas e que fazem isso (se colocar no lugar do outro e escolher por ele) há décadas, é necessário e urgente mudar essa relação. Sob pena de falarmos de mediação sob olhares diferentes e criticarmos as produções escolares sem lhes darmos as condições corretas de trabalho.
Mediação é assunto amplo e multifacetado. Mas precisa ser discutido por todos os que fazem e pensam a literatura, a leitura e a formação de novos leitores.

 
     
  POR UMA TEORIA DOS BURACOS

Dia desses, conversando com leitores jovens, em uma escola, diante do respeito cauteloso que eles vinham mantendo pela figura do escritor ali presente, não sei porquê comecei a falar de uma certa Teoria dos Buracos.
Pura bobagem. Mas o que é a vida senão um punhado de bobagens que cometemos procurando encontrar caminhos acertados?
Comecei propondo, claro, como toda teoria que se preza, um princípio geral que sustentasse o fundamento da argumentação: a vida é uma sucessão de buracos. Começa em um vazio e acaba em um buraco cheio de terra (ou de cinzas). Entre esses, há um desfile imemorável de outros buracos. Lembrei alguns, entre risinhos maliciosos e olhares distraídos: a fome (buraco no estômago), a saudade (buraco do coração); a ignorância (buraco no cérebro); o riso (buraco na seriedade); a raiva (buraco da ruindade); o sono (buraco da consciência); a pergunta (buraco da compreensão), a resposta (buraco da pergunta), o ponto final (buraco da falta de assunto), a fotografia (buraco da lembrança), o silêncio (buraco da palavra). A lista é longa, muito longa, tão longa quanto a vida.
Depois do princípio geral, disse que, como toda teoria, boa ou ruim, a Teoria dos Buracos tem lá algumas regras que garantem sua comprovação. E tratei logo de desfilar umas poucas dessas regras.

A primeira regra é que todo buraco existe em razão de uma necessidade. Um buraco para comer, dois buracos para ver, dois buracos para ouvir, um buraco para enterrar coisas, um buraco para o trem passar, um buraco para guardar a saudade, um buraco para tapar, um buraco para a ponte passar, um buraco para cobrir, um buraco para costurar... Não há buraco inútil.

Outra regra, não menos importante do que a anterior, é que todo buraco tem uma textura, uma forma e uma beleza que lhe são peculiares. Há buracos grandes e pequenos, retos e redondos, nervosos e calmos. Há buracos rebeldes, que nunca querem companhia; há buracos pedintes que pedem insistentemente que sejam preenchidos. Há buracos exibidos tanto quanto há os buracos tímidos, escondidos, cheios de vergonha. Há buracos com mania de crise, todo tipo de crise. Os buracos nos conquistam. Os buracos têm lá sua beleza, nem sempre posta à mostra de imediato, mas que não resiste a uma busca meticulosa.

Também pensei nessa formulação das regras da possível
Teoria dos Buracos que todo buraco tem sua flexibilidade, permeabilidade e porosidade. Isso, os buracos têm de sobra. Que graça teria se os buracos fossem sempre os mesmos, sempre iguais, sempre monótonos. Buracos que se prezam são como os textos que lemos ou escrevemos: porosos, permeáveis, flexíveis. São armadilhas de formas e significados que se mostram, se abrem para nos receber, e depois nos envolvem e engolem. Nesse sentido, os buracos se parecem com uma oração: neles não certezas, só promessas.

Sem dúvida, não poderia deixar de apostar em uma regrinha simples, tão simples que sua simplicidade não a deixa ser esquecida ou desconsiderada: todo buraco tem uma existência própria, espaçada no tempo, e pode mudar sua forma, sua textura, sua beleza, sua flexibilidade e porosidade. O que um buraco foi ontem não será necessariamente amanhã. Talvez por isso, o buraco, qualquer que seja ele, se parece muito com o futuro: está sempre por ser feito.

Por último, propositadamente deixada para o final, me lembrei que há uma regra fundamental nessa teoria, aquela que diz da razão da sua existência: um buraco só existe porque em sua essência, sua contrapartida, há uma busca constante pelo seu preenchimento.

Bem... antes que me perguntem (ou pensem) que importância tem essa teoria quase inútil em nossa vida, nessa vida em que corremos o tempo todo atrás de coisas, objetos, sonhos, realizações, posses, contas bancárias, prêmios, figurar em listas, títulos, ideologias etc, me apresso em responder explicando: humanos que somos, passamos a vida toda procurando completar nossas lacunas e incompletudes.

E aí, feito uma epifania atrasada, meio que encontro uma razão para a tentativa de criação da Teoria dos Buracos: a literatura é a matéria da criação humana que mais atende ao apelo dos buracos. É a literatura, entre todas as áreas do conhecimento humano, que parece ter sido concebida para satisfazer essa busca constante pelo preenchimento dos buracos. É com a literatura que se entra nos buracos, preenchendo-os e que enche de beleza essa forma seca de ser dos buracos. É pela literatura que navegamos nos buracos acomodando ou ampliando os seus limites, respondendo ou perguntado, esticando os olhares e moldando a audição em busca de compreensões. É a literatura que faz roteiros de viagens nunca antes feitas por sombras, espantos, descobertas, imagens, comparações. É a literatura que ativa a capacidade de criar, quando guardada em mentes dorminhocas, e a capacidade de tolerar o buraco maior de todos que é o sentido da vida. É a literatura, com seu jeito manso, mas intensamente explosivo, que arruma uma varinha de condão ou uns óculos de leitura capaz de permitir o entendimento da complexidade, da transparência, da rapidez, da fragilidade e da superficialidade da vida.
E a literatura, por não ser sólida – e por essa razão não se desmancha no ar – anda à procura de parceiros de caminhada. Ela também às voltas com os seus buracos.

Bem... fico feliz, se a esta altura da leitura ganhei mais um adepto da Teoria dos Buracos. Se não...sigo com os meus buracos e que a literatura me ajude.

 
     
  LEITURISMO e LEITURAMENTO

É bem provável que estes dois termos, Leiturismo e Leituramento, nada signifiquem para além da curiosidade. O que é Leiturismo e o que é Leituramento? Que relações podem haver entre eles?
O Leiturismo está para o espontaneísmo assim como o Leituramento está para o planejamento.
Aqui vamos, inicialmente, nos acercar de uma possível definição desses termos. Espontaneísmo apareceu como a designação de fenômenos sem ligação orgânica entre si, como eventos fortuitos, oportunistas, gerados ao acaso, como um lance de dados, as coisas acontecendo ao sabor delas próprias, sem rumo previamente traçado, sem planejamento. Nesse sentido, eis aí a alma do leiturismo: o espontaneísmo.

Letramento, conceito novo e ainda complexo, nos faz pensar nas relações de aprendizagens da leitura e escrita num mundo pleno de signos verbais e suas muitas significações. Diferentemente do espontaneísmo, o letramento pressupõe a preocupação conseqüente, ao planejamento, ao estudo das necessidades, ao fortalecimento das relações entre sociedade e sujeito. Nesse sentido, eis aí a alma do Leituramento: o planejamento conseqüente.

Leiturismo é o espontaneísmo, o fogo que arde sem queimar, o embarque atropelado na canoa dos movimentos efêmeros, não duradouros, nem contínuos. É a arte fogueteira do marketing, é o discurso dos programas de governo, antes da eleição, e a ausência na prática política do cotidiano. Leiturismo é a construção de prédios e, às vezes, compra de acervos e equipamentos para inaugurações rápidas, festeiras e inundadas de holofotes, para depois, acabar na quarta-feira de cinzas, morna, sem programa, sem mediador de leitura, sem reposição de acervo e sem propostas de atuação diárias, cotidianas e contínuas. É um número na estatística e quase nunca passa disso. Números mortos em páginas oficiais: pouco ou nada dizem da prática efetiva de leitura. É um nome na lista de eventos e projetos/programas que, depois, dorme na calmaria das listagens. Leiturismo é pleno de eventos bombásticos, números afoitos, discussões acaloradas, vozes em mil alto-falantes. Leiturismo é a aprovação tresloucada, pipocando a todo o momento, de planos estaduais e municipais de leitura, do livro, de biblioteca. Aprovadas as leis, para consumo de planos de governo e de ações marqueteiras, elas vão quase sempre para o ninho do sono eterno.
Do leiturismo fazem parte diversas ações, entre as quais, para o que nos interesse aqui e agora, as estatísticas vazias de número de bibliotecas públicas, o abandono da maioria dos prédios e equipamentos, a ausência de programas de reposição de acervo com a participação dos interessados, de formação dos mediadores e de incentivo cultural aos eventos de formação de leitores.
O Leiturismo é a festa, o elefante branco, o anúncio, os fogos de artifício, a estatística formal no espaço comprado a peso de ouro do jornal, a luz apagada depois do "e agora, José?". Tem a ver com a política populista, atropelada, rápida, que responde à demanda do momento, à moda da hora. É a inconseqüência com a cara de fragmentos brilhantes e coloridos.
Leiturismo busca votos passageiros. Não se preocupa com um projeto de sociedade e nesse projeto o espaço da leitura como ação salutar para a vida inteligente.

E o Leituramento, o que é?
O Leituramento é a ardência do cozimento brando e contínuo, a cadência do movimento constante, a amarração firme e forte dos cabos, das vigas, dos suportes, um amálgama contra a fragmentação. É a preocupação conseqüente, fora dos oportunismos, longe da fogueira das vaidades, distante da superficialidade; é a proposição com começo, meio e fim, olhos aqui, ali e além, a previsão de quem faz, onde faz, com o quê faz e como faz. Leituramento é o contraponto às inaugurações apressadas, aos projetos de nomes pomposos e estrutura oca, à superficialidade da luta por espaços que travam os que querem o seu nome na mídia.
Do leituramento fazem parte diversas ações, entre as quais interessa-nos citar: definição de uma agenda nacional para os eventos da leitura; formulação de uma política consistente, contínua e objetiva para construção, manutenção e recuperação dos prédios das bibliotecas públicas; definição de uma política de formação de mediadores de leitura para atuar nas bibliotecas; formulação de uma política eficiente de reposição de acervo, dando voz aos mediadores; investimentos concretos em uma ampla rede de bibliotecas escolares; envolvimento efetivo dos municípios na vida de suas bibliotecas, organizando leitores e mediadores em uma cidade-leitora.
Leituramento busca a ação concreta da sociedade pela leitura, um projeto de sociedade onde a leitura-ação-e-reflexão esteja presente como forma de garantir inteligência saudável em nossas vidas.

Leiturismo é, enfim, o desejo afobado, a festa pronta, o discurso na ponta da língua e... os espaços de leitura vazios.
Leituramento é, afinal, a atitude firme e definida, o planejamento conseqüente, o trabalho contínuo e amarrado e... os espaços de leitura abertos e pulsando as muitas significações possíveis.