Os textos seguintes são uma criação fictícia, como um diário de uma professora, Nira. Estão sendo publicados na Revista Direcional Educador (Editora Leitura Prima), em sua edição mensal, a partir de julho de 2014.  
     
 

DIÁRIO DE NIRA
Anotações avulsas, pouco elegantes e nada exemplares de uma educadora de língua e teclado afiados

Novembro

Oi
Não me canso de escrever. Pelo contrário: às vezes parece que tiro energia dos meus escritos. Escrevendo vou me energizando. O povo mais chegado da escola descobriu esse meu prazer em escrever – não sei se é algo mais do que prazer – e não sai mais do meu pé ( expressão de mau gosto... que um bom escritor ou boa escritora jamais usaria... como não sou, nem uma coisa nem outra, me permito). Tudo o que precisa ser escrito,  os olhares e as vozes são dirigidos a mim. Já expliquei que gosto de escrever outras coisas, outros currículos, e não essas mesmices protocolares próprias da vida da escola. Circular, aviso, ofícios... tô fora! Muito fora! Já avisei e botei placa no escritório que não tenho: não cobro para escrever,  mas me cobro para escrever só o que me enfeita a vida e me faz sentir fazedora de história. Mas... se for para convidar a atual secretária de educação, moça de fino trato, para nos visitar e viver conosco o chão batido da escola, ah!!! farei com imensa satisfação. E prometo caprichar na criatividade. E se for para lembrar que os abacateiros continuam carregados de frutas e as frutas continuam despencando do alto e quebrando telhas recém trocadas, farei com prazer...
E por falar no abacateiro soltando frutas maduras no telhado, quebrando telhas, as mesmas telhas que acabaram de trocar, aliás por um preço escandaloso (com o valor pago por uma telha é possível comprar três no mercado...), provavelmente porque as telhas foram banhadas em ouro... poxa...perdi o fio da meada...E por falar em abacateiro e telhas quebradas me lembrei do quiproquó que a Claudinha, minha musa da sala de leitura, armou dias desses. Inventaram uma festa de primavera (a festa já passou, mas ficou a lembrança do episódio tragicômico), mais uma dessas festas que de festa não têm nada e servem apenas para arrancar dinheiro da comunidade para cobrir os buracos de falta de recursos. Os recursos que os governos não mandam, escondem, gastam no meio do caminho ou superfaturam... Pois bem, a tal festa da primavera inventou de arrecadar umas doações para fazer um bingo. As doações começaram a chegar e alguém teve a feliz ideia de guardar tudo na... sala de leitura. Justo no dia de folga da Claudinha. Quando ela chegou, no dia seguinte, e viu a sala de leitura entulhada de coisas dos mais diferentes tipos, pesos, cores, cheiros e gostos, quase teve um treco. Sua reação, inesperada para muitos, foi pegar, calmamente, cada uma das coisas e objetos que foram amontoados na sala de leitura, ocupando o espaço de circulação das pessoas, dos livros e das ideias, e colocar tudo, tim tim por tim tim, do lado de fora no corredor. E, ainda calmamente, escreveu numa folha de papel sulfite, com tinta grossa “FORA DE LUGAR”. Foi um bafafá. Gente de um lado e de outro. Mas no fim do episódio, Claudinha teve a sala de leitura de volta para a leitura. Vitoriosa, minha musa. Mulher de fibra que sabe o que quer e que conhece o poder da leitura. Quem lê sabe mais... certamente. E deixou uma lição no ar, na parede: se a gente dentro da escola não sabe o valor dos equipamentos, que dirá o governo, alheio aos nossos problemas. Claudinha será a próxima personagem do meu caderno SOBRE MEMÓRIAS DE PESSOAS, ela sendo uma das pessoas mais vivas que conheci na vida.
E já que estou a  falar de vida, neste mês consagrado à lembrança dos nossos mortos, quero registrar a indignação de todos nós da escola contra esse estado de coisas da política nacional: o uso de cargos com vistas a apoio político, troca de ministros que mal esquentaram o assento, ameaça de mais impostos, a cara-de-pau da maioria dos homens públicos, o desrespeito pelo passado e pelo futuro, pelas mentiras, pelas contas de serviços públicos que aumentam mês a mês, pelo fechamento de escolas, pelo arrocho imposto aos menos favorecidos.
E já que estou a falar de vida, neste mês consagrado à lembrança dos nossos mortos, quero registrar a distância estratosférica entre o que está escrito nos planos de educação, que  buscam aprovações nas respectivas casas legislativas, e a prática em nossas escolas. O papel aceita tudo, pensado, bonito, reflexivo. O chão da escola fotografa uma realidade muito distante. Precisamos aproximar estas duas realidades. Quando penso nisso, me lembro da Santinha, com seu jeito simples de entender a vida, em meio a essas coisas. Vez ou outra, olho para ela e encontro o seu olhar perdido, de desentendida, de quase peixe-fora-dágua, tentando se agarrar em palavras e ideias para pegar o sentido das coisas. Adoro receber os bilhetes dela, perfumados de inocência e ignorância, me informando de sua simplicidade ou de sua perplexidade, a seu modo, com suas palavras e frases desconexas e mal amparadas na gramática inflexível. Dia desses, numa reunião breve, vi o olhar perdido dela diante dos escritos introdutórios da primeira versão da Base Nacional Comum Curricular. Depois, no corredor, ela me perguntou, com gosto de café na boca: isso não é a mesma coisa que os tais parâmetros curriculares, escrito com outras palavras. Pergunta de gente grande, mesmo que escrita com erros de ortografia e desarticulada gramaticalmente. Faz sentido, como poucas coisas fazem sentido em nossa santa escola de todo dia.

 

Beijo, Nira.

PS (a propósito do mês da consciência negra)
Recebemos uma professora substituta nova. Negra, bonita, intensa, cabelo volumoso e roupas coloridas e provocantes. Uma fotografia firme e provocativa de tudo o que dorme modorrento na escola. Muita gente torce o nariz diante dela. Outros e outras torcem o pescoço quando ela passa. Alguns torcem a língua para falar dela. Mas, na hora de borbulhar e bater no peito que não temos preconceito, todos escrevem direitinho o mesmo script falsamente progressista: vivemos em um país em que não há preconceito.
Viva eu, viva tu, viva o rabo do tatu.

Outro beijo, Nira
 
     
 

DIÁRIO DE NIRA
Anotações avulsas, pouco elegantes e nada exemplares de uma educadora de língua e teclado afiados

Outubro

Oi... a postos, cabeça a mil por hora, sentimentos misturados, desejos invadindo meus dias contados num calendário já cansado deste novo ano chegando ao fim, sensações de esquisitudes, pensamentos entremeados de buracos escuros e vazios... Escrevo para desatar o nó que embaça minha garganta gostando de gostar do futuro. Escrevo para ensaiar um caminho diferente do que faço todo dia. Escrevo para sair da roda semiviva que vivo nesta rotina irremediável. Escrevo por escrever. Porque escrever é prometer um novo tempo, é estabelecer certezas provisórias num emaranhado de incertezas prováveis. Um ensaio sambando melodia de ode ao mês do professor e da professora. Que outubro seja bem-vindo e traga para nossos corações apertados um desaperto de nó, de mudança nesta vida – quase morta – severina.
Me arrumo para seguir o caminho insosso para a escola e me olho no espelho. Meu espelho é bom, artigo de boa qualidade. Espelha grandezas e pequenices, belezas e amarguras. Me vejo espelhada e me pergunto embalada neste mês de professoranças: quem sou eu? Que diacho de Nira habita minha pele, para além da escritora principiante que quase sempre começa frases com o impedido pronome pessoal? Afinal, que Nira eu sou?
Começo por pensar que muitas niras moram e habitam minha pele, bem dentro de mim. A primeira delas, sem qualquer ordem de hierarquia e importância, é a nira-mulher. O espelho não mente: não sou de jogar fora. Ainda dou de dez em muita zinha metida a besta por aí. Tenho corpo para encantar alguns – sei disso porque meus olhos quando cruzam com outros olhos me falam. Tenho energia para outros amores, ainda que estes fiquem guardados na moral prisioneira do casamento. Que meus filhos e meu marido nunca saibam disso. Para além do teclado e da língua afiados, tenho samba para ser sambado. Ainda que a melodia mal arranjada se perca na avenida. A nira-mãe, na escala de zero a cinco, leva fácil dois e meio. Ou três. Dou conta da casa e dos filhos, o marido quase a reboque. Meus dois filhos, o pequerrucho e a pequerrucha, estão sempre em ordem, saudáveis, bem alimentados, vivendo sua vidinha de aprendizes. Prontos para cantar uma música de gosto pela bom do viver. Nada devem a filho de ninguém. Dentro do tempo e do espaço que tenho, tenho tempo e espaço para colocar arrumação na infância e adolescência dos dois, do um e da uma. E com muito amor por ambos, amor devolvido na medida certa do tamanho necessário. Não falta e nem sobra. A nira-sonhadora já aprendeu de há muito que sonhar faz parte da vida e faz um bem danado. Quando a retidão da vida diária massacra meu bem-querer e meu bem-dizer, arranjo notas dissonantes que estão disponíveis para quem quiser delas fazer uso e componho um sonho. Sonhar é soprar o pó das coisas encantadas e trazê-las de volta ao mundo real. Sem sonho, sem imaginação, sem afrouxamento do limite entre o sonho e a realidade, entre o feijão e o sonho, não há cristão – ou não cristão – que aguente a parada. A nira-professora tem vontade danada de própria e mãos fortes de quem sabe o que quer, olhos de ver o que se precisa ver e jeito de falar quase tudo o que precisa ser falado. Quando não dá para falar dá para escrever, pois escrever energiza a fala. A nira-escritora que se encanta com o mundo das palavras e descobre como é bom escrever, mesmo que apenas para si própria, e como é bom escrever para os outros lerem. Que se encanta com o jogo bem jogado, do toma-lá-da-cá envolvido no significado dos rabiscos escritos, e que sofre na tortura que é arrancar significados de palavras marrentas quando algumas destas se esquivam de dizer o que precisam dizer para quem tem que ouvir. E a nira-filósofa que olha o mundo e tenta se entender como parte dele, que procura sentido para sua existência no sentido das coisas organizadas no mundo. E que tenta construir ideias, espécies de redes de sustentação de sua vida, armaduras para segurar seu corpo, seu sonho, sua profissão, seu destino. E se propõe a entender por que pensa que a única coisa que faz sentido é o amor, todas as formas de amor, apesar das contradições de o amor carregar a dor e a alegria, o gozo e o sofrimento, o envolvimento e a inércia. E de sempre saber que toda forma de amor é uma viagem sem volta ao preenchimento de lacunas.
Estas niras todas habitam dentro mim. São elas que me prendem ao chão e retardam os meus passos quando penso na escola. São elas que me atiram ao caminho quando penso que sou professora e o que posso fazer por meus alunos.

Beijo, Nira.

PS. A Claudinha, de novo ela, minha musa da sala de encantamento, sussurra aos meus ouvidos: os livros estão tristes,  pois quase ninguém os lê. E eu devolvo, sei lá vindo de qual nira que me habita, que  as coisas estão no mundo, quem quiser que aprenda. Se não sabemos ou não queremos ler, me pergunto e pergunto a tantos e tantas, como podemos ensinar o que não sabemos.

Novo beijo, perguntativo e outubrino.

Nira
 
     
 

DIÁRIO DE NIRA
Anotações avulsas, pouco elegantes e nada exemplares de uma educadora de língua e teclado afiados

Setembro

Oi
Dia desses acordei à noite, alta madrugada, e fiquei pensando sobre um comentário que li num artigo de jornal: “estamos pagando preço alto demais pelo descaso com a educação pública:ignorância, estupidez, intolerância burra e abusada, festival de mentiras políticas que assola o país, desencanto, descompromisso”. Fiquei com aquelas palavras martelando meu pensamento. De manhã, levantada e mais acordada, depois de me livrar dos afazeres rotineiros impostos por tradição à mulher do lar, antes de tomar meu rumo para o santo ofício diário na escola, apertei minha agenda, pois para escrever sempre abrirei janelas,  e escrevi estas linhas abaixo registradas.

MINHA DOCE E GENTIL PÁTRIA EDUCADORA, por quê?

Por que continua deitada no berço esplêndido e não se levanta exigindo de seus filhos o respeito por uma educação pública de qualidade?

Por que não ergue a clava forte e não dá um jeito nesses mentirosos homens públicos –e mulheres - que dizem e escrevem uma coisa e praticam outra?

Por que não solta um brado retumbante e conclama a todos para um mutirão longo e demorado por uma escola pública mais limpa, organizada, bonita, estruturada, equipada e rica culturalmente e pedagogicamente?

Por que não chama o povo heroico ao brio necessário e o faz atentar para o que todas as avaliações e críticas estão a nos dizer?

Por que não convoca o sonho intenso e o raio vívido para lotarem de esperança aqueles que estão quase desistindo de viver uma escola pública de qualidade?

Por que não instala uma carranca no céu formoso e límpido mostrando que são poucos os que estão satisfeitos com o desempenho de nossa educação pública?

Por que não usa o seu gigantismo forjado em sua própria natureza e não convoca para prestar esclarecimentos os que deveriam gerenciar (bem) o nosso sistema nacional de educação?

Por que não tenta espelhar um futuro de grandeza chamando para um balanço os que mentem, os que roubam, os que maquiam orçamentos e superfaturam preços, os que nos embrulham com promessas distantes da realidade, esses e aqueles que deixam aos educadores do chão da escola apenas o vazio, o buraco e o desânimo?

Por que, pátria amada idolatrada, não acaba com essa distribuição dos recursos públicos para esse mundaréu de gentes da “sociedade civil” e não foca, você, na sua responsabilidade de gerenciar a educação pública que nos é de direito?

Por que, pátria idolatrada salve salve, não vê e não escuta que está longe, muito longe, de ser a pátria educadora que queremos, com que sonhamos e da qual precisamos?

Por que, pátria amada idolatrada, não consegue sair do slogan e viver o concreto real?

Não incomoda você vivermos atolados num destino de ignorância, num roteiro de estupidez e de falta de consciência política, num script de cinismo, numa página em branco da falta de solidariedade? Não incomoda saber que tudo isso volta para você, contra você?

Ó pátria educadora, acorda desse gigantismo imóvel e esplendidamente adormecido em berço de margens plácidas!

Beijo, Nira

PS. Envolvi-me tanto nesse desabafo para a pátria educadora que precisei respirar um pouco e deixar meus escritos em banho-maria ( o que têm as marias todas a ver com o banho morno, lento e demorado?). Voltei ao diário dois dias depois, quase na véspera do olímpico dia da pátria, para reler o que havia escrito, alterar ou sacramentar minhas notas de desabafo. E, na esteira, trouxe uma reflexão de um cineasta francês, de nome Jean Luc Godard, dos bons, amado pela grande imprensa, ainda na ativa apesar dos oitenta e poucos anos, que disse, em recente entrevista, “a realidade é o refúgio dos que não têm imaginação!”. Fiquei matutando essa reflexão e trouxe-a para o meu diário para dividi-la com meus eventuais leitores de agora e de daqui a pouco. Eu, que sou partidária entusiasta de uma disciplina escolar chamada Imaginação,  trago essa conversa de pós escrito para incomodar todos nós que não sabemos direito onde começa a imaginação e onde acaba a realidade. Ou onde está o limite ente ambas. Se é que há...

Beijo, de novo, Nira
 
     
 

DIÁRIO DE NIRA
Anotações avulsas, pouco elegantes e nada exemplares de uma educadora de língua e teclado afiados

Agosto

Oi...

Ainda bem tenho os dedos afiados na ponta da caneta com a qual registro nos meus diários minhas anotações avulsas... e ainda bem mantenho os dedos ágeis no teclado onde batuco meus pensamentos. As vontades, emoções, desejos, raivas, pensamentos, ideias... tudo pulula na imaginação inquieta e transfiro pelos dedos aos espaços brancos imaculados das páginas do papel ou virtuais. Escrever é isso, essa gostosura de materializar pedaços da vida vivida, pensada, imaginada ou desejada. E hoje, somente hoje, prometo, sem nenhuma vontade de escrever sobre a volta triunfal às salas de aula, neste agosto em que as crises anunciadas rondam sua cabeça de medusa ameaçadora sobre as nossas cabeças inocentes, pouco pensantes e quase nada agentes, prometo ser outra Nira.  E assim pensando, assim pensando, fui me imaginando, me imaginando, me imaginando...ser o ministro da educação. Pois é... se eu fosse o ministro da educação, o que eu faria?

Começaria baixando um decreto ou uma lei (nunca sei ao certo qual a diferença de um ou de outro) que tornaria crime inafiançável (bonita palavra!!!) promessas feitas por políticos em programas de governo, feito às pressas antes das eleições, que não fossem cumpridas!!!
Em seguida, sem tempo para respirar, baixaria outro decreto (escolhi baixar decretos. Não sei porque, parece-me que decretos são menos autoritários do que as leis), desta vez tornando crime hediondo (essa palavra embora feia e carregada tem um certo peso, um certo ar de imponência) a mentira pedagógica. Você há de me perguntar o que é uma mentira pedagógica e eu hei de explicar: mentira pedagógica é toda informação de governantes e administradores relativamente aos seus sistemas educacionais que não dizem a verdade! Parece que anda cheio dessa prosa fiada.

Logo depois, eu decretaria o decreto do chão de escola. Sabe como: todo dirigente ou administrador de rede escolar tem trabalhar pelo menos dois dias da semana dentro de uma escola. De preferência dentro de uma escola com muitos problemas pendentes. Amassar barro, como se diz lá na minha terra.
Um pouquinho depois, faria uma lei (acho que aqui teria que ser lei mesmo) obrigando o corpo docente de toda escola ter pelo menos trinta por cento de homens. Isso mesmo: o inverso do que acontece na política, em que os partidos são obrigados a preencherem suas chpas eleitorais com trinta por cento de mulheres. Acho pouco esse número na política. Mais mulheres nos postos eletivos e esse mundão brasileiro teria outra cara, com certeza. E assim, trinta por cento de homens no quadro docente de cada escola daria outro balanço.

Em seguida, obrigaria (desculpe-me usar esse verbo, mas aqui é preciso) a presença da disciplina Metáforas, desde as séries iniciais até as finais. Metaforar o mundo.

Logo depois das Metáforas, exigiria outra disciplina igualmente fora de parâmetros: Imaginória. Uma disciplina em que o que conta é a imaginação. Uma disciplina em que o que conta é a capacidade de fazer perguntas, de todos os tipos: amalucadas, esquisitas, perdulárias, insensatas, transgressoras, rebledes, sensíveis, carinhosas, curiosas, viesadas, curvas, retas, paralelas, bobas, inocentes... Uma disciplina em que a resposta seria pouco importante. O mais importante seria a capacidade de imaginar e fazer perguntas.

Baixaria outro decreto (ou seria uma circular? Ou um memorando? Ou um aviso? ou uma diretriz? ou um parâmetro curricular?...sei lá!) pondo fim às paredes das salas de aula. Por quê? Não sei direito. Intuição feminina. Vale ser intuitiva pelo menos uma vez?

Também obrigaria (e com prazer) todo mundo da escola, pelo menos todos os que se consideram “educadores”, a fazer uso dos cumprimentos “oi, bom dia, boa tarde, boa noite, até logo, como vai? por favor? Desculpe-me, atenção, claro que sim, esteja à vontade, ai que saudade de você, etc”

E por fim, mandaria fazer um levantamento do dinheiro necessário para uma escola sobreviver durante um ano e
 

 

Leio no rodapé de algum lugar e registro aqui: “Ler é soprar o pó dos sonhos!”

Beijo
Nira

PS.
Beijo de novo
Nira

 
     
 

DIÁRIO DE NIRA
Anotações avulsas, pouco elegantes e nada exemplares de uma educadora de língua e teclado afiados

Julho

Oi... aproveito alguns dias do recesso de julho, pequeno oásis de calor, e solto a pena para escrever e meter a boca no trombone, para desabafar...

1.Estou farta. Não aguento mais essa política nojenta, politicalha de caras de pau, mentirosos e picaretas. Não quero mais saber desse escárnio anticidadania. Nunca mais leio sobre política e políticos. Basta!

2.Chega de notícias ruins. Insuportável. Não se passa um dia sequer sem que nossa vida seja estuprada por notícias ruins, crimes, roubos, corrupção, desrespeito a todas as leis, desacato, ignorância e maus resultados em todas as áreas sociais. Sempre ferrando os mais simples, gente do rodapé da página da vida. Basta!

3.Chega de violência. Não suporto mais as manchetes alienantes das páginas e telas do jornalismo. Será que só isso dá audiência? Não aguento mais ver e ouvir tanto sobre essa índole mal cheirosa dos humanos. Basta!

4.Não quero mais saber de tragédias ambientais. Se ninguém quer cuidar do planeta, por que eu, pobre e insignificante professora perdida na imensidão da ignorância, tenho que ralar, todo, dia economizando água, evitando consumir e produzir lixo demais? Só eu? E o resto do mundo? Não suporto mais carregar nos ombros o peso do descaso e do descompromisso da maioria! Basta!

5.Não quero mais tomar conhecimento da ignorância da humanidade. Basta!

6.Não quero mais saber de discussões superficiais inúteis, manipuladas, que não levam a lugar nenhum. Tem sempre a bola da vez: Petrobras, maioridade penal, inflação, crise econômica, turismo sexual com menores, corrupção... Uma ou duas semanas na pauta, dose para elefante, overdose do assunto até que ninguém aguenta mais e pede de joelhos que  esqueça o assunto pautado e passe para outro... as sobras vão para debaixo do tapete e tudo volta a ser como antes no quartel de Abrantes. Ufa, que nojo! Chega. Basta!

7.Estou farta desses programas meia-boca que todo início de ano são anunciados para as escolas e que nunca chegam e quando chegam já vêm com as pernas bambas, com a respiração ofegante e com o coração avariado. Que se arquivem essas propostas concebidas no vão das coxas para o próximo século e nos deixem trabalhar com os minguados recursos que temos e com a garra que criamos na adversidade. Chega dessa gastação quase inútil do dinheiro público. Basta!

8.Também estou farta desse desânimo sacrossanto e bem instalado que toma conta dos corações e mentes de todo nosso currículo cotidiano e nos prostra  com os pés presos no chão, os olhos tombados sem horizontes, a vontade adormecida no berço sem esplendor e as mãos atadas na mesmice das reclamações sem saída. Ufa! É muita falta de lirismo e nenhuma epopeia à vista. Credo. Chega dessa pasmaceira que já amanhece com todos, mal rompe a manhã, e nos acompanha até o último suspiro do último aluno, da última aula noturna. Basta!

9.Estou cheia dessas campanhas insossas da grande mídia que parecem não ter nenhuma noção da realidade diária do cotidiano escolar; dessas olimpíadas e concursos que premiam aqueles que, bem dotados, já são premiados pela vida. E dessas avaliações para inglês ver, para engordar estatística e para nos encher de mais vergonha ainda. Tudo sem retorno prático. Menos avaliações e mais recursos, gente e equipamentos. Saberemos aonde chegar. Sem isso, chega dessa intromissão fraudulenta dos poderes públicos destituídos de políticas educacionais. Que nos deixem em paz! Basta!

10.Estou insuportavelmente saturada da indigência mental que cerca o nosso cotidiano escolar. O arroz e o feijão não abrem o apetite, o bife não disse a que veio e a sobremesa não incomoda ninguém. O caderno de anotações está vazio, a caneta descansa sem tinta e os poucos livros permanecem uma existência fechada. Basta!

Beijo, Nira.

PS. Apesar desse desabafo, de supetão, primeiro grito da manhã pós noite mal dormida, a professora comprometida que ainda vive e sonha dentro de mim, me cobra: impossível dar um basta a tudo isso. Esse é o meu mundo, é nele que vivo e é dele que tiro o meu sustento. Tenho que entendê-lo e tentar mudá-lo.

Novo beijo, este ainda esperançado,
Nira

 
     
 

DIÁRIO DE NIRA
Anotações avulsas, pouco elegantes e nada exemplares de uma educadora de língua e teclado afiados

Junho

Empaquei na primeira frase. Aquela coisa que trava a primeira palavra, a primeira ideia, e você não consegue ir adiante. Como abrir a escrita: caro diário? Querido diário? Caríssimo diário? Depois de alguns minutos pensando nessa coisa de “dar a partida”,  me decidi pelo simples e tradicional “olá”. Então, porteira aberta e língua afiada, deixo correr a água represada.

Olá. De novo eu, a velha Nira de sempre, o olhar inquieto buscando segredos guardados em todas as paredes do mundo, um desejo sempre presente de registrar tudo a minha volta com palavras (estas sempre mais difíceis do que a fotografia – mas não menos belas), o costume alegre de ir e vir em meio a elas, escorregando entre ideias, delírios, sonhos, dúvidas e outras coisinhas mais. De novo, a dúvida que sempre bate quando escrevo: será que alguém vai ler os meus escritos? Será que estas ideias arranjadas à luz de uma gramática simplória farão eco em alguma mente disponível ou em algum coração generoso? Não escrevo só para mim. Escrevo para o mundo. Mas o mundo sabe disso? O mundo quer ler os meus escritos? Fica a pergunta e espero que o vento a leve para todos os lugares e me traga respostas. Ficarei, como na antológica canção de Bob Dylan, flertando com o vento.

Metafísicas à parte, junho vem chegando arrasador trazendo consigo o sopro da breve presença do recesso escolar para daqui a pouco, pausa nas intenções e desânimos de todos nós. Mas antes disso, teremos que sobreviver ao universo paralelo das tais “festas juninas”. Sempre me pego pensando sobre o evento em que se transformou essa coisa na escola. Acho que ninguém mais tem a menor lembrança da relação dessa festa com o folclore brasileiro. Tão vulgarizada ficou e tão focada na arrecadação de dinheiro para as APMs das escolas públicas, todas desfalcadas, falidas, desendinheiradas (eis aí outra palavra da qual não tenho o menor conhecimento se está dicionarizada ou não... fica a tarefa para o leitor mais curioso), que não consegue mais estabelecer nenhum vínculo com as festas antigas, mais do que velhas fotos no calendário, de rememoração dos casamentos realizados em fazendas distantes das grandes cidades. Até o carro chefe do evento se transformou em um concurso para se eleger a “miss caipirinha”. Alguém sabe que a palavra “miss” não pertence à língua portuguesa? Claro, todos sabemos. Enfim, junho chega arrebatador com todo o currículo voltado para o tsunami das festas juninas, todo ele preocupado com a arrecadação do dinheiro para a APM, dinheiro esse de que os governos escapam e não mandam e brincam de abrir a escola para a comunidade, com o objetivo camuflado de extorquir-lhe mais e mais dinheiro além dos já acachapantes impostos que pagamos todos os dias. Quando isso termina, deixa aquele gosto de “ufa! Só daqui um ano!” e mau cheiro do festival de hipocrisias do gozo de folgas na proporção direta com as prendas arrecadas, votos vendidos, enfim de dinheiro levantado para por de pé as pernas bambas das APMs. Respiro fundo, engulo esses incômodos de um currículo escolar hipócrita e sigo em frente. Tenho mais com que me preocupar. Afinal, a conta de energia elétrica dobrou, sem nenhuma explicação além das incompreensíveis bandeiras coloridas – que me lembram, de novo, as bandeirinhas coloridas da festa junina –  e me obriga a pensar nas mentiras ditas nas campanhas políticas das eleições. Falta energia para protestar, embora acumule muita raiva desse vergonhoso desfile de caras de pau, mentiras, cinismo e ladrões soltos rindo de nossa cara. E a escola que se vire com sua insuportável festa junina para cobrir o rombo da Petrobrás escolar. De novo, a diretora da escola reclama do abacateiro que continua despejando para baixo seus frutos maduros e quebrando telhados. Diz ter mandado inúmeros memorandos aos órgãos responsáveis (ou irresponsáveis) da superior administração (superior em quê?), todos democraticamente sem resposta. Dúvida cruel: qual a diferença, para efeito de cobrar atitude dos governos em relação  ao descaso com a escola, entre memorando e ofício? Para efeito de ausência de resposta, já sei a diferença: nenhuma. Nenhum tem resposta. Recebo novo bilhete da Santinha, sempre um primor no trato da língua portuguesa. Diz ela “você conhece gente que me ajude no poblema da minha aposentadoria faiz dois anos que vai de um canto ao outro e ninguém sabe nunca nada”. Santinha, coitada, já devia estar aposentada por excesso de brilho na ausência de inteligência. Boa gente, mas como professora é a melhor quituteira que conheço. E pior que nesse caso ela tem razão: ninguém recebe seus parcos direitos e benefícios da carreira senão depois de anos e anos de espera. Um jeito também democrático de azarar  igualmente todo mundo. Todos agonizam na espera de receber minguados reais anos depois. Que bom que ainda temos a Claudinha. Ela segue, para alegria de nossos olhos pouco leitores e nossos corações opacos por falta de sopro na imaginação, fazendo um trabalho lindo na Sala de Leitura. Dia desses me falou de um livro chamado Museu da Inocência, de um escritor turco chamado Orhan Pamuk, que conta a história de um cara alucinado por uma moça, que morre antes de se casar com ele,  e que dedica a ela um museu inteirinho cheio de lembranças desse amor maior que tudo. Quero ler. Acho que a vida é movida pelos grandes amores. Fora isso...nem festa junina, nem APM, nem pátrias educadores... nada tem valido a pena.

Leio no rodapé de algum lugar e registro aqui: “Ler é soprar o pó dos sonhos!”

Beijo
Nira

PS. Esse assunto merece destaque de um PS. Digo destaque porque  acho que todo PS , para além de esconder um falso esquecimento de quem escreve, revela muito mais o realce da coisa escrita. Então registro com profundo pesar e indignação, mesmo não estando em greve, meu repúdio à forma insensível, bruta, burra, insana e atrasada com que nossos governantes têm tratado os professores grevistas. Por mais simplória que possa ser esta reflexão, a greve significará sempre um estado de insatisfação com as condições de trabalho dos educadores. Querem razão política mais nobre e mais forte do que essa, senhores governadores e senhores prefeitos?

Beijo de novo
Nira

 
     
 

DIÁRIO DE NIRA
Anotações avulsas, pouco elegantes e nada exemplares de uma educadora de língua e teclado afiados

Maio

Empaquei na primeira frase. Aquela coisa que trava a primeira palavra, a primeira ideia, e você não consegue ir adiante. Como abrir a escrita: caro diário? Querido diário? Caríssimo diário? Depois de alguns minutos pensando nessa coisa de “dar a partida”,  me decidi pelo simples e tradicional “olá”. Então, porteira aberta e língua afiada, deixo correr a água represada.
Olá. De novo eu, a velha Nira de sempre, o olhar inquieto buscando segredos guardados em todas as paredes do mundo, um desejo sempre presente de registrar tudo a minha volta com palavras (estas sempre mais difíceis do que a fotografia – mas não menos belas), o costume alegre de ir e vir em meio a elas, escorregando entre ideias, delírios, sonhos, dúvidas e outras coisinhas mais. De novo, a dúvida que sempre bate quando escrevo: será que alguém vai ler os meus escritos? Será que estas ideias arranjadas à luz de uma gramática simplória farão eco em alguma mente disponível ou em algum coração generoso? Não escrevo só para mim. Escrevo para o mundo. Mas o mundo sabe disso? O mundo quer ler os meus escritos? Fica a pergunta e espero que o vento a leve para todos os lugares e me traga respostas. Ficarei, como na antológica canção de Bob Dylan, flertando com o vento.

Metafísicas à parte, junho vem chegando arrasador trazendo consigo o sopro da breve presença do recesso escolar para daqui a pouco, pausa nas intenções e desânimos de todos nós. Mas antes disso, teremos que sobreviver ao universo paralelo das tais “festas juninas”. Sempre me pego pensando sobre o evento em que se transformou essa coisa na escola. Acho que ninguém mais tem a menor lembrança da relação dessa festa com o folclore brasileiro. Tão vulgarizada ficou e tão focada na arrecadação de dinheiro para as APMs das escolas públicas, todas desfalcadas, falidas, desendinheiradas (eis aí outra palavra da qual não tenho o menor conhecimento se está dicionarizada ou não... fica a tarefa para o leitor mais curioso), que não consegue mais estabelecer nenhum vínculo com as festas antigas, mais do que velhas fotos no calendário, de rememoração dos casamentos realizados em fazendas distantes das grandes cidades. Até o carro chefe do evento se transformou em um concurso para se eleger a “miss caipirinha”. Alguém sabe que a palavra “miss” não pertence à língua portuguesa? Claro, todos sabemos. Enfim, junho chega arrebatador com todo o currículo voltado para o tsunami das festas juninas, todo ele preocupado com a arrecadação do dinheiro para a APM, dinheiro esse de que os governos escapam e não mandam e brincam de abrir a escola para a comunidade, com o objetivo camuflado de extorquir-lhe mais e mais dinheiro além dos já acachapantes impostos que pagamos todos os dias.

Quando isso termina, deixa aquele gosto de “ufa! Só daqui um ano!” e mau cheiro do festival de hipocrisias do gozo de folgas na proporção direta com as prendas arrecadas, votos vendidos, enfim de dinheiro levantado para por de pé as pernas bambas das APMs. Respiro fundo, engulo esses incômodos de um currículo escolar hipócrita e sigo em frente. Tenho mais com que me preocupar. Afinal, a conta de energia elétrica dobrou, sem nenhuma explicação além das incompreensíveis bandeiras coloridas – que me lembram, de novo, as bandeirinhas coloridas da festa junina –  e me obriga a pensar nas mentiras ditas nas campanhas políticas das eleições. Falta energia para protestar, embora acumule muita raiva desse vergonhoso desfile de caras de pau, mentiras, cinismo e ladrões soltos rindo de nossa cara. E a escola que se vire com sua insuportável festa junina para cobrir o rombo da Petrobrás escolar. De novo, a diretora da escola reclama do abacateiro que continua despejando para baixo seus frutos maduros e quebrando telhados. Diz ter mandado inúmeros memorandos aos órgãos responsáveis (ou irresponsáveis) da superior administração (superior em quê?), todos democraticamente sem resposta. Dúvida cruel: qual a diferença, para efeito de cobrar atitude dos governos em relação  ao descaso com a escola, entre memorando e ofício? Para efeito de ausência de resposta, já sei a diferença: nenhuma. Nenhum tem resposta. Recebo novo bilhete da Santinha, sempre um primor no trato da língua portuguesa. Diz ela “você conhece gente que me ajude no poblema da minha aposentadoria faiz dois anos que vai de um canto ao outro e ninguém sabe nunca nada”. Santinha, coitada, já devia estar aposentada por excesso de brilho na ausência de inteligência. Boa gente, mas como professora é a melhor quituteira que conheço. E pior que nesse caso ela tem razão: ninguém recebe seus parcos direitos e benefícios da carreira senão depois de anos e anos de espera. Um jeito também democrático de azarar  igualmente todo mundo. Todos agonizam na espera de receber minguados reais anos depois. Que bom que ainda temos a Claudinha. Ela segue, para alegria de nossos olhos pouco leitores e nossos corações opacos por falta de sopro na imaginação, fazendo um trabalho lindo na Sala de Leitura. Dia desses me falou de um livro chamado Museu da Inocência, de um escritor turco chamado Orhan Pamuk, que conta a história de um cara alucinado por uma moça, que morre antes de se casar com ele,  e que dedica a ela um museu inteirinho cheio de lembranças desse amor maior que tudo. Quero ler. Acho que a vida é movida pelos grandes amores. Fora isso...nem festa junina, nem APM, nem pátrias educadores... nada tem valido a pena.

Leio no rodapé de algum lugar e registro aqui: “Ler é soprar o pó dos sonhos!”

Beijo
Nira

PS. Esse assunto merece destaque de um PS. Digo destaque porque  acho que todo PS , para além de esconder um falso esquecimento de quem escreve, revela muito mais o realce da coisa escrita. Então registro com profundo pesar e indignação, mesmo não estando em greve, meu repúdio à forma insensível, bruta, burra, insana e atrasada com que nossos governantes têm tratado os professores grevistas. Por mais simplório que possa ser esta reflexão, a greve significará sempre um estado de insatisfação com as condições de trabalho dos educadores. Querem razão política mais nobre e mais forte do que essa, senhores governadores e senhores prefeitos?

Beijo de novo

Nira
 
     
 

DIÁRIO DE NIRA
Anotações avulsas, pouco elegantes e nada exemplares de uma educadora de língua e teclado afiados

Abril

Cá estou, neste abril desconsolado, de novo às voltas com minhas escritas. Um fotógrafo se prepara para “escrever com imagens” ajustando suas câmeras. Depois sai à cata  de assuntos, olhares, perspectivas, temas, instantâneos, momentos cheios de história. Estes são os seus temas: os momentos aparentemente soltos da realidade. Eu, quando me preparo para escrever, ajusto minhas canetas e o meu teclado, tiro dos guardados as anotações dos cadernos, releio o que já escrevi e anotei e... me ponho a juntar meus cacos numa escrita única, corrida, em busca de sentido. Terão sentido, para além de mim, as coisas que escrevo? Para além do prazer que tenho em desenhar imagens da vida com palavras, feito pálida figura do lutador drummondiano que lutava com as palavras todo santo dia mal rompia a manhã??

Abril desencanta mal, num começo envergonhado pelo dia da mentira. Mal sabia o inventor desta efeméride que neste país, que Pero Vaz Caminha sentenciou “em se plantando tudo dá”, o seu invento teria tanta guarida, tanta aceitação e tantas mentiras a se comemorar. Arrisquei, no meu jeito de filósofa de botequim de beira de estrada, pensar para definir uma mentira. Seria a falta da verdade? A negação da verdade? E o que é verdade? Se todas as verdades são relativas, as mentiras também o serão? Ora, ora, verdades  relativizadas serão mentiras? Se as mentiras são relativas, podem ser verdades dependendo do ponto de vista em que ouvimos? Ou falamos? Bem... abril entra a cumprir o primeiro quadrimestre do ano já tão cheio de problemas. Um deles, para mim um dos mais graves, é o corte dos investimentos em educação. Vejam bem: não estou falando em gastos; falo em investimentos. Tratar os investimentos em educação como gastos é uma visão míope de economista que acha que economia é a ciência dos números gastos e aplicados e economizados. Se tivéssemos a economia como a ciência da sabedoria do investimento dos recursos, talvez nossos alunos estivessem arrebentando a classificação dessa infinidade de teste tipo “quem sabe mais isso ou aquilo nesta ou naquela série, neste ou naquele ano escolar”. Isso mais parece uma metafísica de abobrinhas! O que é isso? Não sei. Acabei de inventar. Acho que metafísica das abobrinhas são essas coisas malucas, aparentemente sem sentido, que nunca temos coragem de colocar em prática ou ação. Como uma vez registrei numa das páginas do meu diário “uma disciplina no currículo escolar chamada Metáforas”. Pura metafísica de abobrinhas. Como metafísica das abobrinhas seria pensar a imaginação como atitude fundamental no currículo escolar. Quem tem medo da imaginação na escola? As crianças e os jovens? Não!!! Nós, os adultos? Simmmmm. Enquanto isso, guardamos a imaginação no sótão. Ou no porão.  Afinal, qual o lugar da imaginação na escola?

Abril, no entanto, tenta se recuperar da alcunha de ser chamado de mês da mentira. Além dos muitos feriados – que, cá entre nós, é uma delícia! -, nos inspira a pensar um pouco na figura carismática do alferes J.J. da Silva Xavier, vulgo Tiradentes. Seria tão bom conhecermos sua história verdadeira. Aquela que os livros oficiais de história de se estudar nas escolas não contam. Nem conhecer direito nossos quase heróis podemos. Quem sabe amanhã...”amanhã vai ser outro dia”, Chico Buarque anunciou há tanto tempo atrás e continuamos esperando.

Beijo,

Nira

PS1.  Jamais dispensarei uma oportunidade de escrever um pós-escrito, pelo prazer que é voltar aos escritos e acrescentar algum tempero que faltou antes. Anotei para escrever e fui deixando, fui deixando... até que pensei ser o pós-escrito o lugar ideal para comentar o que comentarei a seguir: mais uma campanha da gloriosa Rede Globo pela redenção da escola pública, desta vez chamando os pais para acompanharem a vida escolar dos filhos. Pais, uni-vos e venham viver a vida escolar de seus filhos. Não seria melhor chamar os governantes para conhecerem a realidade de nossas escolas!?!?!?!

PS2.  Impossível passar abril sem derramar algumas lágrimas, com pena dos pobres políticos apanhados  com a boca na botija da corrupção, em nova dança de famosos com nossos milhões!!! Dá pena  imaginar o que pode acontecer com estes senhores cuja especialidade é roubar o que é nosso e rir da nossa cara de idiotas.

PS3. O Congresso Nacional tem uns (trezentos ou quatrocentos) políticos achacadores... (essa palavra é tão plena!). Genial. Mais genial ainda porque quem disse isso foi o ministro da educação do país. É a falência total.

Novo beijo,

Nira

 
     
 

DIÁRIO DE NIRA
Anotações avulsas, pouco elegantes e nada exemplares de uma educadora de língua e teclado afiados

Março

Escrever é puro manjar dos deuses. Você escreve, registra o que sabe e vai rabiscando hipóteses sobre o que não sabe: palpites, opiniões, desconversas, olhares inquietos, etc. Vai daí que não dá para ficar um dia sem escrever, mesmo que as escritas ganhem os céus da inutilidade e da prosa fiada. Escrever é um jeito de se entender, de se encontrar, de se vasculhar, de botar atenção para dentro e fora de si própria. Escrever é também isso: encontrar os caminhos de dentro e os de fora. Escrevo este trecho do meu diário exatamente um mês após a  posse dos novos (novos!!!!????) deputados federais e senadores. E os santinhos tomaram posse já engajados na disputa pelo cargo de presidente da Câmara e do Senado, de olho no voto secreto que elegerá os respectivos presidentes e de olho na verba gigantesca que cada vitorioso na disputa terá, de olho também nos muitos cargos à disposição e na tal linha sucessória. Eles lá e nós aqui, no cotidiano massacrante da escola, um mês  depois do início das aulas. É bem verdade que este é um mês que promete enfim que a vida do país vai começar, ainda que espremido no meio do feriadão cumpridaço do carnaval e da espera do mini recesso da páscoa. Adorei o carnaval deste ano (bem entendido: o carnaval que eu vi pela câmera da televisão, pelo enquadramento das redes de tevê e pelos comentários dos muitos analistas contratados). Pelo menos dá uma folga deste outro carnaval insuportável – e mais enquadrado e encomendado ainda – que é a bobagem sem tamanho chamada Big Brother Brasil. Apesar da imensidão de bobagens, o BBB parece ser um pouco mais sério do que a política brasileira. Ou será que lá dentro, debaixo dos lençóis, atrás das portas e longe dos holofotes, o monstro da corrupção tamanho king size tipo Petrobrás assola os nossos principais atores e atrizes??? O mais legal mesmo do carnaval é a tal quarta-feira de cinzas, um perdão para todos os males causados e feitos. Pode-se fazer tudo o que quiser e depois se compra uma indulgência qualquer, por preço barato, e o pecador estará salvo do fogo do inferno. A vida está cheia de quartas-feiras  de cinzas. E tem para todos os preços, tamanhos e necessidades.  Enfim... a vida escolar recomeça, com as promessas de sempre: escola com todos os professores, todos os funcionários, material disponível, bem equipada, arrumadinha. E mais do que isso: com a quinquilharia, de qualidade de material de liquidação,  que o governo compra a preço de artigo importado. Aquele balcão de negócios que a escola virou: tênis, meias, blusas, cuecas, lápis, borracha, cadernos, cola, tesoura, etc, tudo a postos para alegria de quem busca essas doações na escola em vez de um projeto bom de ensinar. Deus do céu!! Que inversão de valores: a escola vale mais pela quinquilharia que distribui, em nome de políticas estranhas, escuras e mal explicadas, do que pela tentativa de fazer um projeto pedagógico de qualidade. Pra muita gente, muita mesmo, vale mais um menino ou menina com tênis e camiseta e lápis vagabundo e caderno mais vagabundo ainda do que vestir a cabeça com informações úteis para a vida e para a sociedade. A que ponto chegamos! E chegamos mesmo, basta  ver o pessoal do ensino médio bufando por todos os cantos da escola reclamando com o número abusivo – pra não dizer absurdo – de alunos em sala de aula: 42, 45, 48!!! Uma moçada esticada no tamanho, espaçosa  tanto quanto a juventude permite e incita, meninos e meninas apertados em cadeiras velhas, pequenas, desarrumadas... Na ponta do lápis não dá meio metro quadrado para cada um. Ainda por cima um calorão que não dá trégua e sobre as nossas cabeças o medo do racionamento da água. Março vem chegando, depois dos quentes e poucos chuvosos janeiro e fevereiro, as contas feitas diariamente sobre esvaziamento de açudes, represas e rios. Nem  nó em pingo d’água acalma os ânimos de quem está assediado por este problema. O verão parece que nunca mais vai acabar e a promessa de chuvas  ficou só como promessa. Coisa de amor prometido e não cumprido. E por falar em amor, tema que está sempre na pauta (será porque queremos ser felizes para sempre?), registro aqui dois versos lindos do escritor Elias José, retirados de um texto de uma palestra feita por ele: “Abrir um livro é sair da gente/é entrar mais dentro da gente”. Interessante a sensibilidade dos escritores, sacar que entrar e sair fazem parte de um mesmo movimento, apesar de parecerem contrários. Finalizo essas anotações de hoje constatando o quanto nossos dirigentes da área educacional estão longe do “chão da fábrica”. Só depois, algum tempo depois do início das aulas do novo ano letivo,  verbas miseráveis e pingadas, vinculadas – e um punhado de outras restrições, como explicou a diretora da escola – chegaram. Entre elas, uma que permitia podar o matagal que se formou nos quase dois meses sem o trânsito da moçada e limpar o terreno e o prédio. É como fazer café para a visita dois dias depois que ela foi embora. Falta vivência de “chão de escola” aos nossos dirigentes. Quando eles vão à televisão explicar o inexplicável parece que estão falando de outro mundo. É isso, mais um pouquinho disso e tudo isso junto.

Beijo insensato de um coração que procura ser sensato
Nira

PS.  (de novo a mania de escrever depois de escrever, que tem o nome chic de pós-escrito)
Lembrei-me do último registro que fiz no meu caderno SOBRE MEMÓRIA DE PESSOAS: O Gil foi uma presença bonita demais em minha vida. Chegou na escola, de mansinho, com seus envolventes olhos verdes e cabelos claros, e foi nos tirando para dançar tango, valsa, ieieiê, rock, samba canção...A cada dança era uma aproximação diferente: um livro, um texto, um jeito novo de fazer, uma maneira diferente de pensar, uma forma bonita de se aproximar, de falar, de dialogar, de nos fazer acreditar ser possível viver a escola como um universo criativo, crítico, sério e alegre ao mesmo tempo. Ouso dizer que ele ensinou – e quem quis aprendeu – que há muitas formas de amor e todas são bonitas e bem-vindas. Amei o Gil de paixão. Um dia, como fazem as pessoas encantadas, ele foi embora, para encantar outros e outras, deixando um aceno em forma de até breve e a promessa de que estaríamos sempre juntos, se quiséssemos. Faz tempo que ele se foi. Mas sua ausência ainda é presença por aqui. De um jeito ou de outro ele conseguiu deixar coisas escritas em nossos corações. Onde andará, fisicamente, meu querido amigo Gil?

Beijo sensato de um coração insensato a procura de outros Gils na vida

Nira
 
     
 

DIÁRIO DE NIRA
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Fevereiro

Olá...

Deixo para trás, com saudade e pouca disposição para suportar calores “insuportáveis” – perdoe  a redundância – este janeiro “sonhareiro” recém acabado, um dos mais quentes dos últimos tempos. Seria o fim do mundo? O bom e gostoso de escrever – imagino que assim deve ser com os escritores e escritoras profissionais, que vivem de escrever – é que a cabeça está sempre cheia de pensamentos, emoções, provocações, sensações... e outros “ões” mais. Fervendo, fabulando, escolhendo palavras, fazendo sintaxes no pensamento em forma de fluxo constante. E tudo isso sem limites. Ou haverá limites para quem escreve? E qual será o limite: a vida, a ficção ou o limite gramatical e de repertório? Pra pensar, enquanto entro em fevereiro esperançosa, mais do que imaginei e desejei na virada do ano. Esperançosa de chuvas, ainda que a precipitação pluviométrica dependa nadica de nada de mim. Será que São Pedro manterá as torneiras do céu fechadas. E a gente sem saber armazenar água, enquanto armazenamos tantas outras bobagens. Trago outras esperanças, umas que não caem do céu e dependem pelo menos um pouco da gente. Neste mês do carnaval, sem alma de foliã, apesar de deslumbrada com a beleza da globeleza, que nos humilha, nós as pobres mortais de beleza escondida, penso nas minhas esperanças corriqueiras. Dessas que qualquer dona de casa, dublê de professora, pode ter: ser mais feliz no casamento, criar mais fontes de prazer no meu trabalho docente, curtir um pouco mais minha casa e meus filhos, poder ler tudo o que tiver vontade e fazer uma viagem para fora (fora do país e não de mim, claro!). Começamos o ano na escola com algumas poucas mudanças, nenhuma substantivas. Apenas mudanças adjetivas...por exemplo, a diretora da escola cortou o cabelo e fez umas mechas descoloridas. Nem as mechas conseguiram disfarçar sua cara de desencanto em começar o ano, de novo, pela enésima vez, faltando um punhadinho razoável de professores. Buraco pra todo lado. Escola faltante. Depois sentamos para discutir a formação das classes. Horrível. O bicho pegou e pegou feio. Sabe por quê? Porque uma professora, das mais antigas na escola, se negou a ficar com a sala que tinha o nome do Alexandre S. Esparramou verbo e baba, balançou as cadeiras, gemeu, entortou os olhos, ameaçou, engoliu secos e molhados, foi e voltou, saiu e entrou e... se negou a ficar com o Alexandre S. na sua lista. Ou ficar com a lista em que o nome dele aparecia. Engraçado que ninguém falou nada, como se todos estivessem manifestando um silêncio cúmplice de concordância com a professora, como se todo mundo concordasse e tivesse medo de afirmar apoio a ela. Climão pesado no ar logo no segundo dia de trabalho. E o mais triste da história é que o Alexandre S. é um doce de menino, de olhos calmos  perdidos num silêncio danado de incomodador.

Diagnosticado como autista, ele passa a maior parte do tempo fechado dentro de si mesmo, sem dar a menor bola para as ordens ou indicações dadas para os “normais”. De vez em quando explode numa sequência de incontinências físicas que assustam ou escapam do controle dos adultos à sua volta. À boca pequena, bem pequena, um olha pro outro e resmunga de si para si “mal dou conta dos meus alunos  e ainda querem que eu fique um aluno que requer cuidado especial” ou “cadê o auxiliar o estagiário o segundo professor prometido para as salas com alunos com síndromes ou necessidades especiais” ou “as salas estão com alunos saindo pelo ladrão, como vou fazer para cuidar dele” ou “esses políticos cara-de-pau criam leis para a escola cumprir e não dão a menor condição para que as coisas aconteçam de maneira razoável, digna e cidadã”. Uma vez assisti uma palestra da Jô, presidente da Associação Brasileira da Síndrome de Willians, em que ela criticava duramente a atuação de nossas escolas quanto ao atendimento e acolhimento de crianças especiais. Ao final da palestra, falei com ela sobre essa linha tênue em que estamos suspensos: de um lado, a responsabilidade da escola em dar conta de tudo o que a sociedade pede e encaminha e, do outro lado, o descaso descarado de nossos governantes com as condições físicas, materiais e humanas da escola. Pra acalmar um pouco os ânimos, uma professora nova, topou ficar com a classe do Alexandre S. Disse que tinha um pouco de experiência com crianças autistas e toparia o desafio. Pediu apoio dos colegas. Todos, aliviados – ou disfarçados – prometeram. Afinal, quem é “normal” nessa história, nessa vida? Na sequência, a Claudinha, pessoinha das mais finas, professora readaptada que cuida da sala de leitura improvisada que temos, falou sobre suas ideias, sobre livros novos, sobre o prazer de ler. E indicou, a propósito do caso do Alexandre S., um dos livros da sala de leitura, chamado Longe da Árvore: pais e filhos  em busca da identidade. Eta fevereiro que começou animado. A gente já sabe desde muito que a coisa só vai pegar no tranco depois do carnaval, mas não custa ir aquecendo os motores.

Leio no mural da sala dos professores, frase do professor Paulo Freire, destacada de seu livro Pedagogia da Autonomia, que deveria ser uma mini bíblia para todos nós: “Afinal, o espaço pedagógico é um texto para ser constantemente lido, interpretado, escrito e reescrito”. Pra pensar... e muito.

Beijo Nira

PS. A Claudinha me passou xerox de uma página do livro que ela citou. O texto realçado dizia: “A vida é o que é capaz de erro. O erro está na raiz do que faz o pensamento humano e sua história. O erro nos tirou do lodo primordial.” (M. Foucault) Confesso que não sei direito quem é o M.Foucault,  mas confesso também , em off, em bastante off, que esse pensamento me incomodou. Talvez por não tê-lo entendido bem. Preciso soprar as teias de aranha do meu cérebro.

Beijo de novo, Nira  

 
     
 

DIÁRIO DE NIRA
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Janeiro

Oi... sobrevivi aos festejos de fim de ano, tanto aos da escola quanto aos da família. Confesso que não sei qual deles me incomodou mais. Não pelo contato com as pessoas de quem gosto, mas pela obrigação de dizer “feliz ano novo” quando sei que a maioria ouve  e engaveta essa frase, tirando do circuito muitas vias da felicidade. Desejar “feliz ano novo” deveria ser algo monumental com fogos de artifício e uma banda tocando em ritmo de blues uma música escolhida a dedo, enquanto você diz o cumprimento para pessoas especiais em sua vida.

Assim, do jeito que é, mais parece laço de arremate de presente indesejado, encomenda de comércio que mede a felicidade pela estatística do sucesso de venda. Ufa! Durma-se com um barulho desses (barulho em todos os sentidos)! Enfim, festejos remelentos à parte, cochichos e sussurros azedos ditos à meia luz, cá estou curtindo estes longos e quentes dias de janeiro a propósito do que chamam de férias de calendário (calendário, diga-se de passagem, é uma das palavras que mais acompanham a vida “útil” de um professor ou professora).  Para tudo, há datas marcadas. Nem sei se eu saberia viver sem um calendário grudado em minhas retinas cansadas. Bem... este janeiro que se arrasta assim gostoso, devagar, com jeito de não querer fazer nada, na medida em que não quero fazer coisa alguma – é possível? – me traz de volta a necessidade de lidar com páginas em branco do meu diário e nelas registrar não mais do que não sei o quê. Escrever sobre nada ou sobre a vontade de não pensar nunca para além de dois ou três dias, como se a vida começasse e acabasse nesse tempo. Não quero viver a sensação angustiante exposta no filme O Feitiço do Tempo em que os dias (ou a vida?) se repetem igualmente iguais. Quero aproveitar esse marasmo nada acadêmico que o calendário escolar nos permite e sonhar comigo em outra utopia. Qual? Ainda não sei. Sei pouco de mim, de quem sou, do que quero para minha parca existência. O quero para além de um casamento insosso , de criar filhos, de dar aulas em dois períodos, de sonhar com um amanhã (impossível) sem script, de sonhar com viagens (que nunca realizarei)? Qual é a minha utopia? Talvez escrevendo descubra. Assim espero.

Comecei dia desses um novo caderno de escritas. Na capa, anotei em letras maiores do que as convencionais: SOBRE MEMÓRIAS DE PESSOAS (gostei do título: parece imponente). Nele escrevo sem censura sobre pessoas que conheci, das quais quero me esquecer ou me lembrar. Escrevo também sobre pessoas que ainda não conheci mas espero conhecer, como o Serginho. “Serginho entrou e saiu da minha vida feito um tsunami. Nem deu tempo de pensar e eu já estava apaixonada.  Assim mesmo, no meio do casamento. Entrou, tirou tudo do lugar, deixou uma revolução devastadora nos meus olhos, no meu coração, na minha boca. Mas me fez muito bem, pois deixou tatuada na minha lembrança a certeza de que sempre estamos prontos para amar novamente. Foi embora sem me pedir nada em  troca, sem levar nada de mim a não ser o desejo que ambos tivemos um pelo outro. Coisa para a qual não há explicação. Nem quero e nem é preciso. Explicações, muitas vezes, acabam com a beleza dos sonhos. Deixa assim...agora apenas um registro nas linhas deste caderno.”

Janeiro é um mês gostoso, quente, um mês que deveria se chamar “sonhareiro”. Mês dos sonhos. Descansando, como quase todo mundo, sonhamos com mudanças na política, no clima, na economia, em nossa vida, na vida das pessoas que nos rodeiam... como se mudanças caíssem do céu, mesmo de um céu azul de doer como é o céu de janeiro. Ao mesmo em que sonhamos com outro futuro não tiramos os olhos do passado. Lembranças abastecem nossa memória. Sem memória, como olhar para  frente?

Desculpem-me essas escritas descomprometidas com o calendário escolar (a gente bem que merece esse “desvio curricular”, não é!?). E faça como eu: vá à livraria mais próxima ou a uma biblioteca pública com acervo atualizado e escolha um livro para lhe fazer companhia nos dias deste mês sonhareiro.
Li, dia desses, num marcador de leitura, uma frase instigante ”Ler é...soprar o pó dos sonhos”, verdade gostosa, bem ao gosto desse janeiro de férias e sonhos e vontades novas.

Beijo, Nira

PS. Para não perder o costume de fazer pós-anotações, aqui vai algo escrito pelo cineasta Luiz Buñuel (que confesso conhecer pouco)...
“É preciso começar a perder a memória, ainda que se trate de fragmentos desta, para perceber que é esta memória que faz toda a nossa vida. Uma vida sem memória não seria uma vida, assim como uma inteligência sem possibilidade de exprimir-se não seria uma inteligência. Nossa memória é nossa coerência, nossa razão, nossa ação, nosso sentimento. Sem ela, não somos nada.”

Outro Beijo, Nira
 
     
 

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Dezembro

Sempre que volto às páginas do meu diário fico me perguntando de onde vem esse gosto pela escrita, essa vontade de desenhar palavras ao sabor das coisas que rolam em meu coração curricular aventureiro. E é sempre uma surpresa nova, uma descoberta e uma justificativa. Penso agora que escrevo porque gosto de misturar meus fantasmas com as doses da realidade, num sonho quase pesadelo, em que solto minhas amarras e me deixo guiar pela significação autônoma das palavras. As palavras escritas que saem da minha mão parecem ter vida própria, desenhando preguiçosamente coisas que sei e coisas que não sei. Escrever é um pouco isso, como disse Clarice Lispector: “escrevo sobre as coisas que não sei”. E o que sei eu da vida se mal alinhavo alguns ensinamentos para os meus alunos (e algumas vezes mais que aprendo com eles)? Escrever parece ser um dom – que muitos podem desenvolver – que facilita entender melhor a vida. E entender no sentido lispectoriano de escrever sobre o que não se sabe.

Entre as coisas que ainda não sei está a minha utopia. Fico encafifada (adoro essa palavra antiga, com gosto e jeito de vovó velhinha sentada numa cadeira de balanço e contando coisas da vida para quem quiser ouvir) só de pensar nisso, no sentido da minha utopia. Que quero eu da vida? Que quero eu da minha profissão, além de ensinar o que sei e aprender o que não sei? Às vezes me pego sonhando alto e desejando uma escola em que o ensinar não seja meramente enquadrar crianças e jovens no mundo que nós adultos pensamos ser o mais certo, o mais exato, o mais comportado. Uma escola em que não se intimide as fantasias, não se corte asas, não se prenda a imaginação. Uma escola feita para o desenquadramento, para o desequilíbrio, com portas perenemente abertas para a imaginação. Mas eis que de repente, não mais que de repente, sou chamada para a realidade nua e crua do cotidiano escolar com notas a registrar, avaliações para entregar, listas disso e daquilo, nomes e nomes com adjetivos taxativos na frente. Ai de quem não souber fazer essa transição e fechar a porta do devaneio, do delírio, e lidar com essa realidade.

Caminhamos  nas rodas do trenó do bom velhinho, o Noel de todos nossos sonhos, já quase nas barbas do fim de ano, com as emoções abaladas por essa perspectiva de comemorar o que não se quer comemorar com pessoas com as quais  temos dúvidas se queremos ou não fazer a transição festiva de um ano para outro. Em meio a isso, rasgando papeis velhos e preenchendo outros novos, caminhamos feito soldados de Napoleão, rotos e derrotados pelo frio russo, para o tal planejamento do próximo ano, sem a certeza de que estaremos vivos daqui a alguns minutos. Será que da vontade discursiva dos candidatos vencedores da última eleição sairá uma proposta decente de melhoria da estrutura encardida da escola e de um salário que possa nos sustentar como pessoas e como profissionais? Sem essa fabulação duvidosa chamada meritocracia que diz premiar os bons, os melhores, por seu trabalho. Esquecem que o trabalho na escola é e sempre será coletivo. Ou todos remamos juntos ou todos não saímos do lugar juntos. Não há como alguns avançarem e outros não. Enfim, salário e melhoria da escola é coisa de discurso, de programa de governo. Depois passa, como febre. Eleição é água passada! Até quando assim será?

Esqueci-me de avisar lá atrás, logo no início das anotações, que hoje estou pra lá de melancólica e que não recomendaria a leitura destes escritos a quem também não está com a cabeça sintonizada no “carpe dien”. Aviso agora, enquanto há tempo de parar, embora já tenha abusado da paciência de quem insiste em me ler. Também pudera, de ressaca dessas reuniões chatas de avaliação (poderíamos gravar um vídeo e reprisá-las todo final de ano, sem sobressaltos) que misturam coisas velhas e antigas, sem saber que há diferenças entre velhice e antiguidade. O currículo e o autoritarismo, por exemplo, são velhos e devem sair de cena. O compromisso é antigo, mas nunca sai de cena. E quando me lembro da história do “batonaço”, percebo com nitidez a diferença entre as coisas. O ranço e o autoritarismo são velhos; a atitude da moçada é a antiga rebeldia, que nunca sai de cena.
Ufa, respiro fundo, olho a ponta dos meus dedos apressados no teclado, para não perder a rapidez do pensamento e penso no inesquecível Ariano Suassuna, que a maioria de nós, conhece como o autor do Auto da Compadecida, que sussurrou poeticamente para quem quisesse ouvi-lo, compreendê-lo e se apaixonar “quem lê não morre só”. Completo: quem escreve não morre nunca!

Beijo, Nira

P.S. Antes que me procurem por todos os cantos do mundo para perguntar o que é o tal “batonaço”, vou me adiantando e explicando. Escrevo e relato o que li. Um garoto resolveu ir para a escola com batom nos lábios. E foi violentamente repreendido por colegas de classe e caderno e por adultos com função de ensinar, de libertar, de abrir a cabeça. Houve uma divisão na escola, uns de um lado e outros de outro lado. Os mais ousados, os que entenderam que não havia absolutamente nada de mais em um garoto usar batom (ou usar boné, ou usar tênis sem meia, ou cueca pra fora da calça, ou brinco, ou batom...),  resolveram num ato de rebeldia bonita apoiar o colega e marcar um dia para que todos os meninos fossem à escola de batom. É claro que esse “batonaço” não ocorreu por pressão do velho autoritarismo que assola nossos cérebros cheios de teia de aranha. Pra pensar e repensar.

Novo beijo, Nira.

 
     
 

DIÁRIO DE NIRA
Anotações avulsas, pouco elegantes e nada exemplares de uma educadora de língua e teclado afiados

Novembro

Olá.
Jamais direi ou escreverei “esqueçam tudo o que eu escrevi”. Jamais. Até porque de nada adiantaria um pedido escorregadio desses, pois o que está escrito está escrito e ponto final. Já pensou se Machado de Assis ou Shakespeare tivessem dito algo parecido!? Quanta coisa linda ficaria para trás, quanta emoção seria desperdiçada. Talvez nos dias atuais isso possa ser dito, pois vivemos em tempos de economia reduzida de palavras escritas. Tentamos condensar todas as coisas que queremos dizer em meia dúzia de palavras, reduzindo sílabas, vogas e pontuação. Às vezes tudo fica tão reduzido que nada sobra de interessante no que foi dito. Aí é melhor mesmo esquecer. Por outro lado, escrever é o exercício saudável do pensamento, da reflexão, do registro. Será que é por isso que muita gente faz de tudo para nos desanimar de uma escrita mais densa, mais responsável, mais pensada? Para fazer com que todos se pareçam na democracia da ignorância: quem não tem conhecimento fica parecido com quem tem, já que temos limites para escrever. Tudo meio fast, meio light. Escrever cansa, dá preguiça, é um porre!Ufa! Cruz credo, ave Maria. Escrever é o último recurso da emoção, da história, do prazer, do raciocínio. Por isso não largo – pelo contrário, me afundo mais e mais – nessa mania de escrever nos meus cadernos. Ando com prazer de escrever “listas”. Dia desses  reproduzirei uma nova “lista” que fiz (adoro lista- quem não adora?). Só peço que me perdoem por não usar muito a divisão do que escrevo em parágrafos. Gosto assim: o pensamento vai fluindo e eu vou escrevendo. Deixo a tarefa de paragrafar para quem quiser, se quiser e puder. E por falar em escrever, outro dia topei com a diretora da escola, ainda aquela senhora de cerca de sessenta anos, com cara de assustada, às voltas com um relatório que tinha que fazer e entregar no tal órgão da superior administração (quanta mania de superioridade na burocracia estatal!!). Ela estava irritadíssima não com o relatório, mas com a razão de ter que fazer o relatório. Pois bem... dizia ela... foi reclamar do valor a ser pago para a empreiteira contratada pelo governo para refazer parte do telhado da escola (tem um pé de abacate bem próximo da parede de duas salas e os frutos quando estão maduros caem e arrebentam as telhas... aí chove e inunda tudo.) Reclamou, com razão, pois o valor pago para uma reforminha meia boca foi pago com valor que daria para construir uma casa popular. É mole!? Indignada, apesar dos sessenta anos – é bom ver gente que não perde a força de se indignar contra esses mandos, desmandos, desvios e roubos descarados do dinheiro público – ela fez a reclamação, por escrito, pedindo o detalhamento do custo da obra e como resposta o que veio foi um pequeno castigo: em vez da explicação, pediram a ela que fizesse um relatório da obra, como se engenheira fosse! É o fim da picada. Estamos pensando em fazer um abaixo assinado, em nome de muita gente, e pedir esse detalhamento do pagamento e ver o que vai acontecer. Será que a cara de pau dos (ir)responsáveis vai nos mandar fazer um relatório? Se mandarem, faremos sim: um relatório com a situação pra lá de precária do prédio da escola. Aliás, como estamos em épocas de resultado de eleição, que os governantes atentem de vez – já que até agora é só fogo de palha – para a situação precaríssima dos prédios escola e... dos hospitais públicos. Triste coincidência e semelhança: saúde e educação, dois dos temas mais louvados nos programas de governo são os temas mais esquecidos depois de os eleitos se empossarem. Nesse último pleito do qual acabamos de sair - felizmente seremos pilotados mais uma vez por uma mulher -  a bola da vez foi a tal educação em tempo integral. Gente: será que esse povo visita escola pública antes de fazer programa de governo e sair papagaiando promessas. Se não dão conta de dotar a escola de condições mínimas em um turno quanto mais dobrar o número de horas dos alunos e alunas nas escolas!? Essas crianças e jovens vão fazer o quê? Vão comer o quê? Vão ser orientados por quem? Os donos dessas propostas vão chamar os tais “amigos da escola”? Ou vão implantar um novo, avançado e aperfeiçoado programa de voluntariado, recém-importado da França? É muita cara de pau! Pior que isso só a tal síndrome da novidadeira. A ideia não é minha (só o apelido de síndrome), mas é interessante e nos pede para ficarmos atentas e atentos. Muda aqui, muda ali, muda acolá e tudo continua rigorosamente como era. Mais ou menos como essa tolice que rasgou quase dois anos do governo da república: discussão profundamente série e relevante se ela seria chamada de presidente ou presidenta. Enquanto isso, a corrupção deitou e rolou nas barbas da discussão. Quando se chegou a um entendimento – se é que se chegou – muito dinheiro público já tinha ido passear em contas bancárias privadas. Que se registre que enquanto a gente não amadurece uma consciência política, a política é ocupada por um voraz batalhão de picaretas.

Beijo, Nira.

PS. Li outro dia num rodapé de uma página qualquer e me derramei em concordância “Passamos a vida em busca de estabilidade, sem saber que não há porto seguro para ninguém. Um acontecimento qualquer, fortuito, inesperado, imprevisível, muda tudo na vida e pode tirar o chão dos pés ou criar asas para um voo às nuvens. Talvez seja essa contradição perene que nos faz agarrar com toda força o instinto da vida e nos dá o sustento para viver, aprendendo a rir e a chorar.”
PS. Para não perder a deliciosa mania de escrever pós-escritos, aqui vai mais um. Perdi o olhar silencioso e forte e dialogador da Sandroca. Ela saiu de escola. Acho que foi atrás de sua Pasárgada ou de sua utopia. Tenho muita saudade dela. Às vezes chego a pensar que ela nem existiu, que foi fruto de minha invenção imaginária. Outras Sandrocas virão?

Beijo de novo, Nira
 
     
 

DIÁRIO DE NIRA
Anotações esparsas e avulsas feitas por uma educadora sem papas na língua

Outubro

Que bom que ainda tenho esta alternativa: escrever. Enquanto o povo por aí se apequena em resmungos nos cantos das salas, eu abro a garganta e me meto a escrever. Escrever, alguém já disse, transcende a vida. Para mim, escrever estica a vida, parafraseando um carinha que  disse que ler espanta a morte. Escrever vicia, mas é vício dos bons. Se um dia eu tiver que negociar com a morte e pedir mais tempo de vida, vou argumentar que gosto de escrever e que tenho muita coisa ainda para registrar. Prometo até deixar meus escritos para serem publicados “pós-morte”... quem sabe consigo mais um tempinho por aqui. São muitas as vontades, os desejos, os guardados, os descobertos, os anseios, as perguntas... Peguei mania, mania das boas, diga-se de passagem, de escrever incessantemente em cadernos, assuntos os mais variados de olho no currículo da escola e outro nas pessoas. Engraçado: o Ernesto, professor de matemática parece uma matemática ambulante. Preciso, exato, comportado, numericamente bem feito. Mas, no fundo, quando conversa com a gente, é uma perfeita e indecifrável equação de sétimo grau (se é que a tal equação existe!). A Norma, professora de língua portuguesa, é outra de currículo adequado. A começar pelo nome: norma. Norma culta. Quietinha, bem dentro das normas da tal norma culta. Gramaticamente é um sujeito simples, nem oculto nem claro, com predicado logo após. E sem adjuntos, nem nominais e nem adverbiais. Putz... cá entre nós viver a vida sem adjuntos, principalmente sem adjuntos adverbiais, deve ser uma dureza. Ela é tão assentadinha (com dois esses mesmo) que fico só imaginando quando a sintaxe dela se desarranjar e ela atirar pela janela da sala de aula um objeto indireto na cabeça de alguém. Ou jogar um acento circunflexo em algum aluno metido a substantivo comum de dois. No fundo, acho que o currículo que ensinamos é o currículo que escolhemos para nós. Nós somos o currículo que ensinamos. Da mesma forma que somos  as escolhas que fazemos em vida: escolher ir por aqui, escolher aceitar isso, escolher falar ou calar, escolher uma via comportada, escolher uma cor, uma música, uma palavra, um poema. Escolher uma viagem (no sentido mais amplo que a palavra viagem possa significar), escolher alguém para amar, escolher uma matéria para ensinar, escolher um jeito, enfim, de viver. A gente vai escolhendo e vai construindo a sua identidade. Chega uma hora que você é totalmente fruto de suas escolhas e não consegue mais se pensar de outro modo, com outra cara, outra identidade. Mais ou menos como aquele comercial da maior emissora de televisão do país que massacra nossa cabeça, na voz de um ator querido por cem por cento dos brasileiros, que todos devem ser “amigos da escola”. Sacanamente, tira a responsabilidade de fazer uma escola boa das mãos do governo e joga para os tais amigos da escola. Como assim? Escola, enquanto for artigo de constituição, é dever e responsabilidade do estado, e não dos tais ensebados “amigos da escola”. Quero ver um ator global pegar um rolo, uma lata de tinta  e pintar parede de escola! Gente... temos que levar a escola pública mais a sério. Não só em época de eleição: o tempo todo. Outro dia vi a Sandroca indo embora para casa levando uma sacola enorme. Paramos uma de frente para a outra e antes que eu pudesse perguntar, com os olhos, sempre, sobre o carinha que mandava poemas de amor para ela, ela piscou os olhos castanhos e foi respondendo que sim, que tinha cedido diante dos poemas e da oferta de amor, mas... que não suportava mais corrigir tantas provas em casa, em horas que deveriam ser só delas. Seus olhos mais do que silentes tinham toda razão. Talvez nenhuma outra profissão no mundo tenha tanta “lição de casa” como a nossa. E já que estou falando sobre isso, aproveito a oportunidade e rascunho o restante do guia contra a inhaca pedagógica. Aí vai.

 

Breve e Inacabado Guia contra a Inhaca Pedagógica

6.Não acredite nesta história que dentro das quatro paredes de sua sala de aula quem manda é você. Isso é despacho dos ruins. A vida fica mais leve quando se divide o poder e a responsabilidade. Todos somos responsáveis na escola, da merendeira ao diretor, dos pais aos governos. Sem essa de se achar dono de um poder que não serve pra coisa nenhuma.

7.Invente. Invente-se. Busque alternativas. Procure outros lados, do outro lado. Sonhe. Crie  um Ministério dos Sonhos. Sonhar é bom e faz bem. Oxigeniza o cérebro.

8.Guarde numa caixa de sapatos (ou em outra qualquer) todas as bobagens que você ouve diariamente. Principalmente aquelas que algumas pessoas gostam de falar pensando que estão falando em nome da gente. Não vale a pena gastar sentimento com as bobagens alheias.

9.Desenvolva uma técnica para sublimar reunião chata. Uma delas é decorar poemas bonitos mentalmente. Outra técnica é ficar olhando os colegas e procurar pessoas que tenham sorriso colorido (você vai descobrir como o mundo está cheio de gente que sorri colorido).

10.Compre um caderno de capa dura (caderno mesmo!) e registre tudo de bom e gostoso que você ouvir ou encontrar ou ficar sabendo. Isso será a sua memória. Não há como viver sem memória...

Estes cinco com os cinco anteriores compõem esta primeira versão do Guia contra a Inhaca. Quem sabe um dia brota mais inspiração.

Li outro dia na lateral da página da vida que “ler poesia não enche barriga. Pode até não encher, mas quem lê poesia tem a alma saciada”. Bonito, não!?. Peguei alguns livros de poesia com a Claudinha, a professora readaptada que cuida do nosso espaço de leitura, e me pus a ler. De cara me encantei com os poemas do Manuel Bandeira. E fiquei me imaginando indo embora para Pasárgada. Um dia falo disso, dessa utopia...e depois vou-me embora para Pasárgada.

Beijo, Nira

PS (eu não seria eu se não escrevesse post-scriptum)
E já que estamos em tempos de arreganhação das nossas intimidades nas tais redes sociais e em tempos de declarações religiosamente mentirosas nos programas eleitorais, tudo de acordo com a lei, aproveito para me declarar: sou a favor do casamento homo-afetivo, de uma base nacional curricular para todas as escolas, do beijo livre na escola, da paz no oriente médio e pelo fim do assistencialismo brasileiro, da liberdade de expressão, pela decência no atendimento à saúde pública, pela elegância discreta, pelo fim de todos os casamentos mal resolvidos  e pelo direito de ficar calada quando quiser. E me declaro contra: qualquer tipo de droga (o amor seria uma delas?), plano diretor das cidades decidido na calada da noite, inflação, tabaco, cabeça de vento em corpão sarado.

Outro beijo, Nira

 
     
 

DIÁRIO DE NIRA
Anotações esparsas e avulsas feitas por uma educadora sem papas na língua

Setembro

O dia hoje está carrancudo, feio, sem sol e sem chuva e sem frio. Carrancudo, apenas. Nuvens com cara de “nem se aproxime que eu não quero conversa”. A natureza deveria ter umas regras mais interessantes, tipo “sábado é o dia da semana em que é  proibido não ter sol, não ter alegria, não ser um dia bonito”. Sábado é sábado; o resto é resto. Permitir um sábado com cara de carranca... é demais pra qualquer cristão- e pra ateu, também. E sendo assim, minha alma também se fecha numa carranca. Pra meu conforto tenho uma escolha: ler ou escrever. Qualquer uma das duas atividades botará um pouco de sol nesse sábado desconfortável. Escolho escrever. Até porque tenho lido bastante. Estou relendo um dos livros do professor Rubem Alves e me deliciando com as suas metáforas. Ele ensina e faz a gente pensar através de  metáforas. Aliás, cá entre nós, se há coisa que falta no currículo carcomido de nossas escolas é uma disciplina com o pomposo nome de METÁFORAS. Já pensou que interessante, alguém perguntar  “você é professora de quê?” e você responder: “sou professora de Metáforas!”. Lindo, não. Ensinar por metáforas. O nosso poeta maior, Carlos Drummond de Andrade,  em uma de suas escritas em prosa, escreveu que desde cedo nos ensinam a vida por metáforas. Nunca mais esqueci isso. E nem me esquecerei de alguns escritos do Rubem Alves, falecido há pouquíssimo tempo. Aliás, esse jeito de se referir aos mortos ilustres “perdemos fulano de tal” deveria ser abolido. Gente como Rubem Alves não morre; muda de plano, de categoria: deixa de ser mortal e passa a ser imortal. Os seus escritos ficarão em vida, com vida, em nossas vidas, para sempre. Isso me faz lembrar essa história de estatuto de carreira do magistério: dividem a gente por categorias, classes, faixas, níveis... e um punhado de outras quinquilharias que servem apenas para disfarçar a pobreza do salário. E olhe lá: isso onde tem, porque na maioria nem isso tem. É todo mundo categoria 0 (zero). Uma coisa puxa a outra e me lembro de um jeito bem brasileiro de ver as coisas (seria uma metáfora pelo avesso?): por aqui há leis que pegam e leis que não pegam! Gente, que maluquice é essa!? Leis que pegam e leis que não pegam!!! Então os caras são eleitos por voto direto, escolhidos para nos representar, ganham os tubos, têm férias até não mais poder, mordomias, sossego, infraestrutura colossal... e escrevem leis que “não pegam”!!! Como assim??? Parece um pouco (ou muito) com essa história da seleção brasileira na copa do mundo: todo mundo sabia que não ia dar em coisa alguma e ninguém falava nada. Até o dia da quase tragédia nacional, vestida com o macabro 7 x1. Ficou faltando, além de brio em nossas fraldas verde-amarelas, um #todo mundo sabia, mas ninguém falou nada. Voltando ao chão batido: as tais leis que não pegam. Vou  lembrar  duas, ambas a respeito do magistério: a lei da jornada pedagógica e a lei da biblioteca escolar. Ambas certeiras, bem pensadas, desejadas por todos, animadas pelos sindicatos, cantadas em verso e prosa por seus autores, sejam eles do executivo ou do legislativo, festejadas em programas de governo, pronunciadas em tempos de pesquisa eleitoral, etc. etc... E daí? Contam-se nos dedos (de apenas uma mão) os municípios e estados que assumiram na prática e na realidade da escola pública a lei da jornada pedagógica. Continuamos levando quilos de tarefas para casa, misturando a pedagogia com o casamento ou com os afazeres do reduto doméstico, cozinhando o planejamento escolar com alho e cebola, lendo textos de formação com um olho nas entrelinhas e outro no diálogo imperdível das novelas sebentas das sete, das oito, das nove e das onze. E a desculpa é a mesma de sempre: falta dinheiro para implementar a lei da jornada pedagógica. Falta o dinheiro, aquele mesmo que sobra no superfaturamento das obras públicas e das compras e pagamentos de serviços para as empresas felizardas. Outra lei que não “pegou” é a lei da biblioteca escolar, aquela que obriga todas as escolas a terem uma biblioteca até o ano 2020. Eta lei safadinha, essa. Primeiro, vem com essa enganação de esticar o prazo até o ano 2020.  Porque até lá já teremos esquecido isso e outras coisas estarão na pauta. Se fosse pra valer, tinha que dar o prazo no mesmo ano da publicação. E olha que lá se vão uns três ou quatro anos da publicação da lei e nada aconteceu. Segundo, embora defina o que é uma biblioteca escolar, as estatísticas, quase sempre mentirosas, computarão para efeito de prestação de contas qualquer coisa como biblioteca escolar. Meia caixa de livros antigos doados por alguém que está fazendo reformas em casa vale por uma biblioteca. Uma prateleira com livros didáticos usados também. Duas caixas de livros recebidos de um programa de governo (daqueles que meia dúzia de especialistas ganha fortunas para escolher livros que eles gostam para os outros trabalharem), esquecidas num canto da escola também contarão na estatística. Terceiro, a gente na escola mal tem tempo para conversar e discutir os caminhos e descaminhos do nosso trabalho, e não está acostumado à leitura, como deveria ser e estar. E então, os livros não fazem parte de nossa necessidade imediata – o que é um mal irreparável. Enfim... leis que “pegam” e que não “pegam”...Citei essas duas, que deveriam ser de extrema importância na escola e, desgraçadamente, não são. Uma pena. Na minha escola temos feito uma cruzada enorme, comandada e mediada pela esforçadíssima Claudinha, professora readaptada, na direção de um espaço de leitura, de um acervo razoável, indicado e escolhido por nós, e de uma prática construída por nós mesmos. Difícil, mas caminhamos. Um dia desses falo disso.
E por falar em leitura, li num lugar qualquer, na altura da página 32 do rodapé da vida (a vida tem rodapé, sim senhor, sim senhora!), o seguinte “a leitura é a morada da invenção. Opps, descuidei-me de novo e me reinventei.”

Beijo, Nira

PS. A vida é cheia de post-scriptum. Quem duvida que pare para pensar: os sonhos, as vontades guardadas, as saudades, os arrependimentos... Quer mais??  Conversei novamente com a Sandroca, pelos olhos, como fazemos sempre, na calada de nossas emoções. Ele me disse que recebeu um poema novo do seu amor quase impossível e que nele ela foi comparada a um pássaro encantado. Ficara deslumbrada com o poema, mas se sentia com a asa quebrada, sem condições de voo. Fechei a cara e dei a maior bronca nela: voe para esse amor, menina! A vida não te dará outra chance como essa! Não sei se ela entendeu ou se concordou.

Fico devendo para os próximos escritos o restante do Breve e Inacabado Guia contra a Inhaca Pedagógica.

Beijo, de novo,

Nira
 
     
 

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Anotações esparsas e avulsas feitas por uma educadora sem papas na língua

Agosto

Nem faz tanto tempo assim, desde a última vez que andei me agasalhando nestas tuas mal traçadas linhas, descarregando aqui o que não consigo carregar na vida comportada que exigem de mim. Escrever vicia, mas é vício dos bons. Equilibra o andar da carruagem. Aqui na escola, estamos em tempo de planejamento. É tanto planejamento e replanejamento que quase não sobra tempo para executar o planejado. Se Eclesiastes, aquele mesmo, o da Bíblia, fosse vivo, ele acrescentaria ao seu escrito bíblico, no versículo 3, “para tudo há um tempo determinado, sim, há um tempo para todo assunto debaixo dos céus” que também “há de ter um tempo para planejar e um tempo para executar; um tempo para pensar e um tempo para agir”. Será? Será que os tempos são assim mesmo, categorias divididas, que nós podemos separá-las e classificá-las? Às vezes tenho a impressão de que tempo é uma coisa só, tudo embolado, e o tempo da escola é mais embolado ainda: você pensa, age, toma decisão, faz, anota, pensa de novo, conversa, reclama, pensa, briga, fala, escreve, sonha, se assusta com a carinha dos alunos. Tudo junto e  misturado. Mix, salada de frutas total. E aqui pra nós: planejar o quê? Só se for o planejamento da tapação de buracos: como cobrir a falta disso, a falta daquilo, como preencher o vazio disso e daquilo, como completar a falta de um e de outro, como preencher os buracos na vida de cada personagem da escola! Como? Fiquei pensando nisso, só pensando, sem planejar e sem agir, justamente nessa retomada de semestre, quando tivemos que “planejar” uma tal semana do folclore! Inacreditável! Com tantos problemas na escola, somos levados a discutir e planejar e pensar sobre o que fazer na semana do folclore!! Nada contra o folclore, nada contra a semana do Duque de Caxias, o dia dos pais, isso só em agosto! Se você parar para pensar e fizer um levantamento de todos os dias e todas as semanas, disso e aquilo, que temos no calendário escolar para comemorar, exaltar, anunciar, divulgar e participar... certamente não sobrarão dias para executarmos o nosso planejamento real. Certamente. Além dos fixos, como o dia das mães, dos pais, da criança, do livro, do professor, do índio, da árvore, da pátria, do exército, da revolução, da constituição, da república, do meio ambiente, da liberdade, da abolição, das bruxas, etc. etc..., há as festas programadas pelo calendário turístico, como o carnaval, a páscoa, o corpus Christi, as festas juninas, as férias, o folclore, semana a pátria, da criança, do saco cheio (bota saco cheio nisso) e as semanas cívicas, tipo aleitamento materno, cuidado com os dentes, com os animais, campeonatos esportivos, etc. E tem mais ainda: os concursos públicos que são metidos goela abaixo e que a escola é obrigada a participar querendo ou não nos obrigando a uma reflexão ligeira e rasteira.  E de quebra, as tais olimpíadas, que não interferem em nada na qualidade do nosso trabalho e cujo  objetivo maior  é descobrir talentos naturais – desses que com ou sem olimpíada a vida se encarregará de descobrir e fazer brilhar. Pois é... com tanta coisa para “comemorar e destacar” no frouxo currículo das escolas, sobra pouco tempo (outra vez, o tempo em meus escritos) para os conteúdos e práticas realmente importantes para a vida em sociedade. A escola cada vez mais se parecendo com um grande balcão de negócios: todo mundo negocia os espaços escolares, seja para fazer média ou para botar pra fora seus sonhos inúteis, aqui tudo se dá e tudo se negocia, menos os saberes necessários para fazermos de cada criança e cada jovem um cidadão e uma cidadã. Será que quem deve gerenciar os processos pedagógicos das escolas tem noção dessas coisas ou não conseguem distinguir direito o real e o sonho. De novo, lá venho eu com essa mania de gerenciar vidas, rumos e destinos. Quem sou eu para criticar os outros, logo eu que não dou conta sequer do meu pobre destinozinho e não consigo ir além da página dois dos meus propósitos... Voltando às vacas magras (coitadas das vacas... o que elas têm com isso?), ficar pensando nos rumos da escola me dá uma certa melancolia.  Traduz um sentimento atual, uma “inhaca” pedagógica. E por falar em “inhaca” pedagógica, rabisquei algumas anotações, um roteiro contra isso, que tenho a coragem de anotar nestas suas pouco exemplares páginas. Aí vão. Até o número cinco. Se um dia tiver coragem escrevo mais.

Breve e Inacabado Guia contra a Inhaca Pedagógica

  1. Levante-se cedo, todos os dias, como se cada um fosse o seu primeiro dia de magistério.
  2. Faça de conta que todo mundo está pensando seriamente na qualidade do ensino na escola onde você trabalha.
  3. Leia um pouco todo dia. De um tudo: de receita de bolo até bula de remédios, passando por cartas de amor, horóscopo, editoriais, literatura, roteiros, livros técnicos. No mínimo, isso vai ajudar você a entender melhor as coisas e a formular melhor as perguntas.
  4. Escreva um pouco todo dia. Sobre sua vida, seu trabalho, sobre o futuro e, claro, sobre o passado. O que passou, passou, mas não se olha o futuro sem tirar um dos olhos do passado.
  5. Acredite nas pessoas. Responda aos seus chamados. Vá junto. Movimente-se. Reoriente seus olhos, seus sentimentos, seus pensamentos. Estar junto é sempre melhor do que estar só. Em todos os sentidos.

Tá bom assim? Se baixar uma inspiração de nova musa, escrevo mais.
De volta ao feijão com arroz, ontem conversei um pouco com a Sandroca. Ela me falou, com os olhos, sem palavras, que tem recebido poemas amorosos de um cara. E tem gostado, mas não sabe o que fazer com isso. Pela cara dela, acho que vai jogar os poemas no lixo e ficar com o seu casamento embrulhado de mesmice e desencantos. Que fazer? Cada escolhe o seu caminho...

Estou sempre encontrando coisas interessantes por aí. Li, dia desses, num marcador de livros de papel que “ler desabotoa vontades”. Lindo, não!? Baita verdade! Sempre que leio, desabotoo vontades...

Beijo, Nira

PS. (você sabe que adoro escrever post scriptum. Então aguente mais esses...)

Um saco, essa história de ficar discutindo  as novas tecnologias na escola. Quais novas tecnologias, cara pálida? Os três computadores que chegaram na escola continuam empacotados porque não temos instalações apropriadas e porque não há manutenção pra nenhum equipamento e tudo que chega e quebra fica quebrado até deus sabe quando...Parece que estamos discutindo quem vai embarcar primeiro na Arca de Noé...

Outro saco: começam as campanhas políticas para as próximas eleições. Um festival de hipocrisias. Em todos os partidos cabe um discurso de melhoria da educação. Sabe aquela coisa de tamanho único, de forma igual, de receita idêntica. Todos sabem que o caminho é melhorar a educação. Sabem até a página três, depois esquecem. Quando assumem suas cadeiras, sentam, gozam e esquecem.

Novo beijo, Nira

 
     
 

DIÁRIO DE NIRA
Anotações esparsas e avulsas feitas por uma educadora sem papas na língua

Julho

Cá estou de novo nessa deliciosa aventura de escrever  coisas que passam pela minha cabeça, sejam elas certas ou erradas, verdadeiras ou falsas, cheirosas ou fedorentas. Nem me lembro mais de como comecei com essa mania de escrever quando o ar me falta, quando a bexiga está cheia, quando o vento sopra pro lado contrário do penteado do meu cabelo ou quando os coração treme. Pouca importa saber. O tempo não existe nessa empreitada. Escrever é um elixir que me põe de pé quando as quebradas da escola me faz ajoelhar de desespero. E tem mais ainda. Li na introdução de um livro de memórias de um dos meus escritores favoritos, o colombiano Gabriel Garcia Marquez, que “a vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”. Isso nunca havia passeado por minha cabeça, mas fez poeira quando entrou. Baita verdade: o que não me lembro, não faz parte da minha história. Por isso e por outras coisas mais, essa mania de escrever. Escrevo e registro e me lembro para sempre, pois fica escrito. Como o episódio do dia do beijo na boca. O dia em que  quase engoli meu diário de classe, minha agenda e uns livros de literatura que carregava comigo. Passava pelo corredor da escola, pouco depois do fim do intervalo, e me vi no meio de um alvoroço danado. Parei, por instinto, coisa de professor que estanca quando a meninada faz volume no corredor, no fundo da classe, no portão de saída. E vi com esses olhos de ver tudo, que um dia a terra haverá de comer, um acontecimento de incendiar qualquer escola de meu Brasilzão: duas meninas, já crescidas, alunas do final do ensino fundamental, abraçadas e se beijando... na boca. Ali, no corredor da escola, perto de uma sala de aula, sem cerimônia nenhuma, no meio de um batuque de gritos, palmas, vaias e sei lá mais o quê. Quase engoli os cacarecos que carregava no antebraço. Já tinha visto isto na tevê, nessas novelas modernosas que tentam nos fazer acreditar que dá pra entender tudo de um só vez nessa vida danada. Ver na tevê é uma coisa. Ver ao vivo, na sua frente, na escola onde você trabalha é outra coisa, completamente diferente. Parei, quase na contramão, feito a musiquinha antiga do rei Roberto, e fiquei ali sem saber o que fazer. Vi por esses olhos, que o tempo haverá de triturar, uns cinquenta tons de purpurina sendo despejados na minha imaginação. E a garotada diante daquilo que parecia ser um espetáculo na pobreza da vida real não parava de gritar, pular, se assanhar...Pulo um pedaço de minhas preocupações. Esqueço para o bem da saúde do leitor. Volto a ter consciência de tudo já na sala da diretora, com as duas meninas e três ou quatro “testemunhas” e eu, triste cavaleira sem nenhuma esperança, que desafortunadamente passava por ali na hora exata do beijo caliente. Que podia eu fazer, pensei com meus botões, não sem antes me lembrar de minha conta bancária, quase raspando o fundo, mais baixa do que o nível dos reservatórios de água da metrópole paulistana. Que estava eu fazendo ali: testemunha a favor ou contra? A favor ou contra o quê? Contra quem? Num lance rápido de pensamento recordei dos muitos cursinhos de formação que fiz vida afora. Por mais que me esforçasse, nenhum deles sussurrava uma explicação para o que estava acontecendo ali, naquele inexato momento. Não achei em nenhuma das muitas (quase sempre poucas) leituras que fiz um porto seguro para entender o que havia acabado de presenciar e o que certamente haveria de presenciar dali pra frente. Beijo é pecado? Beijar na escola pode? Quem pode? Quando pode? Também não queria estar na pele da diretora, uma senhora já beirando os sessenta, vestida com a sua cara mais assustada que vi nos últimos anos dela por ali. E numa hora dessas ninguém aparece pra ajudar, não há pistas nas tais políticas de educação, não há orientação nas tais circulares dos hierárquicos superiores, não há sal grosso nem açúcar refinado que diga vá por aqui ou vá por ali. Não que eu quisesse um manual prático de sobrevivência nos corredores da escola, com regras e receitas para tratarmos de todos os assuntos extracurriculares... mas seria aquele beijo um tema extracurricular? – me pergunto. Se beijar é da natureza humana, se é do conhecimento dos humanos, então é curricular, oras bolas? Mas de que matéria? Da Língua Portuguesa, pois o beijo formula encontras linguísticos..? Da Educação Física, pois o beijo nada mais é do que uma configuração de dois corpos em perfeita harmonia..? Da História, pois o beijo faz parte da história de todos nós..? Das Artes, ainda que muitas religiões ponham o beijo no capricho do demônio..? Essas coisas  acontecem aos montes na escola todos os dias, porque a escola traz para dentro dos seus muros – isso quando tem muros, pois a maioria não tem nenhuma proteção – a vida que corre solta lá fora. E a gente, por susto, por medo, por inexperiência ou por incompetência, vai empurrando para debaixo do tapete... mas quem sou eu para falar dessa coragem necessária para enfrentar certos assuntos na escola??? Justo eu que não consigo administrar o naufrágio do meu casamento por falta de coragem para encarar o rombo do meu Titanic doméstico! Eu e a Sandroca. Nós duas nos confessamos sobre as amarguras dos nossos casamentos sem trocar uma palavra. Só com os olhos. Os dela e os meus trocam intensos diálogos sobre os sonhos que guardamos no saco de guardar confetes (quem mesmo escreveu esses versos musicados???). Faço essas anotações no intervalo entre o fato acontecido e a reunião que a diretora convocou para discutirmos o beijo na boca das meninas... vamos lá! Quem sabe esse beijo não lambuze a escola de novas emoções.

Li outro dia, no rodapé de uma página de livro: Ler é amor; escrever é sexo. Leia e escreva à vontade. Será? Ufa!!!
Beijo, Nira.

PS. (Adoro escrever post scriptum. É chique!) O Zé Marcelo anda rondando a gente. Tem um som de greve ao redor. Ele vem com um discurso mastigado de sindicalista que não me engana mais. Sindicalista tem que dar exemplo na escola. Exemplo de professor comprometido. O exemplo dele é o avesso disso. Sempre arruma uma boquinha e um jeitinho para escapar do cotidiano pesado da escola. Assim... até eu.

PS. (Mais um) A Marta Vieira, professora readaptada, perdeu a cabeça outro dia ao ouvir um comentário de uma colega, insinuando que a vida do readaptado era moleza. Ela respondeu na lata “que trocaria fácil a moleza da vida de readaptado pela dureza do trabalho diário na sala de aula”. Entupiu a outra. Bem feito. Quem fala o que quer ouve o que não quer, já dizia a dona Judi, a senhora minha mãe, do alto dos seus saberes intuitivos.

Novo beijo, Nira.